Por Nonada e Transmídia
As eleições municipais de 2024 foram marcadas pela transfobia. Em todo o país, candidaturas concorrendo à vereança e prefeitura investiram em campanhas que atacavam os direitos da população trans, em especial, de crianças trans. Frases como “crianças trans não existem”, “deixem nossas crianças em paz” ou “isso é um crime contra a infância”, divulgadas massivamente em redes sociais ou até mesmo em outdoors espalhados pelos municípios, fizeram da pauta o “kit gay” de 2024.
Ainda que desde 2019 o Superior Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido a transfobia como crime e a Justiça Eleitoral vede o uso de discursos discriminatórios durante as campanhas eleitorais, profissionais ouvidos pelo Nonada Jornalismo e pela Transmídia afirmaram que a legislação vigente não foi suficiente para barrar a transfobia nas eleições.
Embora o uso da pauta de crianças trans não seja uma estratégia eleitoral nova, usada com objetivo de gerar pânico moral e disseminar desinformação, organizações que defendem os direitos de pessoas trans já previam que esse tema seria intensificado nas eleições municipais deste ano. Em março, a ONG Minha Criança Trans, junto com outras 18 organizações, enviou um ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) solicitando que o órgão proibisse o uso de notícias falsas, pronunciamentos e conteúdos transfóbicos contra crianças e adolescentes trans nas campanhas eleitorais.
Em agosto, cinco meses depois, o TSE respondeu o pedido da organização afirmando que “entende que o aparato normativo em vigor revela-se suficiente para cobrir eventuais manifestações discriminatórias contra esse grupo de pessoas no contexto das campanhas eleitorais deste ano”.
Além disso, o órgão reforçou o uso dos aplicativos Pardal e do Sistema de Alertas de Desinformação Eleitoral – SIADE para o recebimento de denúncias e sugeriu a expedição de comunicação aos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) para dar publicidade ao pedido da ONG e o “encaminhamento ao Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação (CIEDDE) para acompanhar possíveis manifestações discriminatórias durante as eleições contra pessoas trans e toda a comunidade LGBTQIAPN+”.
Apesar dos esforços antecipados para impedi-la, a transfobia esteve presente nas campanhas. Em agosto, a então candidata à vereança da capital paulista e mestra em Ciências Sociais Carolina Iara (PSOL) entrou com uma representação no Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) contra Lucas Pavanato (PL), vereador mais votado do país, com denúncia por propaganda irregular, discriminatória e transfóbica. Os panfletos distribuídos por Pavanato continham promessas eleitorais com ataques diretos aos direitos da população e de crianças trans.
A denúncia foi embasada pela resolução nº 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que proíbe a veiculação de “preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, cor, idade, religiosidade, orientação sexual, identidade de gênero ou contra pessoas com deficiência”. O TRE-SP, por sua vez, respondeu negativamente, afirmando que o candidato estava exercendo sua liberdade de expressão, e permitindo que ele tivesse direito de resposta.
Em 2022, Carol Iara foi eleita com aproximadamente 250 mil votos junto à bancada feminista e é considerada um dos principais nomes pela defesa dos direitos LGBTQIAPN+ em São Paulo. Para a socióloga, há uma conjuntura política que coloca as vidas de pessoas trans, com o foco nas crianças, como alvo. “Faz parte da agenda internacional de institucionalização da LGBTFobia, mas principalmente da transfobia, que tem se utilizado dessa pauta como a principal para atrair não somente os votos dos conservadores de extrema-direita, mas também dos religiosos que não são, necessariamente, de extrema-direita.”
Os ataques não começaram no período eleitoral. Em 2023, o deputado federal Nikolas Ferreira vestia uma peruca, proferindo ofensas transfóbicas no púlpito do Congresso Nacional. O episódio se tornou um marco da falta de investigação de julgamento de políticos brasileiros que se utilizam de ataques discriminatórios em instituições públicas. “Ele fez um ataque direto às pessoas trans e nada aconteceu com ele, então, não é uma questão apenas do TSE ou TRE como coniventes, mas é toda uma estrutura, uma gama de instituições”, explica Carol Iara.
Para Fernando Neisser, advogado especialista em direito eleitoral, não há uma prerrogativa do TSE e da legislação eleitoral que proíba um tópico específico de ser objeto de discussão nas eleições. “O que a gente não quer e não aceita é uma abordagem odiosa desse tema [de crianças trans]. Isso tem que ser visto caso a caso e quem vai fazer isso é a primeira instância, é o juiz da zona eleitoral respectiva. Talvez o cerne seja conseguir que o judiciário absorva um conceito de transfobia mais abrangente, que gere uma proteção maior”, afirma.
A socióloga Carol Iara explica que utilizar a pauta trans como capital político é uma estratégia consolidada, em todas as regiões do país. “Não se trata apenas de gostar ou não gostar, de ser preconceituoso ou não com pessoas trans. É sobre entender que a nossa existência está dentro de um tabuleiro político enorme, muito estratégico. Então, digamos assim, nós nos transformamos em ‘joias da coroa’, peças importantes dentro do tabuleiro político.”
Fragilidade na legislação
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu uma lacuna jurídica na proteção à população LGBTQIAP+ contra a violência e determinou que condutas de ódio motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero fossem criminalizadas. Ainda que esse reconhecimento tenha sido um marco no movimento, até o momento não há uma lei específica que aborde diretamente a questão. Atualmente, a LGBTQIA+fobia é enquadrada na Lei n° 7.716/89, conhecida como Lei do Racismo. Por que isso parece não ser suficiente?
Da graduação ao doutorado, o advogado e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Davi Haydee estuda sobre a ausência e a falta de aplicabilidade de legislações voltadas para a proteção de pessoas transexuais e travestis no Brasil. Na graduação, estudou sobre como uma Resolução e uma Portaria no Pará, que deveriam garantir o uso do nome social nas escolas, não eram colocadas em prática pela falta de conhecimento sobre a existência desses dispositivos. “Enquanto por um lado, as legislações existentes não são aplicadas, por outro lado, temos a total ausência de legislações específicas para, por exemplo, investigar e responsabilizar quem comete crimes com motivação LGBTFóbica.”
Embora exista a decisão do STF, o professor explica que a responsabilização ainda é escassa. “Muitas vezes há uma falta de preparo do próprio sistema de justiça em compreender essas violências como ilícitos.” Para Dandara Rudsan, advogada e defensora de direitos humanos, o fato da transfobia ser crime no Brasil não garante que pessoas trans não sejam atacadas: “É uma legislação frágil. Tudo que nós temos hoje relacionado à legislação que protege de alguma forma pessoas transgêneras são resoluções e portarias, jurisprudências, julgados coletivos.”
Dandara analisa que o Pará, assim como grande parte da região Amazônica, também foi palco para os discursos anti-trans nas eleições. Um exemplo é a campanha promovida pelo deputado federal Éder Mauro (PL), que disputou o segundo turno da prefeitura em Belém. Em outubro, o candidato usou as redes sociais para atacar as pessoas transgêneras, e espalhou outdoors pela cidade dizendo “Crianças trans não existem”.
Carol Iara tem duas hipóteses para explicar a falta de proteção legal que as pessoas trans sofrem. A primeira seria uma falta de letramento, por parte das primeiras instâncias do judiciário, ao fato do decreto do STF considerar a transfobia como crime. A segunda seria que a população trans está apartada dos direitos, como mostram pelo menos 39 projetos anti-trans tramitando no Congresso e nas Assembleias Legislativa atualmente. “A Extrema-direita utiliza as pessoas trans como linha de frente, mas não podemos esquecer também que, no fundo, é uma ataque a toda a comunidade [LGBTQIAP+]”, destaca.
Em novembro, a Agência Diadorim lançou a Observatória, plataforma que vai acompanhar projetos de lei pró e anti-LGBTQIA + apresentados nas assembleias estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado. De janeiro de 2019 a outubro de 2024, de acordo com o levantamento, 1.012 projetos de lei desse tipo foram apresentados por parlamentares, somando dados das esferas estadual e federal. Do total, 575 são favoráveis à população LGBTQIA + e 437 são prejudiciais.
A atualização do discurso do ‘kit gay’
O ataque específico a crianças trans foi feito de forma semelhante por diferentes candidatos. “O recorte de crianças e adolescentes trans têm sido politicamente utilizado de uma forma muito diferente do recorte LGBTI em um contexto geral. Ninguém fala que uma pessoa gay não existe, ninguém fala que uma mulher trans não existe, mas falam que crianças trans não existem”, explica Thamirys Nunes, presidenta da ONG Minha Criança Trans.
Fundada em 2022, a ONG é a primeira organização do Brasil a tratar exclusivamente das questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos de crianças e adolescentes transgêneres. A presidente conta que fundou a organização ao perceber que a filha, uma menina trans, sofria muito preconceito e, especialmente, a partir da falta de informação nos ambientes que frequentava.
“É um assunto que não é consenso. É mais fácil você atacar um assunto que não tem uma norma definida e que não tem um posicionamento do Estado. A pauta das crianças e adolescentes trans vive num limbo. A maior parte das instituições que falam de direitos de crianças e adolescentes têm viés ou um histórico religioso.”
Segundo Thamirys, outra lacuna que torna as crianças e adolescentes trans mais vulneráveis é que os próprios direitos adquiridos, como a decisão do STF, não falam especificamente sobre crianças trans. “Ninguém quer tocar no assunto, é como se fosse a batata quente que todo mundo quer jogar um para o outro, não é nem de criança e nem LGBT, não é do estado, não é de ninguém.”
Carol Iara acredita que o ataque direcionado a crianças trans foi a fake news escolhida para as eleições de 2024, assim como ocorreu com o “kit gay”, em 2022, e com a “mamadeira de piroca”, em 2018. “As fake news estão levando para a população que nós queremos ‘travestilizar’ as nossas crianças, quando estamos querendo cuidar delas. [Falam] como se quiséssemos impor uma identidade de gênero, sendo que, na verdade, é sempre o oposto. A nós que é imposta a cisgeneridade”, explica.
Para o psicólogo Dan Brosko, o ataque e a negação da identidade de crianças trans não é uma novidade. “Dizer que criança trans não existe é também uma estratégia perversa para afirmar que nenhum adulto é legitimamente trans, ou seja, que para ser de fato trans, houve algum “desvio”, já que na infância estava “tudo normal”. É uma propaganda sobre patologização”, comenta.
Uma máquina comunicacional anti-trans
Novamente, a desinformação, o discurso de ódio e a polarização ocorreram de forma massiva nas eleições municipais, afirma o vice-coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, Ravi Spreizer. “Em todo o Brasil, candidaturas trans ou com pautas de defesa LGBTQIAPN+ enfrentaram uma intensa onda de ataques, frequentemente ancorados em espalhar teorias infundadas. Um tema recorrente foi a alegação de que nossas pautas seriam uma tentativa de “cooptar” crianças a serem trans, hormonizando-as enquanto menores de idade, uma narrativa amplamente desmentida”, afirma.
Em um ano, de julho de 2023 a junho de 2024, ao menos 124 publicações contra crianças e adolescentes trans foram impulsionadas por políticos de extrema-direita nas plataformas de anúncios das Meta. A lista inclui parlamentares eleitos, entre deputados, vereadores, senadores e, à época, pré-candidatos, que investiram grandes valores em propagandas anti-trans.
Essa estratégia de viralizar nas redes com pautas anti-trans e, consequentemente, impactar o resultado das urnas é o que Carol Iara chama de efeito de uma grande “máquina comunicacional” da extrema-direita. Embora a presença de parlamentares trans nas câmaras municipais, estaduais e no Congresso seja crescente, ela considera que ainda é desigual o poder para informar e se opor à desinformação.
Em 2024, diversas capitais seguiram elegendo candidatas trans e travestis. Em Porto Alegre, Natasha Ferreira (PT) e Atena Beauvoir (PSOL) formaram a primeira “bancada trans” da cidade. Segundo Dandara, a reação dos políticos é uma resposta à crescente conquista de poder observada em períodos eleitorais anteriores, com a eleição de Erika Hilton (PSOL) e de Duda Salabert (PDT), por exemplo.
E agora, para onde vamos?
Na semana após o primeiro turno das eleições, Carol Iara organizou diversas rodas de conversa em São Paulo. Ela acredita que essa é uma forma de mobilização efetiva no combate aos programas anti-trans vigentes. “Nós estamos em um período difícil, em que não tem grandes acontecimentos nas ruas. Nós estamos sós. Em 2013, milhões de pessoas estavam na rua reivindicando coisas. Agora, não tem nenhuma perspectiva no sentido mais disruptivo”, reflete. “Precisamos mobilizar e organizar as pessoas, para além de ganhar ou perder eleições. A gente não pode pensar que acabou a eleição, acabou a política. Muito pelo contrário”, destaca Carol Iara.
Uma perspectiva de avanço, segundo Davi Haydee, é a efetivação do Formulário “Rogéria”, que pretende mapear e levantar dados sobre violência LGBTfóbicas. Em setembro deste ano, o governo federal e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assinaram um Acordo para a implementação do Formulário de Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente à Comunidade LGBTQIA + em âmbito nacional. A expectativa é de que o procedimento ajude no letramento das diversas instâncias e instituições, para além das cortes superiores, sobre transfobia enquanto crime.
Do ponto de vista da conquista de direitos, Ravi Spreizner avalia que o momento é de atenção. “É de se esperar muitos embates envolvendo pautas de gênero e sexualidade nos próximos 4 anos”, diz Ravi. Ele acredita que as eleições de 2024 mostram que a luta por direitos da população trans está em um ponto crucial: “Estamos enfrentando tanto oportunidades de avanço, quanto desafios significativos diante de uma retórica que frequentemente distorce as pautas da comunidade.”