A autora do livro discordaria do que estou fazendo. Transformar a leitura desta obra em trabalho é, praticamente, o oposto do que o livro diz ao longo dele: descanse. Porém, sigo escrevendo, porque captei também uma segunda mensagem da obra: o descanso precisa ser coletivo, ecoar como um direito, senão se torna mais um produto do capitalismo. Logo, sinto que é um dever multiplicar o pensamento de Tricia Hersey por onde eu for.
O livro Descansar é Resistir: um manifesto (Fontanar, 2024) é uma imersão na história de como a artista, líder comunitária e poeta estadunidense Tricia Hersey, tornou-se a Bispa do Cochilo. A obra narra a criação do Ministério do Cochilo, uma organização criada pela autora que defende o descanso como um direito social. O livro entrelaça, do início ao fim, sua história com a teoria, deixando evidente que aquilo que defende não está separado de quem ela é.
A Bispa não dialoga apenas com a mente, mas com o corpo. Isso fica evidente já na primeira página: “espero que você esteja deitado enquanto lê este livro!”, diz o prólogo. Então, desde o início sabemos que não será uma leitura, apenas, mas uma convocação – e assim que Tricia consegue nos mobilizar profundamente. O primeiro aspecto que me fascinou sobre isso foi que, em momento algum, a autora dissocia o descanso da história social, política e, especialmente, racial de seu país.
Não é possível falar de direito ao descanso sem considerar o passado escravagista e segregacionista dos Estados Unidos, e em nosso caso, do Brasil. Foi, inclusive, olhando para a história de libertação do povo negro, dos Maroons, que a autora se deu conta que a criação de espaços próprios de resistência, que incluem o descanso, a festa e a alegria sempre foram estratégias de sobrevivência eficazes.
Mas ir além da sobrevivência é justamente o cerne do livro. Tricia percebeu-se em um ritmo imparável, correndo entre a Faculdade de Teologia na Emory University, criando o filho, trabalhando e vivendo triplas jornadas todos os dias. A autora assistiu também a seu próprio pai adoecer, enquanto ele sempre foi uma pessoa que cuidou a vida toda de outros – no trabalho e na Igreja. Foi sua avó quem lhe ensinou as primeiras lições sobre o descanso, quando desde criança ouvia ela dizer que, ao piscar demoradamente, estava “descansando os olhos.”
A sensação de que, toda vez que cochilava, sentia-se renovada também guiou Tricia nesta investigação de por que é tão difícil se desamarrar da cultura da produtividade. Durante a leitura, tive a sensação de estar me confrontando comigo mesma ao “ouvir” frases como “estou me matando de trabalhar”, “estou na correria”, “estou na pressa” estão presentes na nossa fala cotidiana.
Em 2017, após dez anos elaborando como o descanso pode ser revolucionário em sua própria vida, Tricia, aos 48 anos, começou a convidar pessoas para tirar cochilos coletivamente. O ambiente é preparado para oferecer conforto: travesseiros de qualidade, colchonetes espalhados pelo chão, luz baixa. No livro, ela relata que não imaginava que as pessoas poderiam se sentir confortáveis cochilando ao lado de desconhecidos, mas o resultado começou a surpreender. As pessoas acordavam relatando uma sensação de bem-estar, dizendo que gostariam de poder repetir a experiência mais vezes. Assim, nasceu o Ministério do Cochilo. A cena lembra aquela “hora do soninho”, das escolas e creches, em que o sono é tido como um momento de restauração. Quando foi que perdemos este entendimento?
Quando digo que Tricia “racializa” o descanso é que ela não deixa esquecermos que há um “legado de exaustão” em famílias negras. Ele explica que são gerações que precisaram viver no limite da sobrevivência e que é um dever agora prosperar e descansar. A atenção ao corpo é o foco de Tricia, porque é o corpo que serviu e serve como território de exploração e dominação. A autora lembra de retomarmos o nosso corpo como nosso, e não como do trabalho.
Uma virada de chave que sua teoria traz é a de que as pessoas “merecem” descanso. Hersey se contrapõe a esta frase tão comum e popular, e reflete que a perspectiva de merecimento só enfatiza que só poderemos descansar, caso trabalhemos muito. Do contrário, o descanso não seria “merecido”. Ela afasta a noção de descanso como uma recompensa pela produtividade e, inclusive, alerta para como o discurso nos leva a acreditar que se descansarmos ficaremos “melhores” em nossos trabalhos, voltaremos “melhores” para produzir ainda mais. Não é sobre isso, ela faz questão de repetir.
É uma escrita circular, espiralada, porque nos faz ler diversas vezes, de formas diferentes, aquilo que a autora defende. O Ministério do Cochilo é, em si, uma materialização bonita de um projeto, que é uma instituição, mas que também pode ser entendido como uma prática artística. A leitura de Tricia me lembrou da obra da Silvana Rodrigues, Relaxamento Afro, em que a atriz e performer reúne imagens de pessoas negras de descontração na piscina, na praia, ou então lendo um livro. Momentos de prazer e lazer. A obra, integra a exposição Dos Brasis, e acredito que também convoca um olhar ao descanso como uma frente que precisa ser habitada.
O livro também faz uma associação entre a cultura de produtividade, a falta de tempo, e uma sensação muito contemporânea de perder-se de si mesma. Enquanto eu lia, pensava que jamais conseguiria terminar o livro caso ele fosse escrito por um homem, cis, branco. Seria impossível. O poder deste livro é que ele foi concebido por uma mulher, negra, intelectual, mãe, e isso muda, sim, tudo. Porque as noções de tempo, de subjetividade, os medos, os sonhos, desta mulher me inspiram, me fazem perceber que pode haver um mundo em que o descanso é uma prática política, e que ela não serve a uma empresa, mas a um bem-estar comum.
A pessoa que me presenteou com Descansar é Resistir também precisa ser mencionada na resenha. Ganhei o livro da professora, arte-educadora e escritora Michele Zgiet, uma descansóloga convicta, com ela mesma se denomina. A Michele, assim como Tricia, já pratica o cochilo como uma prática de libertação há anos, em salas de aula com turmas de adolescentes. Foi dela que ouvi pela primeira vez uma história de como cochilar em coletivo faz bem, especialmente em lugares marcados por vulnerabilidades sociais. Ela é uma das colaboradoras do Onírico, um jornal que começou durante a pandemia a ouvir e noticiar os sonhos das pessoas. Como ouvir sonhos sem cultivar o descanso? Tricia relembra que o espaço de sonho foi roubado.
Sonho e descanso tem tudo a ver. Lembro também de um texto inesquecível da jornalista, escritora e professora da UFPE, Fabiana Moraes, em que ela fala da poesia enquanto um direito para pessoas negras. Em um momento crítico para decidirmos sobre a redução da jornada de trabalho, proposta pela deputada federal Érika Hilton (PSOL), acredito que autoras como Tricia, Fabiana, Michele, Silvana, e a própria Érika, nos proporcionam o entendimento de que a beleza, a poesia, o relaxamento, são direitos a serem conquistados. Não podem ser esquecidos ou entendidos como coisa menor. O descanso não é um luxo. “Devemos permanecer firmes no propósito de criar uma vida de descanso e cuidado radical, mesmo em meio à opressão”, diz Tricia, ecoando também os pensamentos de bell hooks.
A autora enxerga o descanso como uma espécie de hackeamento. Cochilar, descansar, festejar, são formas de subversão. “Se descansarmos, vamos descobrir o que está acontecendo”, ela escreve, deixando a letra para que pensemos além. “O descanso não é um privilégio , porque nosso corpo ainda é nosso, não importa o que os sistemas atuais nos digam.” Hersey diz que “dormir nos ajuda a acordar” – uma frase poderosa. “Descansar é resistir porque é uma contranarrativa ao roteiro do capitalismo e da supremacia branca para todas as pessoas.” A privação de sono é, segundo ela, uma questão de justiça social.
Normalizar a exaustão, o esgotamento, é assinar um pacto com as diferentes formas de opressão: o capitalismo, o racismo e o machismo. Tricia fala de espiritualidade, de forma ampla, embora sua família seja de origem protestante. Em algumas passagens, rabisco o livro adicionando a palavra Orí, pois a abertura que a autora traz, me fez refletir como o capitalismo mexe com as nossas cabeças. Produzir sem parar afeta o nosso axé, nossa energia vital, nosso Orí (cabeça) e o nosso Odu (destino ou caminho, em iorubá). Embora ela não utilize essas palavras, é isso que sinto ao ler.
O adoecimento físico, mental, espiritual, é uma consequência de um ritmo acelerado. No livro, Tricia conta que perdeu o pai prematuramente, aos 55 anos, um homem negro que nunca pode cuidar de si mesmo. Mas ela é firme, embasada e sagaz para não responsabilizar ninguém individualmente, porque estamos lutando contra sistemas. Ela considera a cultura da produtividade um trauma do qual todas nós, em alguma medida, precisamos nos curar. Não vai ser fácil, não vai ser rápido. É uma prática contínua. E precisamos começar.