Foto: Murilo Alvesso/divulgação

“Toda mulher que se impõe nos liberta”: pioneira na composição, Cátia de França completa 50 anos de carreira

Adélia de França, a primeira educadora negra do estado da Paraíba, dispensou os métodos de ensino prevalecentes no final da primeira metade do século XX e adotou a música como meio de alfabetizar a única filha, Catarina Maria de França Carneiro, nascida em 1947. Para a pequena Catarina, o beabá típico que permeia a fase inicial de aprendizagem na primeira infância não se deu através do b-com-a-que-faz “bááá”. Na cabeça da menina, o “balacacum, balacumbaca” tomou a dianteira na consolidação das sinapses responsáveis pelo processo cognitivo de aprendizado.

Dona Adélia entoava as canções e a pequena Catarina, mais tarde Cátia, ouvia, associava as palavras e imitava os gestos da boca da mãe ao repetir o que ela dizia para depois transpor para o papel, a caligrafia esmerada de filha de professora. Criada à base do coco, do forró e da música clássica, com Nelson Gonçalves, Núbia Lafayette, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro como sinfonia de fundo, já na infância uma artista começava a se formar.

A cantora, compositora e multi instrumentista paraibana Cátia de França está entre os nomes mais importantes da história da Música Popular Brasileira. “Eu fui uma das primeiras mulheres a tocar a guitarra. Embora eu não tenha gostado muito. Eu abandonei, fiquei no acústico até hoje”, conta em entrevista ao Nonada

No decorrer de seus 50 anos de carreira, completos neste ano, a artista enriqueceu a Música Popular Brasileira ao misturar, em suas composições, ritmos regionais do Nordeste como o coco e o ijexá com influências do pop e do rock. A mestra também se destaca pelo fato de ter sido uma das únicas mulheres – e talvez a única assumidamente lésbica – que compunha, tocava e interpretava suas próprias canções no período da contracultura, final dos anos 1960.

 Com composições repletas de referências cinematográficas, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e literárias, dialogando com as obras de José Lins do Rêgo, Manoel de Barros, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, Cátia construiu, em suas músicas, um cenário que honra a diversidade sociocultural do Brasil onde a vivência paraibana está no centro. Em “Djaniras”, ela reinterpreta frases de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa: “Lagoa serena/É a face desse homem/Viver é perigoso/Na memória, carteira, palmatória”.

“Ela transporta vários personagens para outras realidades, dando-lhes traços e experiências diversos daquilo que aparece nos textos literários; assim como provoca deslocamentos de lugares e paisagens, instaurando outros espaços imaginários e líricos”, avaliam os pesquisadores Lima e Resende, no artigo “O universo literário na criação musical de Cátia de França.” 

Centrada em cinco lançamentos, a discografia de Cátia é composta pelos álbuns Vinte Palavras ao redor do Sol (1979); Estilhaços (1980); Avatar (1996); Hóspede da Natureza (2016); e No rastro de Catarina (2024). Já em seu disco de estreia, a artista mostra toda a versatilidade sonora underground e as referências literárias que marcaram a sua carreira. 

Nos lançamentos posteriores, esses elementos vão se modificando, mas sem se distanciar por completo da essência regional e popular da artista, que, apesar de mais restrita a um grupo de ouvintes em virtude de sua recusa de produzir visando tendências da indústria musical, pensa o seu trabalho como popular-mundial. De Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro  a Elvis Presley, do blues à música clássica, a cantoria de Cátia de França carrega o que há de mais interessante na junção de diferentes culturas.

No artigo Cátia de França: vinte palavras de valentia ao redor do sol, a mestre em Musicologia pela ECA/USP Luana Ferreira Bernardo analisa a obra da compositora: “Quando se fala em Cátia de França, nada é escolha estética apenas. Os ritmos, gêneros musicais, referências literárias, históricas e cinematográficas foram eleitos por uma mulher que resiste enquanto artista negra, nordestina, lésbica e comprometida em denunciar a opressão desferida ao sertão nordestino (muitas minorias numa pessoa só, como a própria artista observa em algumas entrevistas)”. Sua voz, sustentada por forças ancestrais, brada vinte vezes a palavra valentia, cada vez mais alto, cada dia mais forte.

Cátia ao redor do Sol

“Nós tínhamos televisão. Então, eu comecei a ver aquilo. Os festivais universitários, Caetano, Gil, Bethânia. Tudo isso eu consumia. E muito Beatles. Eu não gosto dos Rolling Stones, porque é uma cultura da parte misteriosa, da coisa meio assustadora do rock. Eu gosto da genuinidade dos Beatles”, relembra Cátia, contando que ouvia também a Jovem Guarda. 

No começo dos anos 1960, a realidade da aspirante à musicista construída desde a infância mudou quando, aos 15 anos, foi mandada para Lagoa dos Gatos, Interior de Pernambuco, para estudar no Educandário Nordestino Adventista. A instituição era protestante, Cátia, hoje candomblecista, era católica. Seguindo os passos da mãe, quatro anos depois a filha retornou como professora formada. Tímida demais para lecionar em sala de aula para 30 crianças, exercer a profissão estava fora de cogitação. A mãe, que desde cedo valorizava os dotes artísticos da filha, determinou que, se não era pelo caminho da educação, que fosse pelo caminho da arte. Em 1966, tinha em mãos a carteira de musicista da Ordem dos Músicos da Paraíba e debaixo dos pés um longo caminho a ser percorrido. 

Embora tenha diminuído o ritmo, a carreira permanece a todo vapor. Indicada ao Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa com o seu último lançamento, No Rastro de Catarina (2024), Cátia enxerga o momento como mais uma vitória em todos os anos de trabalho. 

Em uma casa no topo de uma colina em São Pedro da Serra no Rio de Janeiro, onde os morros se erguem verdes e pontiagudos rumo ao céu e as casas lembram vilarejos antigos, Cátia acorda cedo, já nos primeiros raios de sol. Fazer ginástica é a primeira atividade do dia, que já se emenda na reza do terço acompanhando a missa de Padre Antônio Maria. Depois da oração, Cátia prepara o café e lê a bíblia, direcionando preces para todos os santos a quem estima, em especial Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota. 

Acompanhada dos dois gatos, a cantora passa os dias imersa em leitura e contemplação, a TV ligada 24 horas por dia para amenizar o silêncio e a pacatez da morada. Mariazinha, a gata tricolor, é quem manda em tudo. No toca-discos, há sempre alguma música em reprodução. Eventualmente, Cátia vai até a casa ao lado, que também aluga, para verificar em que estado estão os seus outros nove gatos e seus pertences históricos, sua biografia material e musical. Nas quartas, ela tem reunião do candomblé e na segunda, é dia de cuidar de três orixás: Nanã, Exu e o Omolu. “Eu tenho que cuidar dos três, tenho os assentamentos aqui em casa”. 

Quem vai quem vem 

Como já naquela época todos os caminhos levavam ao eixo Rio-São Paulo, foi no Rio de Janeiro que Cátia aportou na busca pela expansão de seus horizontes. Apesar da crescente visibilidade no Nordeste, na cidade maravilhosa, mesmo com indicação, as portas não se abriram com facilidade para a paraibana. A cantora conta que o pai de Cazuza, o produtor musical João Alfredo Rangel de Araújo, fundador da Som Livre, extensão fonográfica da Globo, até tentou inseri-la no quadro musical da emissora. Mas a concorrência era grande. Ainda na Paraíba, a cantora chegou a trabalhar durante um período como repórter no Jornal A União. João Araújo, não querendo se desfazer da cantora de imediato e sabendo de sua experiência como repórter, mandou-a para o setor de jornalismo. Cátia foi de setor em setor, até se encontrar na mesma condição em que estava quando primeiro chegou à cidade: do lado de fora. 

Desempregada, com pouca recepção para o seu trabalho no Rio de Janeiro e precisando se manter de alguma forma, Cátia conseguiu um emprego como datilógrafa no centro da cidade. O anúncio de contratação publicado no jornal deixava claro o racismo da empresa norte-americana onde trabalhou por três anos: “No black”. Não aos candidatos negros. Mas Cátia foi contratada, tinha habilidade e experiência. Dona Adélia, que naquela época permanecia na Paraíba sendo cuidada pelas cinco irmãs, lhe presenteara com uma máquina de escrever na juventude. Cátia usava o objeto mais como percussão para criar suas músicas. O tempo como repórter na Paraíba também pesou na contratação.

A artista encontrou a vaga de emprego graças à comunidade de mulheres nordestinas que viviam numa república no Rio, onde fez amizades. Também foram as amizades da república que, mais tarde, pagaram o agenciamento de carreira da paraibana. A cantora estava de volta à cena. De segunda à sexta era datilógrafa e aos sábados e domingos era artista. Vestia roupas africanas e usava uma peruca black power para cantar nas regiões periféricas da cidade, onde os artistas negros eram melhor recebidos. Apresentava músicas autorais, mas não deixava de cantar Tim Maia, Jorge Bento e Neto Nascimento. Encontrou o caminho das pedras. “As pessoas me queriam. Eu era uma pessoa bem humorada. Eu não só cantava, eu também conversava com as pessoas”, lembra. 

O bom humor de Cátia conquistava não só os corações da plateia, como também oportunidades. Em 1975, por indicação de Elba Ramalho, o dramaturgo recifense Luiz Mendonça a convidou para integrar a orquestra de seus espetáculos em São Paulo. Os espetáculos contavam com artistas como Elke Maravilha e Baby Conceição. Em pleno período de ditadura militar, o grupo de artistas encenava peças altamente críticas ao governo. Mas as histórias eram tão bem embrulhadas que os censores não percebiam.

“A polícia odiava nordestinos”, relata Cátia. Em mais de uma ocasião, o grupo de artistas foi preso sob a justificativa de não portar documento. Mas sempre resistiram. Seguiam com as encenações de Lampião no Inferno, Viva o Cordão Encarnado e histórias de Pedro Malasartes. Ficavam entre o sacro e o profano seguindo a premissa de que quase tudo que é engraçado é proibido.

Ao voltar pro Rio, Cátia recebeu o convite de Zé Ramalho para tocar percussão e sanfona com ele. O paraibano estava começando seus trabalhos como guitarrista na cidade de encantos mil junto da Banda Batalha Cerrada, de Alceu Valença. Depois que Zé Ramalho saiu da banda, ele e Cátia começaram a trabalhar no primeiro disco da cantora, 20 Palavras ao redor do Sol, lançado em 1979. O trabalho é uma pérola da Música Popular Brasileira, com participações de Dominguinhos, Sivuca e Severo nas sanfonas, Chico Batera e Sérgio Boré na percussão, Amelinha e Elba Ramalho nos vocais. Teve também participação de Bezerra da Silva tocando berimbau e Lulu Santos na guitarra.

O álbum foi relançado em 2022 durante a pandemia de coronavírus pela gravadora Três Selos.  “Até pensei que fosse um trote. O mundo inteiro com medo de uma doença e chega uma pessoa me ligando sendo que eu estava no meio do mato”. O relançamento do disco recolocou o nome de Cátia na boca do público e da crítica. Hoje, existe toda uma juventude que conhece e canta as músicas da artista por conta da internet. “Foi como uma ressurreição. Eu fico besta porque tem gente me ouvindo lá no Japão”, diz. 

Agora com um novo álbum lançado em 2024, Cátia aguarda, ansiosa, a cerimônia de premiação do Grammy Latino deste ano. Ela se prepara para embarcar para Miami, onde o evento deve ocorrer no próximo dia 14. Em publicação no Instagram, a artista diz que leva para a premiação “cada acorde e cada palavra que nasceu dessa nossa terra e das histórias que trago na alma”. 

Sustenta a pisada

As primeiras apresentações profissionais de Cátia aconteceram “na noite” paraibana, como se chamava, na companhia de seu professor de violão, o seresteiro Romualdo. O pai, ao contrário da mãe, via com maus olhos as empreitadas artísticas da filha. Se naquela época já era feio para um homem viver uma vida boêmia, para uma moça de família era algo impensável, ainda por cima se acompanhada de vários rapazes. Mas não tinha jeito, Cátia já estava ganhando projeção na Paraíba, vencendo concursos musicais. Não tinha quem a segurasse. “Toda mulher que se impõe nos liberta”, afirma.

Depois de desbravar o território musical e cultural da capital onde crescera, Recife começou a receber a cantora com cada vez mais frequência. O prêmio que recebeu ao ganhar o Festival de Artes Populares da Paraíba foi a gravação de um disco na gravadora Rozenblit, a primeira gravadora criada fora do eixo Rio-Sã0 Paulo. A Rozenblit produziu artistas como Tom Jobim, Pixinguinha, Tom Zé e Zé Ramalho, que mais tarde teria papel importante na carreira de Cátia. 

Foi durante uma apresentação em Campina Grande que a cantora conheceu Elba Ramalho, que naquele período também começava a despontar no cenário musical da região. O encontro deu início ao seu contato com os irmãos Ramalho e a aproximação das duas rendeu à Cátia uma experiência internacional. Elba embarcaria para a Europa em comitiva para participar de um programa de incentivo ao intercâmbio cultural em parceria com Portugal e Espanha.

A cantora emergente, ciente de que Cátia sabia tocar vários instrumentos, convidou-a para integrar a pequena orquestra do grupo musical liderado pela tutora de Elba, a professora Elizabeth Figueiredo Marinheiro, a primeira mulher eleita para a Academia Paraibana de Letras. O sonho da professora era levar os estilos musicais nordestinos para o território europeu.

Num primeiro momento, Cátia foi aconselhada a não integrar o programa. A cantora estava dando o que falar no Recife e na Paraíba. Uma das músicas gravadas na Rozenblit gerou repercussão. No intercâmbio, a cantora não receberia o destaque de vocalista. Esse papel seria de Elba. Então por que deixar o Brasil justo quando a carreira solo estava decolando? Cátia queria a música, independente se o voo alçado seria em grupo. A proximidade com Elba Ramalho e o respeito pela professora Elizabeth a fizeram optar pelo além mar. “Eu deixei isso adormecer para seguir o sonho de Elizabeth. “É uma coisa que a gente faz concessão, que mais na frente a gente ganha resposta”, diz a cantora. Além disso, constaria no currículo da cantora as apresentações nas casas de fado de Lisboa e nos teatros de Madri. 

“Chapado de Cátia de França”

No início dos anos 1980, o professor da Universidade Federal de Uberlândia Haroldo de Resende era apaixonado por Elba Ramalho. Não tardou a perceber que muitas das músicas da cantora de que gostava carregavam o nome de uma compositora também paraibana: Cátia de França. “Eu ficava de antena ligada querendo saber quem que era essa mulher”, ele conta. A música “Kukukaya”, do álbum Ave de Prata de Elba Ramalho, não saía de sua cabeça, muito menos o nome da compositora. E por algum tempo ficou por isso mesmo.

Cerca de dez anos depois, no começo dos anos 1990, o mineiro entrou numa loja de discos e se deparou com o nome da compositora misteriosa em dois LP’s: Estilhaços, de 1980, e 20 Palavras ao redor do Sol, de 1979, álbum de estreia. Primeiro comprou Estilhaços e, como diz, ficou chapado de Cátia de França. Insaciável, voltou à loja no dia seguinte para intensificar o arrebatamento: comprou o primeiro disco lançado pela cantora. “Aí sim foi que eu fiquei mais louco, mais arrebatado ainda, porque é um disco muito forte”. Se trancava no quarto e passava horas no embalo das canções pungentes da paraibana.

Durante muito tempo, essas eram as únicas referências que Haroldo tinha de Cátia. Até que surgiu a internet. No site de busca AltaVista, o professor encontrou o blog do jornalista Roberto Homem que, assim como ele, era apaixonado pela cantora. Foi com o jornalista que Haroldo conseguiu o contato de Cátia. Depois que recebeu uma resposta ao primeiro e-mail enviado, a correspondência entre o professor e a artista, cuja acessibilidade ao público é de se destacar, manteve um fluxo contínuo. 

A relação entre fã e artista só cresceu. Haroldo chegou a ser reconhecido por Cátia como seu biógrafo, uma vez que o professor, em meados dos anos 2000, chegou a reunir documentos a respeito de sua história para produzir a biografia da cantora. O texto nunca saiu. A proximidade entre os dois era grande demais. O medo de que o que escrevesse não estivesse à altura da artista paralisou o professor. “Ao mesmo tempo que ela é uma pessoa muito forte, ela também tem uma delicadeza muito grande”, observa.

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Estudante de Jornalismo na UFRGS. Repórter em formação. Gosta de escrever sobre o Outro. Na mesa de cabeceira há sempre um romance. Cearense no Sul.
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