Foto: Yamini Benites

Do nosso chão: sambistas de Porto Alegre resgatam sua ancestralidade em espaços de origem negra

Gabrielle de Paula, especial para o Nonada e a Anu Jornalismo

Uma roda de samba é como uma flor que, impulsionada pela necessidade de nascer, rompe a dureza do asfalto e pode fazer uma outra também crescer. O samba, essa manifestação cultural tão ancestral encontrada em cada canto do país, também tem suas diferenças no jeito de ser cantado e tocado, assim como há diferenças nas formas  que podem sufocá-lo.

Em Porto Alegre (RS), onde o Carnaval foi expulso do Centro no início dos anos 2000 e onde o processo de gentrificação dos bairros concentrou a população negra nas áreas periféricas, não é coincidência que as rodas de samba na rua tenham sido cerceadas e que os novos projetos lutem tanto para se consolidar. “Samba tem, sempre teve, só não tem valor aqui”, sentencia Nêgo Izolino, um dos pilares do gênero no Rio Grande do Sul.

sou o samba das escolas em todos os carnavais, sou o samba da cidade e lá dos confins rurais

Na Porto Alegre dos anos 50, já ocupada pela imponência do viaduto da avenida Borges de Medeiros, símbolo da modernização que provocou a remoção da população negra para as periferias da cidade, é o morro Menino Deus (hoje Santa Tereza) que guarda as primeiras memórias do advogado, escritor e co-fundador do grupo Palmares (responsável por difundir o 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra), Antônio Carlos Côrtes: “Eu tinha uns sete anos de idade e me lembro dos encontros nas esquinas, os sambistas faziam uma fogueira para esquentar o couro dos tamborins e foi assim que eu aprendi que era uma forma de afinar o instrumento”.

Com suas esquinas e encruzilhadas, a rua é onde se resgata a ancestralidade de um gênero musical negro, nascido em terreiros e quintais. Mesmo em um Brasil projetado a partir de uma ideia de exclusão marcada pelo racismo, a rua sempre foi o lugar de espontaneidade entre as pessoas. Assim, o amor ao samba, que ligava os músicos da esquina à casa da mãe de santo do morro Menino Deus, encontrou mais um elo: as ‘tribos’ e grupos carnavalescos.

“Quando eu fui morar no Centro, meu pai trabalhava como zelador, comecei a frequentar o Carnaval da Borges de Medeiros, antiga avenida dez, tinha umas catorze ‘tribos’ que desfilavam. Eu, meus primos e amigos chegávamos mais cedo para guardar lugar para os mais velhos e aquilo tudo nos encantava. Ainda não era samba-enredo, eram hinos em ritmo de batuque. Depois vieram as escolas de samba nos anos 60, com a Praiana inovando e trazendo as alas separadas como as do Rio de Janeiro”, completa.

Antônio Carlos é um dos criadores do Dia da Consciência Negra e pesquisa o samba gaúcho (Foto: Bruno dos Anjos)

Para o jornalista e pesquisador Renato Dornelles, não há um marco exato do surgimento do samba na cidade. Nos anos 30, o gênero começava a ser tocado em jazz cafés por mini orquestras, nas quais surgiram nomes como Horacina Côrrea, cantora nascida na Colônia Africana (Rio Branco/Mont’Serrat) e que foi sucesso nas rádios porto-alegrenses da época. “Uma curiosidade interessante é que na Casa Elétrica, uma das primeiras gravadoras do país, há o registro de uma música de 1913 como samba, mas não se tem partitura, nada. Se isso fosse comprovado, seria o primeiro samba do Brasil sendo gravado aqui, porque data antes da gravação de ‘Pelo telefone’ do Donga, em 1916, no Rio de Janeiro”, conta.

Já sobre os territórios onde nasceram as raízes do samba porto-alegrense, não há dúvidas: em regiões como a antiga Colônia Africana, o Areal da Baronesa e a Ilhota, já havia manifestações mais populares, pois eram redutos negros que executavam o samba na cidade. O quilombo do Areal da Baronesa deu origem ao Carnaval de rua da cidade. A Ilhota, um território negro do início do século 20, se chamava assim pois era circundada pelas águas do arroio Dilúvio. Não só é o berço de Lupicínio Rodrigues, como também o berço da cultura carnavalesca e de rodas de samba que fizeram o Brasil conhecer Lupicínio:  “Os marinheiros de outros estados que chegavam pelo porto, frequentavam os bares populares da Ilhota e ouviram ‘Se acaso você chegasse’ em uma dessas rodas e começaram a cantar a música lá no Rio, o que fez com que as pessoas buscassem conhecer o compositor”, explica Renato.

Neste ano, a exposição “Corredor do Samba de Porto Alegre”, exibida na PUCRS, deu destaque para as vivências negras da cidade, trazendo uma reflexão a respeito do Arroio Dilúvio e a sua relação com o samba negro. “Eu, como mulher negra, quero abordar a memória e as nossas tradições, mostrando o que temos de positivo na nossa cultura e não é visto”, afirma a professora de Culturas Afro-gaúchas da Unipampa e uma das curadoras da mostra, Sátira Machado. A exposição resgata as experiências das comunidades que possuem relações históricas com as águas do arroio.

Desfile de 1967, na Av. Borges de Medeiros (autor desconhecido/Museu Joaquim Felizardo)

“A gente tinha ali a transversalidade da cultura negra, a gente tinha encenação das ‘tribos’ carnavalescas. Era um ritual, uma emoção muito grande, eles já cantavam a defesa da natureza, a preservação do meio ambiente. Naquela região ali do Areal, da praça Garibaldi, na Ilhota, tinham muitos blocos e ‘tribos’, inclusive uma só de mulheres, as Iracemas”, diz Antônio Carlos.

No entanto, a partir da década de 1940, esse importante território deixou de existir para a canalização do arroio e boa parte da população foi removida para o extremo-sul, para onde hoje é o bairro Restinga. “Algumas das comunidades mais tradicionais do samba deixam de existir devido ao processo de gentrificação que expulsou as pessoas pobres e negras da região central e das regiões consideradas nobres”, afirma Renato. Hoje, de acordo com o Censo Demográfico de 2022, a população de Porto Alegre é composta por 20,2% de pessoas negras.  Já os dados mais recentes da composição étnico-racial dos habitantes por região são do Censo de 2010,  que mostravam que a população negra da cidade estava concentrada nos bairros Humaitá, Sarandi, Rubem Berta e Restinga. Todos são bairros da periferia. O Humaitá e o Sarandi foram as regiões mais afetadas durante as enchentes de maio deste ano e as que permaneceram por mais tempo embaixo d’água.

Em 2004, também foi levado para a periferia o palco principal dos desfiles das escolas de samba, que atualmente ocorrem no Complexo Cultural do Porto Seco, zona norte da capital, sob o argumento de que a transferência representaria “o acréscimo de público e a significativa qualificação nos desfiles das agremiações”. Duas décadas depois,  a construção de arquibancadas fixas não foi realizada até hoje. Ainda que as administrações municipais desse período garantam que melhorias foram feitas, o que se vê na prática é mais dificuldade para desenrolar o pavilhão e comunidades inteiras na busca de financiamentos próprios. 

A festa, que tem capacidade de gerar em torno de 2.500 empregos de forma direta e indireta, para costureiras, serralheiros, pintores e artistas, vivenciou um episódio emblemático em 2017, durante a gestão de Nelson Marchezan Jr. (PSDB).  Além de não contar com a verba da Prefeitura naquele ano, o Porto Seco havia sido interditado pela Justiça e pelo Corpo de Bombeiros por descumprimento do PPCI (Plano de Prevenção Contra Incêndio). As escolas da série prata não puderam desfilar e o público teve que voltar para casa. Em 2024, o governo do atual prefeito Sebastião Melo (MDB), destinou um orçamento de R$3 milhões para viabilizar o desfile e anunciou estar buscando parceiros privados para melhorar a infraestrutura.  

Porém, para Antônio Carlos Côrtes, que acompanha o Carnaval desde o seu nascimento, parece difícil encontrar quem queira investir em um evento que não tem expectativa de receita, já que um dos desafios é a redução da participação do público, que se reveza no papel de espectador e de artista. É o tempo de atravessar a avenida e voltar para a arquibancada para ver os amigos e familiares desfilarem. “Sem infraestrutura para atrair diferentes públicos fica inviável. Sem público não há cobertura, não há visibilidade, não há divulgação dos sambas-enredo e se perde em harmonia”, diz. 

Ainda assim, mesmo com menos poder e com menos força, Renato Dornelles acredita que as escolas de samba ainda são um espaço de fundamento: “Elas ainda reúnem um grande número de negros né, por isso elas incomodam muita gente, gente que não quer conviver com esse segmento. As escolas são uma espécie de quilombo do cenário cultural”, afirma.

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Quilombo do Areal da Baronesa (Foto: Ita Pritsch/Nonada)

O encantamento pela cultura negra da cidade e a visão de que as escolas de samba são espaços de resistência tiveram grande efervescência já em 1971, quando um certo grupo de amigos se encontrava em um apartamento na rua dos Andradas, a casa do pai de Antônio Carlos. Os encontros e leituras trouxeram à tona a data da morte de Zumbi dos Palmares e ali era concebido o Dia da Consciência Negra, proposto pelo poeta Oliveira Silveira junto ao Grupo Palmares. “Ali nós já tínhamos uma visão de que as escolas de samba eram os quilombos da nossa época”, relembra Antônio Carlos.

Consequentemente, a retirada desses “quilombos da cultura” do Centro da capital, representou um olhar mais rígido do poder público e da vizinhança para as manifestações do samba na rua, para a ocupação do espaço público e para a Cidade Baixa, bairro tradicionalmente boêmio, onde nos últimos anos se tornou comum presenciar a dispersão da concentração de pessoas com bombas de efeito moral pela Brigada Militar. “Sem dúvida, o Carnaval na área central atraía mais público de diversas partes da cidade e também fazia com que movimentasse a região em termos de roda de samba. Isso foi um ato elitista, é um racismo, porque de todas as manifestações culturais, foi a única retirada do Centro, uma manifestação majoritariamente negra e de pobres. Colocar no extremo é isolar”, afirma Renato.

no compasso do tambor, sou um toque de batuque

E não é que estar no centro seja determinante para o samba acontecer. Pelo contrário, é também pelas margens que a cidade foi sendo abraçada por ele. Por amor, por afinidade, por força das circunstâncias. Dizem que é destino de quem carrega em si a historicidade abrir passagem para a musicalidade. Seguiu e segue sendo nos quintais das famílias aos domingos ou nos botecos de esquina dos bairros periféricos, no São José, no Partenon, na Restinga: “São bairros que ainda mantêm uma tradição de samba, ainda que as rodas de samba tradicionais também tenham sido expulsas, seja por ação judicial ou pelo executivo”, diz o pesquisador Renato Dornelles.

Há quem se lembre com saudosismo das rodas semanais que aconteciam no extinto bar do Ricardo, na Vila Maria da Conceição (até os sambistas famosos do Rio de Janeiro vinham conhecer). Ou das rodas dos irmãos Félix no Quintal do Giba, no bairro Rubem Berta. Há quem diga que se você quer ver a população negra de Porto Alegre, basta ir em um arrastão da Banda da Saldanha, um patrimônio sócio-cultural da cidade que há mais de 45 anos mobiliza seus seguidores para o samba de quadra e para o Carnaval. E há quem aprendeu o samba de roda junto com a Banda Itinerante, que a cada sábado ia tocar em um lugar diferente de forma voluntária (o local sempre era informado na coluna de Renato no Diário Gaúcho, a “Chora, cavaco”).

É como diz a canção Memória Popular do compositor gaúcho Xannd Sy e de parceiros, destacando também a zona norte: quem conheceu vai contar, que o pranto da índia indicava o lugar, no Amarelinho era fácil encontrar o Testa, o Andrezinho, Gatiado e Alemão, samba no campo do Walling, Paulo do Banjo puxando o refrão. Gente que é referência, se não para a cidade,  com certeza para seus pares. Xannd Sy é um nome da cena contemporânea que tem se empenhado em  valorizar essas referências e visibilizar os sambistas locais.

Xanndy Si é compositor e participa de diversas rodas na cidade (Foto: Yamini Benites)

“Eu comecei no início dos anos 2000 e acredito que ainda que tenham dificuldades, a gente tá no melhor momento para esse tipo de samba, mais tradicional”, diz. Ele apresenta um programa na rádio Nova Metrô, no qual entrevista compositores e compositoras. Sim, elas também marcam presença no programa e são muitas: Delma Gonçalves, Maria do Carmo, Luciara Batista, Natalia Santos, Pâmela Amaro.

Nascida no bairro Medianeira, Pâmela Amaro cresceu circulando pelo Menino Deus e vivenciando o samba com a família no bairro Santa Cecília, em Viamão, onde o pai tocava pandeiro na banda que tinha com os irmãos. Com o seu trabalho autoral Samba às avessas, ela tem ganhado reconhecimento, faz shows e participa de festivais, sem deixar de frequentar as rodas em diferentes regiões: “Me sinto abraçada pela comunidade em relação ao meu trabalho, e sentir isso na tua cidade é maravilhoso”, diz.

“Era difícil a mulher ter valor no samba, assim como era em tudo. Mas agora fico feliz que temos muitas que são reconhecidas. Temos a presença de mais mulheres cantando samba e tocando também”, comemora a intérprete Maria Helena Montier, que cresceu no bairro São José, na zona leste. Aos 80 anos, Maria Helena é uma diva do Carnaval gaúcho e já ecoou com a sua voz os enredos da Imperadores do Samba, da Realeza e das tribos Bororós e Comanches. Apesar de somar mais de seis décadas de contribuição ao samba porto-alegrense e à cultura brasileira, ganhar dezenas de prêmios como intérprete e ser destaque no Clube do Guri ao lado de Elis Regina, a notoriedade é difícil quando se é uma mulher negra cantando samba no sul do Brasil.

Mesmo assim, cantar samba trouxe as melhores recordações que ela guarda, que remetem a um tempo de confraternizações boêmias, com encontros de sambas em clubes e salões, e com o Carnaval no coração da cidade. “Década de 70, até ali os anos 80, a gente tinha a melhor época dos clubes negros na cidade e dos nossos desfiles. Algo fundamental para a cultura negra. Hoje isso se perdeu, é muito longe para o povo se organizar, para as comunidades. Não há reconhecimento da importância do nosso samba”, destaca.

Nêgo Izolino, 81 anos, outro bamba do samba porto-alegrense, concorda que não há reconhecimento. Embora acredite que não dá para afirmar se teria, caso morasse em outro lugar, para ele ser sambista em Porto Alegre é uma questão racial: “No meu caso, tem gente que me bota lá em cima e gente que me coloca lá embaixo. Mas quem pisa, não é nada pelo samba, tudo por causa disso aqui [esfregando a mão no braço e apontando a cor]”.

Autor de mais de 200 composições, o samba entrou tarde na vida de Izolino. Quando criança, a mãe foi para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e, ele,  levado ao asilo Padre Cacique, na época em que a instituição atendia menores. Cresceu em um colégio interno de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, onde não tinha muito acesso à música e onde de vez em quando ficava sabendo sobre os famosos festivais de MPB dos anos 60. Quando já prestava o serviço militar, fez amizade com um vizinho que não só lhe apresentou o samba, como o ensinou a tocar.

Mestre da caneta, Izolino também fez um curso técnico de desenhista e paralelo à profissão de projetista de construção, foi construindo sua música: “Tenho a música ‘Divina Luz’, que escrevi esperando o ônibus na avenida Assis Brasil, depois de ler uma placa, perto do hospital Cristo Redentor. Quando cheguei no escritório em que eu trabalhava, o filho do patrão leu e não acreditou”. A inspiração, ele atribui à sua curiosidade e às referências do samba carioca: “Depois que comecei a aprender, comecei a pesquisar Roberto Ribeiro, João Nogueira, e passou a ser o que eu mais gostava de ouvir, aí virou festa”, ri.

Se tratando de um gênero musical famoso nos batuques e rodas do Rio de Janeiro, é natural que as inspirações do sudeste cruzem as antigas e as atuais gerações: “Dona Ivone é uma poesia, Leci vem com letras políticas, Nilze Carvalho uma instrumentista que acompanha muito bem. Já Candeia traz aquele sofrimento verdadeiro do poeta, tem a malandragem do Zeca, o partido alto do Sombrinha… esses sambistas me inspiram muito, principalmente na forma de compor. Porque no samba tem coisa séria que a gente pode falar com humor. Então no samba a gente reflete tirando uma onda, sabe?!”, ilustra Pâmela Amaro. 

Rodrigo Fontoura, o Fileh, apesar de ter iniciado sua vida na música tocando rock, também é um personagem da nova geração que transita por diversos projetos de samba, atua no Carnaval da cidade e que busca a valorização dessas referências: “Eu me lembro de ouvir os discos de samba com meu pai e comprar o cd dos sambas-enredo do Rio com a minha tia. E hoje entendo que ser sambista em Porto Alegre é fugir dos estereótipos criados por pessoas que ignoram o gênero. É desconstruir que o samba é algo só lá de cima e mostrar que aqui existem sambistas. De qualquer forma, eu canto e preservo os nomes da minha cultura, sejam do Rio, de São Paulo ou do sul”. 

Talvez a particularidade mais aparente do samba gaúcho ainda esteja no sotaque ou na vestimenta, já que nos meses de inverno é preciso abraçar o cavaquinho de blusão e casaco. E mesmo que samba seja samba em qualquer lugar, a batida, os sons e as referências são carregadas de autenticidade. “Pra gente descobrir as particularidades do samba gaúcho, a gente tem que cantar ele. Pra gente sentir esse samba e entender como ele é. Pensando nas letras do mestre Paraquedas, Mamau de Castro, Vilson Nei, nas minhas próprias canções… vejo que a gente traz muito os elementos da matriz africana do sul, orixás, o batuque, são coisas que aparecem bastante”, afirma Pâmela.

A sambista Pâmela Amaro (Foto: Luis Ferreirah/divulgação)

A posição geográfica do Rio Grande do Sul, segundo o pesquisador Antônio Carlos Côrtes, contribuiu para a cadência e a marcação do samba, que teve influência de elementos cisplatinos, como o candombe. Desde as charqueadas em Pelotas, no sul do estado, o cabobu e o sopapo, que antes eram meios de comunicação entre os negros escravizados, são instrumentos de percussão que conferiram identidade ao Carnaval gaúcho. Nêgo Izolino iniciou sua carreira no Carnaval somente em 1985, com a composição de um samba para os Acadêmicos da Orgia. 

Para ele, o samba gaúcho tem outra poesia e ainda hoje se busca muito aquilo que é feito fora do estado. Relembra com orgulho de pensar os sambas-enredo com uma identidade própria. “Em 87, um amigo pediu ajuda pra um enredo do Imperadores sobre Bahia. E eu pensei ixi! Eu lia, lia e nada. Aí pensei em escrever do nosso jeito, né, e foi. Colei uma parte na geladeira e de madrugada acordei com a letra descendo! Peguei o gravador e gravei. De manhã, levantei e a nega me xingando, ‘o que era aquela batucada’? Eu disse, mas eu acordei agora. Aí peguei o gravador pra conferir e ah, tava pronto!”.

O que não dá pra esquecer também são as gafieiras e o balanço das antigas. Com seus bailes black, os clubes negros da cidade, como o Evolução,  o Floresta Aurora e o Satélite Prontidão, contribuíram para dar swing ao samba. Porque  lá no Partenon a rapaziada faz rock, mas é trópi e tem toque de samba também. “Nacionalmente, o Luis Vagner – o guitarreiro, o Grupo Pau Brasil, que tinha participação do Bedeu, são responsáveis pela reverberação de novos sambas gaúchos para o Brasil”, lembra a professora Sátira Machado. 

Bedeu, Iberi, Delma Gonçalves e Leleco Telles, nomes do samba-rock ou suíngue gaúcho (Foto: acervo pessoal)

Curiosidades como essas são a história do samba porto-alegrense. De gente brasileira de um só chão. Do nosso chão. Muitas vezes silenciada, mas que de alguma forma insiste em ser contada. No final de 2023, a Acadêmicos da Orgia e o Instituto Oliveira Silveira entregaram uma solicitação de apoio ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS), para consolidar um dos antigos sonhos das duas entidades: transformar a quadra da Escola na Avenida Ipiranga numa quadra modelo. “Queremos o tombamento da esquina, criar um museu, fazer uma estrutura acústica, para que a cultura negra não seja sinônimo de ‘barulho’. Na exposição Corredor do Samba, mostramos que o Dilúvio conecta vários bairros pelo samba”, diz Sátira.

Ser sambista é não estar sozinho. É uma comunidade que compartilha histórias e valores, pessoas que atravessam o tempo, que não esquecem de onde vêm. Da família, dos amigos, do seu bairro. É coletividade em roda. Que conecta Izolino e Maria Helena ao legado. Fileh à roda do Andaraí nos anos 2000, a primeira que ele sentou para tocar. E Pâmela à batalha de qualquer compositor para que a sua música seja escutada. E é por não estar sozinha, que tenta lembrar de todos: “Porto Alegre tem muitos projetos maravilhosos. Vou para me divertir também, tem o Por todos os pagodes, Samba da Galeria. Projetos só de mulheres como o Herdeiras do Samba e o As Rainhas… É o que dá sentido pro nome da cidade, né. O samba é essa filosofia que alegra a alma”, reflete Pâmela.

entre os filhos desta terra naturalmente sou um 

Embora a base do repertório seja a mesma, nenhuma roda de samba é igual. Você pode escutar e cantar Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, João Nogueira e outros tantos célebres do samba carioca em todas elas, no entanto, o local e o público também são os protagonistas. Sejam aqueles que se deslocam para o samba na quadra, sejam os que acabam esbarrando com o gênero na esquina. 

Como a semente plantada no puro chão, em 2017, em uma das ruas mais antigas da cidade, surgia o Samba do Arvoredo. Se os caminhos da atual Fernando Machado são permeados pelos mistérios que despertam curiosidade sobre crimes macabros no século 19, não tem mistério nenhum o que levou quatro amigos a fundar uma roda com a alcunha antiga da via: o simples desejo de colocar o samba na rua, de encontro ao povo, de forma acessível e democrática.

“Próximo aos bares do futebol, a gente começou a tocar todo sábado, eu, Thomas, Alessandro Avena e Andrezinho, começamos a fazer um movimento recorrente ali, até que chegou a pandemia, aí tivemos que segurar”, conta Giba Costa. E como quem enverga mas não cede, passado o isolamento social, o grupo voltou a se reunir, dessa vez na também famosa Rua da Margem, atual João Alfredo, rua boêmia da capital. A cada segundo sábado do mês a roda inicia com uma espécie de prece, todos de pé, na palma da mão: Tô pedindo licença pro meu orixá. A música cantada é Agô pra beber,  do compositor Xannd Sy, que também é integrante do projeto.

 Mesmo sendo uma das rodas que mais se aproxima da rua, o Samba do Arvoredo ainda segue no meio fio: tantan na rua e o cavaquinho na calçada. Isso porque o projeto conta com apoio do Gal Arte Bar, que disponibiliza mesa e cadeiras na calçada e isola um cantinho da via para os músicos e o público. “Isso retrata a dificuldade que um movimento como o nosso enfrenta para colocar nossa cultura na rua. O projeto não é algo restrito a um estilo musical, mas representa uma filosofia, um ato político de fazer do samba um lugar acessível para qualquer pessoa, seja para o morador de rua, seja para o cara que tá passando de bike. Por isso, priorizamos estar na rua”, afirma Thomas Barros.

Dessa forma, foi preciso nascer o Ramos do Arvoredo, uma formação reduzida do grupo para apresentação em eventos privados e bares fechados: “A gente se organiza assim porque o nosso compromisso na rua também é um resgate ancestral, com a prática da disseminação da nossa cultura através do samba”, completa Thomas.

Em suas reflexões e memórias, Antônio Carlos Côrtes gosta de dizer que o samba é exatamente esse resgate e o diálogo com a ancestralidade: “Vai buscar quem mora longe. Quem mora longe? A ancestralidade, que está em outro plano, no plano de Olorum. E a batida, o  tambor,  é essa forma de comunicação. Como diz o João Nogueira também, é uma luz que chega de repente, eu recebi e passei”, diz. E é nessa conversa entre amigos, com  o desejo de compartilhar confraternização com mais gente, que nasceu o Samba da Conversa.

O Samba da Conversa é uma roda mensal e itinerante. (Foto: Yamini Benites)

O que antes era um encontro no quintal passou a ser uma roda aberta ao público em abril de 2022, em uma hamburgueria da zona norte, e hoje é uma grande conversa itinerante que percorre pontos da zona sul, como quadras esportivas e a Escola Imperadores do Samba. Em dois anos, o Samba da Conversa, sem aparelho de som, cantado no gogó e batido na palma da mão, viu seu público crescer muito, quiçá triplicar, o que demonstra o apelo e a identificação com a proposta. Com uma presença majoritariamente de pessoas negras, é um espaço para as famílias e para as crianças também.

A educadora física Joana do Amaral é uma das responsáveis pela produção da roda e se multiplica na função de abastecer as bebidas na mesa dos músicos, sentar para tocar e atender o público: “A gente fica muito feliz de ver esse crescimento, porque a gente entende que as pessoas trabalham, estudam, têm suas vidas e também precisam de momentos para curtir um bom samba, estar com a família e os amigos. É o famoso não é terapia, mas é terapêutico”, diz.

“Nós não somos uma banda, não somos músicos profissionais e nem almejamos ser. Estamos organizados assim para não ter problemas de barulho com a vizinhança. O objetivo é manter a essência, valorizar as memórias afetivas e a cultura do samba na cidade”, afirma um dos integrantes, Rafael Rodrigues.

Garantindo a política da boa vizinhança, toda semana, faça chuva ou faça sol (e se tratando de Porto Alegre, chove mesmo), se você costuma transitar pelo Centro da capital, tem a chance de subir as escadas do viaduto da Borges e apreciar uma roda de samba em plena terça-feira, com o Samba da Escadaria.

Juliano Barcellos, músico do grupo Puro Asthral, é um dos organizadores do projeto, que acontece desde 2017 em frente ao bar Tutti Giorni. Ele garante que o cuidado com o som e a pontualidade de encerrar o samba às 21h30 da noite possibilitou uma boa relação com os moradores dos prédios do entorno. O que tem dificultado a realização são as obras no viaduto, que reduziram o espaço e escondem a roda com tapumes, nos últimos dois anos. “No inverno a gente sabe que vai carregar pedra, né. Mas estar na escadaria fortaleceu o samba pelo fluxo de trabalhadores. O cara fez a entrega do Ifood aqui, conseguiu aproveitar um pouquinho e agora sabe que sempre tem”. 

A roda, que já contou com a participação de Alemão Charles do Cavaco, músico porto-alegrense com mais de 30 anos de carreira no samba, já concentrou em um dos seus eventos cerca de 500 pessoas. Durante os últimos anos, busca a liberação do espaço junto à Prefeitura: “A gente segue na luta pela liberação do espaço junto ao poder público. Apesar de o bar emprestar a luz e dar apoio, não é algo de um bar, é a ocupação pela cultura na rua”, reforça Juliano.

suor e sangue de quem nas entranhas desta terra nutre raízes também

Quando se fala que o Centro, o Parque da Redenção, o Menino Deus e a Cidade Baixa são territórios de origem negra, talvez fique difícil para o imaginário local, já que a maioria das pessoas sempre frequentou esses espaços com as características urbanas atuais. Para visualizar, é importante um exercício de resgate.  Um resgate das lavadeiras no Arroio Dilúvio, da rua João Alfredo que acompanhava o traçado do Dilúvio desaguando no Guaíba, dos becos da Ilhota ligados por pontes de madeira, dos terreiros do quilombo do Areal da Baronesa. Um resgate de um cenário de territórios que surgiram no século 19, após a Abolição da Escravatura. Um resgate de Lupicínio Rodrigues com sua caixinha de fósforo nas rodas de samba do Mercado Público ou no antigo restaurante Copacabana. Ou da mesma esquina, onde é a praça Garibaldi, ponto de encontro das famílias quando o samba expandia as cantorias dos quintais e ali se fazia uma grande roda.

“As rodas de samba eram nas casas daquela região. As famílias sempre tiveram quem tocasse violão, bandolim, pandeiro. Mesmo sem motivo, as famílias negras se reuniam cedo e iam até a noite ali”, conta Antônio Carlos Côrtes. Hoje, resgatar essas raízes, revela um movimento de pessoas em prol do samba. A maioria dos músicos e sambistas são oriundos da periferia de Porto Alegre e Região Metropolitana, mas se apresentam nos palcos do Centro e da Cidade Baixa e buscam promover seus projetos nesse lugar.

O músico Alexandre Susin participou da fundação de um desses projetos contemporâneos, como o Central do Samba, em 2005: “Todos nós morávamos no bairro Cristo Redentor, Jardim Ipiranga. Na zona norte, tinham rodas de gente que é referência, como Reloginho e Alemão Charles, mas a gente não tinha muito onde tocar. E aí decidimos ir pro Centro, na esquina da Riachuelo, acabou que o bar da época aceitou a parceria e passamos a tocar ali todo domingo. O fato de tocar na rua ajudou muito com a circulação de pessoas e foi crescendo, teve domingos com mais de mil pessoas circulando por ali. Ocorria um movimento semelhante com a reocupação cultural da Lapa, no Rio de Janeiro, buscando esse tipo de samba”, conta.

Há 15 anos, também surgia o projeto Brasilidades, que ao contrário do Central, ainda não considera “as atividades encerradas” e prefere encarar o período de hiato como uma pausa para renovar as energias e buscar apoio. Para Duda Lopes, integrante do projeto, a missão de dar acesso à cultura com um recorte do samba mais antigo ainda não é muito comum na cidade: “A gente trazia no repertório Pixinguinha, Cartola, Donga…um tipo de samba que as pessoas não estão tão  acostumadas e que elas acabavam esbarrando na esquina. A gente entende que fica difícil ter um aporte, fazer algo assim na rua, mas tem muita história nesses 15 anos, então ainda temos vontade de realizar”, diz.

A dificuldade de realizar, muitas vezes, acaba esbarrando na falta de apoio por parte do poder público. De acordo com Duda, ele mesmo teve que ir várias vezes na EPTC (Empresa Pública de Transportes e Circulação) para buscar os cavaletes para fechar a rua: “Na João Alfredo, cansamos de ter que levantar da roda para o ônibus passar, porque não tinha sido avisado. Hoje a gente tem um escritório de eventos, que pelo menos centraliza o processo. Eu gosto de pensar que foram importantes as nossas dificuldades pra traçar um caminho, e que ajudou a criar outros coletivos, que contribuem para uma cidade mais receptiva para essa cultura de rua, porque independente dos partidos na Prefeitura, a vizinhança também precisa acompanhar”.

Brasilidades levou a Porto Alegre um ícone do samba: Monarco, da Velha Guarda da Portela.
(Foto: João Freitas/Brasilidades)

Rodrigo Fontoura, o Fileh, também integrante do Brasilidades, concorda: “É complexo fazer uma roda na rua, e a gestão da cidade acaba representando o perfil segregador que é do gaúcho mesmo, que não vê o samba como uma cultura nossa”.

Embora carência não seja a palavra ideal para algo desde sempre tão escasso quanto acesso à cultura, fica evidente a falta de visão de que as rodas de samba também são iniciativas de promoção cultural e não de caráter exclusivamente econômico, uma vez que em Porto Alegre, a atribuição de liberação de eventos na rua é da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo. Segundo a Secretaria, atualmente, as solicitações de bloqueio de via devem ser realizadas de maneira online em seu site e são analisadas pela EPTC. Questionada sobre o porque essa não ser uma atribuição da Secretaria de Cultura, por meio de assessoria, apenas informou que “é responsabilidade do Escritório de Eventos atender demandas de todas as áreas pertinentes de acordo com o perfil dos eventos e realizar a interface entre as demandas, questionamentos por parte dos órgãos públicos (EPTC, Guarda Municipal, Fiscalização, Secretaria de Saúde, DMLU, dentre outros) e o requerente/organizador do evento”.

No Rio de Janeiro, por exemplo, onde as rodas de samba foram consideradas patrimônio imaterial, a cada dois anos, a Prefeitura, através da Secretaria de Cultura, promove o Edital de Credenciamento das Rodas de Samba e organiza um calendário municipal, que atualmente conta com 131 rodas. De acordo com a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, “as rodas de samba são reconhecidas pela Prefeitura como bem cultural. Além de promover cidadania cultural, a atividade  é indutora da economia local”.

Dentre os projetos contemporâneos que não conseguiram seguir por falta de apoio na capital gaúcha, o Encruzilhada do Samba evidenciou a grande demanda por atividades de rua na cidade. De 2017 a 2019, as rodas aconteciam semanalmente, em locais que se alternavam. O crescimento da participação do público foi importante para a ocupação dos espaços, mas também mostrou todas as implicações que surgem quando se trata de um movimento orgânico e independente. A necessidade de banheiros, lixeiras, segurança. Apesar de toda a comunidade que se criou, o projeto se despediu de forma melancólica por um post no Facebook. Além das despesas normais que o evento demandava, também acumulou multas junto à Prefeitura pela reclamação dos vizinhos.

Para Mário Martins, fundador do extinto Projeto Resgate e participante do Encruzilhada, de tempos em tempos há tentativas de sufocamento do samba, principalmente quando se fica vulnerável à atuação dos governos. “O samba também é um movimento social e político, né. É uma ferramenta de comunhão, as pessoas também vão conversando, se identificando, até politicamente”. Já Susin lembra que quando o Central do Samba passou a tocar aos domingos no Afro-Sul Odomodê, histórico centro de cultura negra na Avenida Ipiranga, as reclamações de atrapalhar o trânsito, proibição de estacionamento e reclamações por barulho passaram a dificultar a realização das rodas: “Geralmente é assim, nunca é uma coisa direta ‘ah não quero o samba aqui’, é sempre pelas beiradas”.

Aparentemente, barulho foi o que levou ao fim um reduto do samba gaúcho e um dos únicos bares considerados referência no gênero, o Boteko do Caninha, na rua Múcio Teixeira, entre o bairro Menino Deus e a Cidade Baixa. Proprietário do bar há 12 anos, Evandro Oliveira, o Caninha, argumenta que os problemas iniciaram com a construção de um prédio de classe média atrás do estabelecimento. “A gente tinha um local de encontro de negros, de cultura, de saraus, era um bar de samba e nunca teve nenhuma confusão. Eu nasci aqui, no Areal da Baronesa, e para falar o português bem direto, assim como tiraram a negrada do Carnaval daqui, correram com o Boteko do Caninha também”, diz.

“Com a chegada dos novos moradores, já teve um em específico que começou a colocar bilhete nas caixas de correspondência, e aí foram e fizeram a reclamação no Ministério Público. A gente sempre cuidou muito, mas mesmo sendo bar as pessoas querem estar na rua”, conta Christian Mery Oliveira, companheira de Caninha, que também trabalhava no bar. Segundo o casal, uma determinação do Ministério Público proibiu a execução de música ao vivo no local, e as multas estabelecidas chegam a R$50 mil. Além desse processo judicial, o proprietário da casa onde funcionava o bar dobrou o valor do aluguel, sem considerar o período de prejuízos da pandemia, e o atraso de sete meses de aluguel somam mais de R$100 mil às dívidas de Caninha.

Em nota, o MP afirma que o processo da Ação Civil Pública contra o Boteko do Caninha está em revisão no TJRS para julgamento de apelação sobre o pagamento de indenização por danos morais coletivos. “O inquérito civil foi instaurado por abaixo assinado e teve a realização de laudo pericial, que apurou a poluição sonora produzida no local. Ao que consta, o proprietário encerrou as atividades por conduta voluntária, terminando a locação do prédio”.

“Eu já achei racismo desde o início, desde o bilhete que o cara dizia que iria acabar com essa merda, até a atuação do MP. Tinha que ser um ministério mais público, mas parece que é de poucos, foi por causa de um único edifício. Têm lugares na região que ainda têm música ao vivo, só eu que não podia. Eles cortaram minhas pernas, aí não tinha como”, protesta Caninha. Após o fechamento em 2022, Caninha levou a marca a outros locais, mas desistiu por causa dos processos judiciais que ainda responde. “Depois eu até encontrei o prefeito [Sebastião Melo], ele disse pra gente entrar na licitação do Cais. Eu disse, como? Concorrer com McDonalds? Eu tô falando de cultura”. 

A situação do casal também se agravou neste ano, durante as enchentes de maio, quando a casa alagou e perderam tudo. Apesar das dificuldades, eles lembram com orgulho do espaço que tinham: “Eu cresci no Menino Deus e na Cidade Baixa, tinham uns campinhos onde a gente jogava bola, sempre acabava em samba, tinha o samba da dona Doca no Areal, o bar do Tide, isso aqui era um reduto. Vinha gente do Rio, da Bahia, depois que o Ricardo morreu [Bar do Ricardo], a gente virou um ponto que as pessoas queriam conhecer”, lembra Caninha. Para Chris, as lembranças inspiram a lutar, mas muitas coisas estão se perdendo: “Estamos cansados. Era algo muito especial pra gente, toda família dependia do bar. Foi um sufocamento de mais um território que tinha as portas abertas pra todo mundo”.

A roda semanal que acontecia no Boteko do Caninha era a do Estude, Trabalhe e Sambe, uma iniciativa de resgate cultural que retomou as atividades neste ano. O projeto, que também realizava apresentações na rua e em quadras de escola de samba, teve crescimento rápido e agregou novos públicos que passaram a frequentar o bar na época: pessoas brancas, estudantes universitários e moradores da área central. “Apesar do apoio recebido pelo Caninha para a continuidade das atividades, o público branco logo encontrou outros lugares para usufruir do samba e esqueceu”, lembra Duda Lopes. Para Fileh, as rodas de samba em Porto Alegre viraram um produto e isso tem dois lados: “Se perde em movimento cultural e acessibilidade porque não temos tanta roda na rua, mas em contrapartida nunca teve tanta opção de samba em lugares fechados, com o público consumindo, o que mostra que é algo rentável também no Rio Grande do Sul”. 

Rodas de samba foram realizadas durante 12 anos no Boteko do Caninha (foto: arquivo pessoal)

Sendo o samba algo pertencente à comunidade preta, a presença do público branco parece ser outra questão a se refletir no contexto atual, no qual o debate racial e o protagonismo negro ganham destaque. Principalmente quando essa presença não está conectada com o significado de uma roda de samba e quando não compreende que as suas demandas não são prioridades. A contribuição, por meio do samba,  da dita “convivência pacífica entre brancos e negros” para o mito da democracia racial brasileira é um tensionamento que já ocorre em outros estados. Há a multiplicação de lugares para o entretenimento com estética negra e popular, mas o acesso às pessoas negras acaba se tornando limitado, devido aos preços e à locomoção, por exemplo. 

“Pra enfrentar isso, pelo que eu vejo também, é importante rever como os projetos são construídos. Antes do Brasilidades, do Resgate, a gente se encontrava para fazer samba em qualquer lugar. A rapaziada não toca junto, não se escuta, não se visita, não reflete sobre o objetivo e já acaba criando um projeto. Lá na frente, isso acaba gerando uma limitação, contribuindo pra uma visão do samba que é só de entretenimento”, argumenta Mário Martins.

Ainda que os desafios sejam muitos e que pareça que “só” tenha samba na Cidade Baixa, todos concordam que os ciclos se renovam e que sentem falta das rodas de samba na rua. Um movimento que começa na família, com os amigos, nos churrascos de domingo e que, por uma necessidade de se colocar para fora, busca-se ocupar os territórios, historicamente, do samba na cidade. Assim como as águas do Guaíba, há uma força natural que tenta retomar seu espaço: samba na rua, no Centro e na Cidade Baixa. “É esse jeito da gente olhar para os mais velhos, querer preservar a cultura…É inevitável para o músico de samba fazer música na Cidade Baixa,  a gente sempre acaba voltando para esse lugar”, completa Mário.

*os intertítulos desta reportagem são trechos do poema “Sou”, de Oliveira Silveira

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