Quando tinha 10 anos, a estudante Joana Dorneles de Souza, hoje com 15 e cursando o último ano do ensino fundamental, notou que algumas de suas amigas tinham em comum os relatos de violência sexual da qual tinham sido vítimas. A partir desses relatos, ela e outras meninas criaram o Chama Violeta, projeto que surgiu com o objetivo de acolher as denúncias das vítimas e transformar o ambiente escolar em um espaço seguro de conscientização através da mediação de leitura e curso pedagógico.
Por meio de narrativas literárias, o projeto reúne estudantes (que vão desde os pequenos da educação infantil até os jovens e adultos do EJA) e famílias para conversar sobre formas de prevenir esse tipo de abuso. “Quando a gente foi expandindo os nossos projetos, a gente viu que em outros territórios também aconteciam muitas situações de violência sexual. Situações que as crianças não se sentiam confortáveis de dizer o que estavam sentindo ou tinham pensamentos suicidas”, relata Joana.
Esta é uma das muitas iniciativas socioculturais criadas pelo coletivo Luisa Marques, um grupo de alunas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, localizado na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre (RS). Ainda que graduada em Matemática, a professora e alfabetizadora Maria Gabriela Pires de Souza mantém um pé na Literatura quando o assunto é ensinar. “Eu percebia que as turmas chegavam [no 5º ano] com muita dificuldade de interpretar um texto, então eu comecei a ler com elas e trabalhar problemas que estavam dentro dos livros e coisas do cotidiano”, explica a professora.
O Coletivo Luísa Marques nasceu da sede que as estudantes do 3º ao 9º ano, engajados na iniciativa, têm de questionar e propor resoluções para as lacunas, injustiças e deficiências com as quais se deparam em seu dia-a-dia, como o acesso à educação, a violência sexual, a dignidade menstrual e a saúde mental. Uma vez que a coordenação da escola observou os bons resultados das práticas de Maria na sala de aula, a professora recebeu o convite para trabalhar na biblioteca, onde criou o primeiro grupo de leitura.
A partir daí, Maria passou a trabalhar as obras de autores como Dalva Maria Soares, José Falero, Ailton Krenak, Antônio Bispo e Alice Walker, como uma forma de incentivar o pensamento crítico dos estudantes a partir da realidade da própria comunidade. Como na construção de uma narrativa em que uma frase leva a outra, de ideia em ideia nasceu o coletivo, idealizado pelos próprios estudantes, em sua grande maioria meninas, que logo mostraram que o que não faltava era discussão para ser suscitada dentro e fora da sala de aula, fazendo uso de um instrumento caro nos dias de hoje: a mediação de leitura.
Com projetos segmentados, mas que se complementam, o coletivo incentiva o hábito da leitura dentro e fora do ambiente escolar. “Aqui, no nosso bairro, a escola é um ponto de cultura. Não tem outro espaço cultural. Então, todas as ações que são pensadas por esse coletivo também são pensadas para além do muro da escola”, comenta Maria.
Nomeado em homenagem à estudante e mediadora de leitura da escola Luísa Marques, que faleceu de câncer em 2017, aos 15 anos, o coletivo pensa os seus projetos a partir de propostas voltadas principalmente para os direitos de meninas e mulheres. O projeto Garotas de Vermelho discute e conscientiza sobre saúde menstrual. Em busca dos jardins articula noções sobre o trabalho de cuidado a partir de textos da escritora, poeta e ativista estadunidense Alice Walker.
Já a Mochiloteca, projeto inspirado nos ideais do poeta Sérgio Vaz de que a poesia é item de necessidade básica, leva a poesia, escrita e também declamada, de porta em porta na comunidade. Formulado a partir do pensamento de Ailton Krenak, “Colocar o coração no ritmo da terra” é um convite ao contato com a natureza por meio de aulas e leituras ao ar livre no Parque Saint Hilaire, que fica nas proximidades da instituição. O projeto inspirou o tema da Feira Literária da escola Saint-Hilaire de 2024.
Em novembro do ano passado, o projeto Chama Violeta, que promove conscientização sobre violência sexual, venceu a etapa nacional da 2ª edição do Desafio Liga Jovem (maior campeonato nacional de empreendedorismo e tecnologia para estudantes do ensino fundamental e médio do Brasil), do Sebrae. Também em 2024, o coletivo representou o Brasil no Prêmio Escolas Sustentáveis. As meninas viajaram para Bogotá, na Colômbia, e saíram com o troféu de vencedores. No horizonte de acontecimentos que espera o coletivo em 2025, a ida a Portugal para participar de um evento internacional figura como um dos mais esperados.
Literatura como consciência social
O projeto Chama Violeta tem mobilizado denúncias de violência sexual desde que surgiu, há cerca de cinco anos. Só no ano passado, a escola, que possui em torno de mil alunos, recebeu mais de 300 denúncias de ocorrências sofridas pelos estudantes. Para dialogar a questão do abuso, as meninas escreveram e ilustraram a fábula Voar Juntas, cujas personagens, as aves do Parque Saint Hilaire, se deparam com o comportamento abusivo de um gavião cheio de más intenções. O caráter lúdico da obra, conta Joana, é uma forma de abordar com as crianças temas que são difíceis, mas que precisam ser falados.
Ampliando as formas de combater a violência sexual, os integrantes do projeto criaram um curso pedagógico com videoaulas e materiais didáticos para auxiliar no diálogo dentro e fora da escola. O curso rendeu à ação uma classificação na etapa final do prêmio Desafio Liga Jovem, promovido pelo Sebrae e pelo Instituto Ideias de Futuro. Neste ano, Portugal aguarda os integrantes do Chama Violeta para promoverem a iniciativa em um evento internacional de empreendedorismo e tecnologia organizado pelas mesmas instituições.
Em virtude da pandemia de coronavírus, o “Para diminuir a febre de sentir” surgiu num contexto em que a saúde mental fragilizada dos alunos e professores necessitava de um olhar pontual. Inspirado no livro de crônicas de mesmo nome da escritora Dalva Maria Soares, o projeto trabalhou narrativas como forma de dialogar com questões relacionadas aos impactos psicológicos de situações adversas. “Porque foi um momento muito difícil, né? A pandemia. Muitas pessoas perderam. Outras pessoas ficaram em casa, e em casa pode ter acontecido muitas situações”, relembra Joana. “Nós não temos tempo para parar e refletir sobre o que a gente está sentindo. Inclusive tem uma dinâmica nesse projeto para a gente parar. Para a gente entrar para dentro de si e organizar os sentimentos”, destaca.
Hoje, o Para diminuir a febre de sentir segue incentivando estudantes e professores no exercício da reflexão e da investigação de si. Aliado ao Chama Violeta, o projeto tem desempenhado um papel importante no acolhimento e na promoção de debates sobre saúde mental na comunidade escolar.
Um olhar para o cuidado
A professora Maria Gabriela não ignorou a oportunidade de introduzir os textos de Alice Walker em sala de aula quando percebeu que muitas das integrantes do Coletivo Luísa Marques já vivenciavam na pele algumas das questões denunciadas pela escritora, poeta e ativista. As responsabilidades domésticas, como arrumar a casa e cuidar de um irmão ou dos avós, por vezes é um motivo que impede as estudantes de participarem de eventos para promover as iniciativas do coletivo. A partir da leitura dos textos da ativista presentes na obra Em busca dos jardins de nossas mães, o coletivo criou o projeto “Em busca dos jardins” para falar sobre o trabalho de cuidado.
Instigadas pelas leituras dos textos em sala de aula, as estudantes promoveram à comunidade escolar o exercício de perguntar às suas mães sobre qual seria o seu maior sonho, do qual tiveram que abdicar em virtude do trabalho de cuidado. Uma respondeu que queria estudar balé, outra, enfermagem. Também teve quem quisesse ter estudado psicologia. Além da leitura e da pesquisa posterior, as estudantes também fizeram uso da dramaturgia para criar uma performance em que a busca pelos jardins resulta no encontro do sonho das mães, “que é o sonho de estudar, a oportunidade de poder estudar”, diz a professora. O projeto foi o que deu ao coletivo o prêmio internacional em Bogotá.
Como forma de potencializar as finalidades do projeto, as meninas sortearam uma bolsa de estudos da Faculdade Estácio para uma das mães da comunidade. A mãe sorteada, que no ano passado concluiu os estudos por meio do EJA (Educação de Jovens e Adultos), vai prestar o vestibular neste ano para poder ingressar no curso de psicologia. A bolsa foi uma conquista das estudantes através do Prêmio Territórios (que busca ações pedagógicas de escolas públicas que promovem a valorização dos saberes presentes em suas comunidades), com o projeto Garotas de Vermelho.
O sangue e a Terra
De onde é esse sangue, Joana? é a pergunta-título de mais um livro do coletivo, desta vez desenvolvido pelo Garotas de Vermelho, cujo objetivo é dialogar e promover junto à comunidade, por meio de leituras, debates e ações, a saúde menstrual de meninas e mulheres. Na narrativa, a protagonista encontra na mãe uma ajuda para compreender as questões relacionadas ao ciclo menstrual e, claro, saber de onde vem o sangue de que fala a pergunta do título.
Além das leituras e debates, como forma de combater a pobreza menstrual, as integrantes do projeto também elaboram um kit com absorventes de pano reutilizáveis, que podem durar até cinco anos, uma bolsa térmica para aliviar a cólica e objetos como pequenas bonecas de pano para fins didáticos. O kit, vendido a cem reais, é uma parceria com costureiras e artesãos da Lomba do Pinheiro. Por meio das vendas, as meninas contribuem com a produção de renda dos trabalhadores da comunidade e arrecadam recursos para custear a confecção dos próprios kits e outros itens necessários para o coletivo, como os livros que são distribuídos aos professores para serem utilizados em sala de aula.
A renda que custeia a compra desse material também vem das gratificações recebidas pelo coletivo em premiações estaduais e nacionais. “A gente não tem dinheiro pra fazer as coisas do coletivo. Eu não tenho dinheiro pra comprar esses materiais. Quando elas ganham prêmio, a gente tem dinheiro”, relata Maria. Ainda em 2023, tal qual o Chama Violeta no ano passado, o Garotas de Vermelho também venceu a etapa nacional da primeira edição do Desafio Liga Jovem, do Sebrae, e as meninas embarcaram em uma viagem para a Espanha para promover a iniciativa.
A professora Maria conta que foi com o dinheiro arrecadado em premiações que as obras de Ailton Krenak e Antônio Bispo puderam adentrar as salas de aula para enriquecer e sensibilizar professores e alunos a respeito das ideias trazidas pelos autores. As meninas do coletivo enviaram para as salas de aula caixas-surpresa, contendo livros dos autores mencionados (como Ideias para adiar o fim do mundo e A terra dá, a terra quer), para ser trabalhados pelos professores, e pokebolas literárias com o intuito de cativar os pequenos, cujo interior resguardava um papel com uma frase de Antônio Bispo ou Ailton Krenak, propondo desafios como abraçar uma árvore, identificar a qual árvore tal folha pertencia, citar uma ideia para adiar o fim do mundo.
Essa articulação também mirava a temática da Feira Literária da escola, a FLISH, cujo tema no ano passado foi inspirado em uma reflexão de Ailton Krenak presente no livro Ideias para adiar o fim do mundo, que é o pensamento de Colocar o coração no ritmo da Terra. O tema da feira encabeçou outro projeto de mesmo nome do coletivo, cuja proposta é incentivar o aprendizado fora do ambiente escolar e próximo da natureza através de aulas e leituras realizadas no Parque Saint Hilaire, situado nas proximidades da instituição. Segundo a estudante Joana, “a gente trouxe essa proposta de colocar o nosso coração no ritmo da terra para incentivar as crianças a se conectarem com a natureza, saírem dessa realidade do celular, das redes sociais, que é uma coisa importante, mas que acaba nos afastando da nossa realidade”.
Por meio da sensibilização do corpo docente e também da Secretaria Municipal de Educação, o trabalho de todo um ano de leituras e debates se refletiu no evento, que aconteceu ao longo de uma semana nos três turnos letivos e reuniu a comunidade e escritores, como Dalva Maria Soares e José Faleiro, em atividades que reverberaram ideias contracoloniais para um mundo melhor baseadas na relação com o meio ambiente. “Isso que a gente fez na nossa Feira Literária, de contar histórias, de fazer dinâmicas, de fazer desafio para os alunos, de levar escritores, é uma forma das crianças aprenderem mais sobre essa conexão com a natureza”, conclui Joana.