Foto: @1coletivoarte/divulgação

Cineastas nortistas abordam a realidade sem estereótipos, mas financiamento ainda é um desafio 

Nicoly Ambrosio, especial para o Nonada Jornalismo*

Manaus (AM) – No norte do Brasil,  um cinema feito de histórias que abordam questões sociais, políticas e culturais próprias desse território é conduzido por realizadores independentes com recursos escassos, mas não, por isso, menos dedicados. Exercendo o projeto de um cinema nacional, para além do rótulo de “regional”, a produção audiovisual nortista têm ganhado destaque nos últimos anos no cenário nacional, com uma presença expressiva nos principais festivais de cinema brasileiros. 

Em 2022, o longa-metragem Noites Alienígenas, dirigido por Sérgio de Carvalho, do Acre, chamou atenção ao ser exibido no 50° Festival de Gramado e conquistar  cinco prêmios, incluindo uma menção honrosa pela atuação do ator e diretor amazonense Adanilo. O filme gira em torno do cotidiano de jovens da periferia de Rio Branco, afetados de forma violenta pela chegada de facções criminosas vindas do sudeste do país para o norte. 

Em uma região historicamente marginalizada no cenário do cinema nacional, a produção audiovisual nortista desponta como ato de afirmação cultural. São filmes com narrativas capazes de romper com estereótipos e trazer à tona realidades únicas da Amazônia.

Olhares atentos aos territórios
Na Dança Que Cansa Voavas, de Gabriel Bravo de Lima (AM)

Longe de retratar a Amazônia como cenário exótico, como é comum em produções de realizadores de fora da região, os cineastas nortistas usam histórias para além  da floresta, narrando  a complexidade da vida urbana, as lutas dos povos tradicionais e a relação dos povos amazônicos com a crise climática.

Gabriel Bravo de Lima, jornalista e cineasta de Manaus (AM) define sua obra como uma exploração do tema familiar, desde as relações afetivas à estrutura social. “Busco explorar essa área limítrofe onde a família representa apoio, mas também opressão”, diz o jovem realizador. Em 2024, o cineasta venceu duas categorias (Voto Popular e Menção Honrosa Cine Vídeo Tarumã) na sexta edição do Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte, um dos maiores festivais do segmento na região, com seu curta-metragem  Na dança que cansa voavas, no qual acompanha o rompimento de uma relação. 

Em 2020, ele já havia conquistado o prêmio de melhor roteiro na terceira edição do Olhar do Norte, por seu primeiro curta-metragem, No dia seguinte ninguém morreu. No entanto, Gabriel não sente que há espaço suficiente para as narrativas nortistas no mercado audiovisual nacional. “É muito comum ter festivais, mostras, espaços em streaming ou salas de cinema sem nenhuma ou pouquíssima representação nortista”, lamenta.

Para produzir e distribuir seus filmes, a principal dificuldade que o cineasta enfrenta é financeira. Ele financiou a produção do seu primeiro curta com investimento de edital público, destinado aos novos realizadores do Amazonas.  “Mas não tenho como garantir que a partir de agora todos os meus filmes terão esse tipo de aporte. É difícil se inserir no mercado, infelizmente o maior investimento para novos produtores costuma significar menos investimento para produções maiores. A gente também costuma aprender as coisas enquanto vai fazendo e às vezes perdemos oportunidades por pura inexperiência”, explica.

De Belém (PA), a cineasta Mayara Sanchez gosta de escrever narrativas amazônicas contemporâneas. Dramas familiares e narrativas coming of age que discutem gênero e sexualidade e representações femininas são apresentados em filmes como Essa Cidade Se Esqueceu como Planta, lançado em 2023.

Para cumprir com o desafio, é preciso se adaptar ao modus operandi do fazer cinematográfico nas condições amazônicas de longas distâncias, onde  os eventos climáticos influenciam  as ordens de cronogramas de filmagens.  “Também surgem inúmeras outras dificuldades burocráticas devido a questões próprias do território, que implicam em um fazer cinematográfico específico dentro da realidade amazônica”, diz a cineasta.

Com mais de 20 anos de trabalho em produção audiovisual, Juraci Junior atua em Rondônia como diretor, ator, redator e apresentador, com uma trajetória autoral marcada pela busca das histórias de relação das pessoas com as águas da Amazônia. Os rios atravessam diretamente sua criação visual. Seu primeiro curta-metragem, Balanceia (2017), co-dirigido com Thiago Oliveira, leva para as telas as sensações de um viajante que viaja de barco de Parintins (AM), rumo a Manaus, depois de conhecer o Festival Folclórico da ilha. Na animação Nazaré: do verde ao barro (2021), o tema central é o movimento de sobe e desce dos rios e a relação de ribeirinhos com este fenômeno.

Já no documentário Resistência (2023), o diretor fala da tragédia conhecida como “epopeia amazônica”, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho (RO). O monumento é uma marca colonial que deixou feridas na história dos povos tradicionais da região. “Aqui, as cicatrizes dessa história são tocadas, relevando traumas e questionamentos sobre a tantas mortes causadas pela obra, além dos moradores perceberem que a cidade cresceu de costas para o rio Madeira”, observa Juraci.

Em ritmo de reflexão sobre os eventos climáticos extremos, responsáveis pela desertificação dos rios amazônicos pelo segundo ano consecutivo, o cineasta finaliza seu curta-metragem de animação Pela Água, Sempre!, com co-direção de Douglas Magalhães.  “É interessante justamente neste momento de seca extrema, onde os rios perdem sua forma e presença, causando tanta dor a todos nós, e lançam um grito de alerta sobre o futuro do planeta.”

Poster do Curta Duplo Retrato, de Bruma de Sá (AM) (Foto: divulgação)
Identidades em movimento

As obras de Bruma de Sá, cineasta de Manaus, flutuam entre temáticas orgânicas, corpo e psique. Ela começou sua trajetória artística como atriz, e quis desenvolver projetos que envolvessem a corporeidade. “Quando estava começando, eu fazia coisas mais experimentais e cruas. Na faculdade, minha pesquisa, Estar Entre (2021), foi desenvolvida a partir das minhas memórias quando criança habitando alguns móveis da minha antiga casa, e como meu corpo interagia e se relacionava, quase como uma dança, com a câmera”, disse.

Estar Entre tornou-se uma obra super orgânica pelos materiais que foram utilizados na produção de seis vídeos experimentais. Um deles é manuseado com uma mistura de água com goma de tapioca sob tecido voil, feito com os fios da trama torcidos e com baixa densidade. “Os filmes são a representação do humano, da placenta, do ventre”, analisa Bruma.

Com o filme Duplo Retrato (2024), um curta-metragem que estreou na última edição do festival Olhar do Norte, a artista desenvolveu uma personagem que passa por momentos turbulentos com ela mesma, uma narrativa complexa que retrata a psique de Julia. “Para isso, utilizei a casa e a duplicata para demonstrar a instabilidade psicológica e depressão que a outra versão dela estaria passando. Acredito que essas são as obras principais e que elas falam muito sobre a sensibilidade da vida”. 

Financiamento segue como desafio

Nortista que mora no sul do país e que trabalha de forma independente, Bruma enfrenta um cenário complexo ao tentar conseguir que suas obras tenham investimento e verba orçamentária para serem concluídas. “Aqui no sul, eu sinto que é muito difícil furar a bolha porque as coisas já estão estruturadas do jeito que elas são. É  muito difícil que esses projetos sejam realmente contemplados porque na hora da avaliação, o que mais pesa é o portfólio e o nome das pessoas que fazem parte do projeto.” 

Rodrigo Aquiles, diretor e montador cinematográfico de Macapá (AP), aborda em suas obras questões sociais e políticas: “Meu trabalho é a minha forma de contribuir para o debate com o foco na questão racial na Amazônia, as obras são meus pilares”, diz. Para ele, falta espaço para as narrativas nortistas no cenário do cinema nacional, apesar de existir um apelo por histórias estereotipadas. “As narrativas sobre a Amazônias que estão em vigor, ao meu ver, são saturadas. O público precisa e anseia novas narrativas e novas formas de contar as histórias da Amazônia. Mas não existe esse espaço, a gente não consegue encontrar esse espaço dentro dos streamings e dentro dos festivais pelo Brasil”, alerta. 

O recurso no seu estado é escasso, garante. “É bem complexo fazer cinema independente com o risco de que eu não vou conseguir distribuir esse cinema e não conseguir ter um retorno financeiro. Tem que ter algumas linhas de financiamento específicas para os produtores independentes”, defende.

Narrativas indígenas em destaque
O ator e cineasta Adanilo (Foto: divulgação)

Adanilo, ator, dramaturgo e diretor originário manauara, dedica-se há quase 10 anos a uma pesquisa sobre os povos indígenas das Amazônias e da América Latina de maneira geral. Seus trabalhos trazem temas ligados também às periferias. Conhecido por seus papéis como ator, Adanilo já atuou em longas como Marighella, Noites Alienígenas e O Rio do Desejo. Em 2023,  esteve em Cannes por sua atuação em Eureka, longa-metragem do diretor argentino Lisandro Alonso, exibido fora de competição. O filme mergulha em tempos e espaços distintos que mostram o avanço da violência contra os povos indígenas, seja pelo garimpo nas florestas ou pela vulnerabilidade social nos territórios.

Sua primeira direção foi no filme 521 Anos / Siaa Aira (2021), realizado de forma independente. Em 2023, estreou no festival Olhar do Norte o curta Castanho gravado na Comunidade Cachoeira do Castanho, a 24 quilômetros de Manaus, em Iranduba, em novembro de 2021. A história gira em torno da personagem Maria, interpretada pela atriz Sofia Sahakian, uma mulher estrangeira, latino-americana, que tem a chance de conviver com Dona Belém, papel interpretado pela artista amazonense Rosa Malagueta, e seu filho Cícero, interpretado por Israel Castro. “As narrativas do norte sempre estiveram mal retratadas, estereotipadas, por isso é tão importante que nós pessoas do norte consigamos cada vez mais protagonizar as nossas histórias, porque a gente é que sabe como fala da gente”, diz o artista.

O cinema indígena feito no norte utiliza o audiovisual como ferramenta de expressão  de resistência e de denúncia. Na última década, os cineastas indígenas ocuparam espaços de produção, direção e narração de suas próprias histórias, o que significa a  valorização da cosmovisão, dos saberes tradicionais e das lutas por direitos indígenas.

Muitos desses filmes são produzidos de forma coletiva, com as comunidades participando ativamente de todas as etapas da criação. Um dos destaques do cinema indígena é Morzaniel Ɨramari Yanomami. Nascido na aldeia Demini, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, Morzaniel é cinegrafista e documentarista desde 2010, formado pelo projeto Pontos de Cultura Indígena.  No mesmo ano, produziu e lançou o filme Xapiripë Yanopë – Casa dos Espíritos, que venceu o prêmio de Melhor Filme Júri Popular na I Bienal de Cinema Indígena – Aldeia SP. Em 2014, lançou o filme Urihi Haromatipë – Curadores da Terra-Floresta, que venceu o prêmio de Melhor Filme na mostra competitiva do Forumdoc.BH.

Aida Harika Yanomami e o xamã Edmar Tokorino Yanomami, trabalhando nas edições do filme Uma Mulher Pensando (RR) (foto: Aruac Filmes)

Em 2023, os curtas roraimenses Mãri hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari, Thuë pihi kuuwi – Uma Mulher Pensando e Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó, de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane competiram foram exibidos no tradicional Festival de Veneza, no “Eyes of the Forest”, durante um dia dedicado ao primeiro cineasta Yanomami, Morzaniel Ɨramari, ao cinema indígena Yanomami no Brasil. 

A cineasta Aida Harika Yanomami, que vive na aldeia Watorikɨ, região do Demini, na TI Yanomami, faz filmes e fotografias e participou da produção e direção de dois dos três curtas. Ela integra o coletivo de comunicadores Yanomami criado em 2018 pela Hutukara Associação Yanomami com apoio do Instituto Socioambiental. “Thuë pihi kuuwi – Uma Mulher Pensando”, de 2022, foi o primeiro filme produzido por mulheres Yanomami e teve sua exibição na 26ª Mostra de Cinema Tiradentes. 

Entraves para o desenvolvimento

Embora seu destaque seja evidente, o cinema feito no norte enfrenta desafios particulares pela falta de apoio institucional, financiamento e a falta de valorização da identidade cultural da Amazônia. Iniciativas como a Lei Paulo Gustavo trouxeram algum alívio, mas os investimentos ainda são insuficientes para sustentar a indústria local de maneira robusta. Produzir filmes na região requer recursos. Os cineastas fora dos grandes estúdios lutam para conseguir financiamento, seja de fontes privadas ou públicas.

“O acesso é difícil tanto pela escassez, quanto também pela falta de conhecimento para disputar esse financiamento. É preciso dedicar tempo para entender como o mercado funciona e praticamente todos os produtores independentes dividem a atuação com audiovisual com outra profissão. Para quem está iniciando tudo parece complexo e burocrático”, observa o amazonense Gabriel Bravo de Lima.

Nenhuma produção audiovisual da região norte foi contemplada no edital Novos Realizadores da Agência Nacional do Cinema (Ancine), de 2023. O cinema produzido na Amazônia foi mais uma vez esquecido no que diz respeito aos investimentos para as produções audiovisuais locais.

A cineasta Bruma de Sá (Foto: @grubermauro)

Mesmo depois de produzir o filme, conseguir distribuí-lo em salas de cinema, plataformas de streaming ou festivais é outra grande barreira. As grandes redes de distribuição costumam priorizar filmes de apelo comercial, por exemplo. “Duplo Retrato foi uma obra que aconteceu e foi realizada dentro de uma instituição pública, o curso Técnico de Produção de Áudio e Vídeo do Colégio Estadual do Paraná, é uma produção que aconteceu tendo apoio e incentivo dos professores do curso e essa pequena rede de apoio foi essencial para obra acontecer e ser distribuída. O maior desafio é realmente a falta de recursos. Artistas que vivem no norte  são afetados pela centralização dos investimentos que, em grande maioria, estão concentrados nas regiões Sul e Sudeste. São menos oportunidades”, lembrou Bruma de Sá. 

Adanilo complementa citando a carência de programas de capacitação técnica na região, como cursos de cinema e audiovisual que ajudem a formar profissionais locais. “Falta investimento para profissionalizar, para capacitar, para distribuir, para produzir, para pré-produzir, pós-produzir. A gente tem que formar profissionais hiper capacitados em diversas áreas da produção audiovisual para se inserir no mercado mundial do cinema. E isso só se dá com o investimento, criação de escolas, intercâmbios culturais com outros artistas, outros lugares”, argumenta.

A falta de políticas públicas direcionadas à cultura é um obstáculo significativo para o desenvolvimento de cineastas emergentes do norte. Isso impacta a produção de diversos realizadores. “O cinema nortista como um todo não tem como se desenvolver, em toda a sua capacidade técnica e criativa, sem o investimento contínuo dos estados. Depender apenas de recursos federais fez com que, desde a pandemia, o setor cinematográfico ficasse abalado, e até agora não voltou ao fluxo de produção de antes. Isso impacta diretamente no desenvolvimento dos artistas e dos projetos daqui. É comum falarem dos ‘grandes valores’ dos editais de cinema. Mas entre a palavra no papel e o filme da tela, existe um caminho grande de desenvolvimento, produção, distribuição, que por vezes duram anos, envolvem uma grande equipe e muitos investimentos”, diz Mayara Sanchez.

Coletividades

A organização de cineastas e produtores em redes e coletivos tem sido uma das formas mais eficazes de enfrentar as dificuldades. Gabriel Bravo de Lima diz que a proximidade com outros cineastas, principalmente iniciantes, serve para trocar  ideias e compartilhar experiências. “A ideia de coletividade para mim se tornou indispensável, dentro das minhas produções busco ao máximo proporcionar uma independência para quem trabalha comigo (muitas vezes artistas, sejam do audiovisual ou não) também se expressarem”, pontua. Em 2023, ele fundou sua própria produtora junto com amigos, chamada 1coletivo, para agregar projetos de diferentes artistas e áreas. “É uma luta que ainda estamos no início, mas é empolgante”.

A cineasta Bruma de Sá atualmente é sócia de uma produtora audiovisual, a Voyarte, junto com o artista e seu companheiro, Mauro Gruber. A realizadora também encontrou uma rede colaborativa com as artistas Raia Schnaider e Mate Bertucci. “Essa rede fortalece e faz com que essas produções realmente aconteçam”.

Para Mayara Sanchez, a organização de cineastas e produtores em associações ou sindicatos têm um impacto significativo na criação de oportunidades de trabalho e financiamento. “Um dos problemas mais agravantes no mercado local é a prática desrespeitosa, e eu acho que poderia dizer até neo-colonizadora, das produções nacionais que vem filmar nos estados daqui e não pagam os trabalhadores locais da mesma forma que paga a equipe de fora. É só através da organização coletiva que o mercado local consegue se proteger desse tipo de prática”, manifesta.

Nicoly Ambrosio

Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+. Já expôs trabalhos fotográficos no 10° Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e Galeria do Largo – Espaço Mediações (Manaus/AM, 2021-2023).

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