*Atualizado às 16h08 de 24/02
Em 1718, ano em que a Capela de São Bento, de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), foi construída, seus construtores não imaginariam que, mais de 300 anos depois, sua estrutura seria levada às ruínas por uma avalanche de rejeitos de mineração. Em 2015, foi isso o que aconteceu, após o rompimento da barragem do Fundão, gerida pelas empresas mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, e que ficava na Zona Rural do município. Outra previsão que seria inimaginável no século XVIII é a de que aquela capela, mesmo em ruínas, serviria de cenário para festas populares e encontros comunitários do povoado negligenciado, como forma de resistir às tentativas de apagamento do distrito e ao avanço da mineração sobre o território destruído.
Em 2025, completa-se uma década desde o rompimento da barragem, considerado um dos maiores desastres ambientais na história do Brasil e um dos maiores do mundo. Ao todo, 49 municípios de Minas Gerais e também do Espírito Santo foram afetados pelo desastre socioambiental. De todos os distritos da região de Mariana atingidos pela lama dos rejeitos de mineração, Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira foram os mais destruídos pelo rompimento da barragem. Ficaram completamente soterrados. Com a destruição, os moradores foram forçados ao deslocamento compulsório de seus respectivos povoados e realocados, em sua maioria, na cidade sede de Mariana.
Além dos danos socioambientais, econômicos, e sociais, houve danos culturais e patrimoniais em diversos municípios afetados. Assim como a Capela se tornou um símbolo da resistência dos atingidos, em outras cidades da região existe um movimento de resistir através da manutenção das festividades. No total, 228 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo foram impactados.
Reapropriar-se das localidades através do exercício de práticas socioculturais tradicionais, como as festas e procissões de Nossa Senhora das Mercês e São Bento, tem sido a realidade da comunidade de Bento Rodrigues desde que foi estabelecido que o espaço tinha se tornado inabitável. Ainda que reassentados* em um novo território, preservar o que restou do território antigo é prioridade para os bento-rodriguenses – ou como muitos se auto intitulam, dos Loucos por Bento.
*Reassentamento, segundo definição da ACNUR, consiste na transferência de pessoas refugiadas de um país de refúgio para um terceiro país que concordou em admiti-los e em conceder-lhes assentamento permanente”. No caso das populações vitimadas pelo rompimento da barragem do Fundão, a transferência se deu dos territórios devastados para localidades em suas imediações.

Paracatu de Baixo é outra localidade que resiste nos mesmos moldes. Embora em processo de reassentamento, os habitantes do distrito permanecem retornando periodicamente ao antigo território. Celebrações tradicionais, encontros comunitários e festividades marcam a comunidade. Uma das mais conhecidas é a festa do padroeiro Santo Antônio, em que os moradores se reúnem na capela da antiga geografia oficial do distrito para celebrar a imagem do santo com procissão, jantar e leilão de pratos e artigos. Ou como a Folia de Reis do município, conhecida pelos moradores como a “Folia de Seu Zezinho”, onde um cortejo mediado pelo mestre visita as moradias e entoa música para homenagear a visita dos Três Reis Magos ao menino Jesus. Ambas as localidades encontraram na preservação de suas culturas e identidades no território de origem uma forma de velar pelo que sobrou e de proteger o patrimônio cultural local.
O Nonada conversou com moradores, brincantes, profissionais e pesquisadores que estudam os impactos culturais do rompimento da barragem do Fundão na região de Mariana, em Minas Gerais, além de ter consultado relatórios oficiais, artigos e reportagens sobre o assunto.
Pesquisadora das festas tradicionais locais das comunidades e professora na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Flora Passos enxerga na cultura uma estratégia de combate contra a mineração. “As festas são formas de fortalecer a luta e os vínculos afetivos entre eles, e deles com o território. São experiências coletivas e práticas espaciais que resistem ao modelo hegemônico de dominação relacionado à exploração mineral no território. É a cultura que reafirma o sentimento de pertencimento e o desejo pelo restabelecimento dos modos de vida destruídos”, explica em artigo publicado em periódico da Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisadora é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG.
O território de Gesteira divide uma narrativa similar à dos dois distritos. Localizado no município de Barra Longa, a cerca de 47 km de Mariana, uma das poucas construções intocadas pela lama de rejeitos de mineração foi o topo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, ainda que mais tarde a estrutura tenha ruído e a igreja tenha ficado pela metade, como se fosse uma Torre de Babel, inacabada. Para a comunidade quilombola local, resistir ao lento processo de reparação através da afirmação de identidade por meio do exercício de suas tradições culturais faz parte do cotidiano, enquanto esperam a construção do reassentamento que, quase dez anos depois do rompimento, ainda não saiu do papel.
A cultura como fio condutor
Para o antropólogo e fotógrafo Patrick Arley, não é possível falar do impacto em Mariana sem mencionar as práticas culturais: “A cultura deveria ser o fio condutor de todo o processo da reparação. Aquilo que dá sentido pra vida das pessoas, que permite que elas construam a própria vida, aquilo que dá a elas um sentido de comunidade”, diz o pesquisador, que trabalhou durante 2018 e 2019 junto à empresa Estilo Nacional, mapeando as práticas culturais impactadas pelo rompimento da barragem do Fundão. No trabalho realizado, foram identificadas mais de 400 manifestações e atividades culturais afetadas, que vão desde celebrações como a Folia de Reis à atividade de benzeção de benzedeiras e benzedeiros.
O Nonada tentou obter acesso ao relatório produzido pela empresa. Por email, a assessoria respondeu que possui uma “cláusula de confidencialidade no nosso contrato junto à Fundação Renova e por isso não podemos partilhar nada”.
Para o antropólogo, a reparação dos territórios depende da possibilidade das comunidades continuarem existindo do jeito que existiam antes, o que envolve a reconstituição de suas práticas culturais. Em Paracatu de Baixo, a festa de Santo Antônio ainda movimenta a comunidade em torno da antiga igreja. A pedido dos moradores do distrito, a intervenção na Igreja de Santo Antônio se deu sem que a lama fosse removida de suas paredes, como um ato de não esquecimento da tragédia. Desde o ocorrido, anualmente a comunidade se reúne no local para celebrar o padroeiro, caminhando em procissão até a igreja para a realização da missa e posterior ceia.
O vilarejo era conhecido por seus festejos de rua, conectados às celebrações católicas e sincréticas, como a Folia do Seu Zezinho (Folia de Reis, patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais), um símbolo da insistência do mestre José Patrocínio de Oliveira de levar adiante, ainda que num cenário de calamidade, uma tradição importante para a história de toda uma comunidade. A Folia, realizada de dezembro a janeiro, é um cortejo liderado por uma bandeira que abre os caminhos e identifica o grupo, os foliões, portando viola e demais instrumentos e vestimentas. De casa em casa, a população entoa cantigas celebrando em comunidade o acontecimento religioso. A Folia foi levada por Seu Zezinho para o distrito há mais de 60 anos.

Depois que a lama de rejeitos levou todo o material utilizado na Folia, incluindo a própria bandeira, a realização do evento entrou no mapa das incertezas dos paracatuenses. Em depoimento à Cáritas Regional de Minas Gerais para a série “Mariana Território Atingido”, Maria Geralda, filha do seu Zezinho, relata a tristeza do pai com o possível fim da celebração por conta da tragédia. “Ele achou que não ia ter mais jeito porque todo mundo se espalhou. Ficou muito difícil. Só que quando chegou na época da Folia, ele me chamou e falou: ‘Olha, se ninguém quiser me acompanhar, eu vou pegar a bandeira e vou fazer o meu cortejo. Porque eu não posso quebrar esse cortejo da Folia, não posso deixar de fazer. Que seja sozinho’. Aí eu disse ‘não pai, a gente vai te ajudar’”. Em outubro de 2021, Seu Zezinho faleceu sem antes ver a casa reconstruída no reassentamento. A Folia ficou.
Segundo Patrick, a folia representa para as comunidades uma relação de intimidade com o espaço geográfico. Uma vez que a vida comunitária dessas comunidades são indissociáveis do território, “quando você causa danos a essa relação você acaba causando danos em tudo, não só no sentido físico, mas também no sentido simbólico, coletivo, cultural e psicológico”, explica o antropólogo. Ele ainda detalha que a restituição cultural das comunidades depende de uma escuta ativa por parte das mineradoras e do poder público ao que realmente representa a prioridade das vítimas. “É preciso entender o que conta para as pessoas, quais são as formas de produzir sentido para elas, as formas de fazer um coletivo, uma vida comum”.
O território como espaço de memória
É na parte alta de Bento Rodrigues, onde a lama não chegou, que os antigos moradores do distrito se reúnem para preparar a festa de Nossa Senhora das Mercês, no mês de setembro. Além do apego ao espaço onde sempre viveram e da constante luta por afirmar que o território está apropriado pela comunidade, não faria sentido celebrar no espaço onde foram reassentados, o chamado “novo Bento Rodrigues”. A população diferencia o território entre “novo Bento” e “velho Bento”, mostrando que a vida mudou completamente depois do rompimento da barragem.
Como fariam a celebração das Mercês, marcada por uma caminhada em devoção e visita a pontos religiosos, em um lugar de arquitetura urbanística e privativa, sem espaços para encontros comunitários e sem a atmosfera rural comunitária do antigo lugar? Em Novo Bento, a população atingida não se sente em casa.
“[No reassentamento,] as igrejas não tem nem cara de igrejas. Não tem absolutamente nada, assim, nenhuma referência para eles”, comenta a professora Flora Passos. Ao longo do ano de 2019, Flora realizou a pesquisa de campo de sua tese sobre as festas culturais das localidades atingidas junto às próprias comunidades, podendo ver de perto como se dava as celebrações. “A festa autogerida pelos moradores de Bento Rodrigues desde o rompimento, como ato de resistência, ensina-nos que, a partir da troca, do conflito e do dissenso, será possível construir o debate sobre as possibilidades de usos”, destaca a pesquisadora na tese de Doutorado. Nesse mesmo período, a professora também trabalhava como arquiteta no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), onde acompanhou tratativas em torno do patrimônio atingido pelo rompimento da barragem.

Além das características das igrejas do reassentamento, que se distanciam do estilo colonial presente nos territórios atingidos, outro problema para o modelo atual é a divisão de seus espaços, agora delimitados por muros. “A dimensão do espaço comum não se tem mais. Não se tem mais esse espaço da troca social, do encontro. É claro que essas pessoas vão sempre ressignificar e transformar esse reassentamento, e eu não tenho dúvidas quanto a isso. Mas é um modelo urbanístico muito engessado”, argumenta Flora.
O recebimento dos fiéis e a organização da festa da Nossa Senhora acontece em duas das casas que foram restauradas pelos integrantes do grupo auto intitulado Loucos por Bento, depois de terem sido saqueadas logo após o rompimento da barragem. Para a professora, eles “têm sido um grupo de muita resistência, de entender o território como espaço de memória, de apropriação”.
Dando continuidade ao legado de memória do distrito, o grupo inicia a festa com a procissão. No andor sustentado pelos fiéis, a santa é sustentada de braços abertos, como se guiasse todo o caminho. É comum que toda a caminhada seja acompanhada por uma banda, que preenche o ar com cantos e orações.
O itinerário da procissão começa na casa de Dona Teresinha (uma das casas restauradas), ao Norte do distrito. Depois, desce em direção a Capela de São Bento, ao Sul. Em seguida, retorna ao Norte, para a igreja de Nossa Senhora das Mercês (tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, em 2018, como patrimônio histórico e artístico do estado), onde acaba e a celebração continua com a realização da missa. Ao final, é servido o jantar, preparado pela comunidade. Eventualmente, os fiéis aproveitam o embalo da festa e já realizam um leilão, cujos itens são oferecidos pelos próprios moradores, como um pudim ou uma galinha. “É muito bonito ver como a comunidade encontra lá no território essa possibilidade de se reunir”, comenta a professora.

A perda da autonomia sobre a própria cultura
Quase dez anos depois da tragédia causada pelas empresas Vale/Samarco/BHP Billiton, a comunidade quilombola de Gesteira ainda não recebeu suas imagens sacras resgatadas da lama de rejeitos pelas mineradoras. Para celebrar a Festa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do distrito, a comunidade precisa, primeiro, solicitar à Fundação Renova o empréstimo da imagem da santa. “Até hoje a festa não voltou cem por cento, porque a história já vai acabando. O pessoal não consegue a imagem da padroeira para fazer a celebração em Gesteira. Quando consegue, tem que pedir emprestado. Ela vem pro território e, na mesma hora que termina a festividade, ela já volta para a Renova”, explica a presidente da Associação Quilombola de Gesteira Simone Silva. Ela ainda comenta que a comunidade não recebe apoio financeiro para resgatar sua cultura e sua história. “Tudo que nós fazemos no quilombo é com arrecadação própria.”
A professora Flora Passos entende a reparação do patrimônio histórico das comunidades atingidas como um processo verticalizado. “É muito centralizado nas empresas. É uma relação em que as mineradoras são quem ditam, através da Fundação Renova”, pontua. Como consequência desse modelo de reparação, o patrimônio histórico resgatado e restaurado acaba não abrigando a diversidade patrimonial dos territórios, ainda que na região prevaleça a arte sacra do catolicismo e da arquitetura barroca. “Eu sinto que todo o processo de reparação relacionado à cultura tem sido, em Mariana, muito voltado para esse patrimônio do período colonial e muito pouca atenção à diversidade da cultura, principalmente a partir das próprias comunidades”, comenta a professora.
As peças de arte sacra recuperadas são mantidas em uma Reserva Técnica até então administrada pela Fundação Renova. Dentre as imagens estão partes de altares, colunas, imagens de santos e pedaços minúsculos como cabeças e mãos de estátuas. Com o fim da Renova ocasionado pela assinatura do acordo de repactuação, as ações chefiadas pela instituição serão transferidas para a mineradora Samarco, o que inclui a Reserva Técnica.
Para amenizar os impactos do exercício da cultura dificultado por essas burocracias, o quilombo incentiva a criação de novas tradições como forma de cultivar identidade e produzir novas memórias. O grupo de dança da comunidade, chamado Fênix, é uma dessas iniciativas. Simone explica que a ideia do nome veio do fato de que a ave mitológica ressurge das cinzas, “enquanto as mulheres quilombolas de Gesteira ressurgem da lama”.

Como nem tudo que submergiu no rejeito de mineração foi capaz de ser resgatado, a memória do quilombo eternizada em fotografias e demais objetos do cotidiano foi destruída. “Estamos tentando resgatar a nossa cultura, nossa identidade, nossa memória. Na minha comunidade, tudo foi varrido do mato. As lembranças que eu tenho da minha comunidade hoje são nas redes sociais, porque as físicas que a gente tinha foi tudo levado pela lama. As fotos da gente criança lá na comunidade, na casa da minha avó, toda aquela história, aquilo ali foi tudo embora com a lama.”
Saudosa da época em que as festas do quilombo eram realizadas na frente da igreja, Simone relembra o tempo das festividades e lamenta que a realização dos eventos não ocorra da mesma forma. As diversas festas da comunidade, dentre elas as festas de Nossa Senhora da Conceição, das mães, das crianças, das mulheres, da igreja evangélica, do dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), a Cavalgada da Lua Cheia e também a festa junina, quando acontecem, se dão na quadra da escola do distrito.
A memória do que não volta é um lembrete constante de que o desastre socioambiental ainda é recente. “O crime não aconteceu em 2015. Ele continua acontecendo todos os dias da nossa vida. Todos os dias nós somos atingidos novamente, como essa repactuação que foi assinada agora. Isso é outro crime na vida dos atingidos”, ressalta Simone.
Cultura e repactuação
Em outubro do ano passado, as mineradoras e o poder público assinaram um novo acordo para compensar e reparar os danos causados pelo rompimento da barragem do Fundão. Homologado em novembro pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o acordo de repactuação, que renegocia condições estabelecidas no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), ainda em 2016, e que foram consideradas insuficientes, prevê R$170 bilhões em medidas para auxiliar os territórios impactados direta ou indiretamente, incluindo os R$38 bilhões já destinados a medidas de reconstrução desde 2015. O acordo é tido como insatisfatório para a grande maioria dos 49 municípios que ainda não assinaram o documento. O prazo para a assinatura vai até o dia 6 de março.
Apenas algumas das medidas estipuladas na repactuação fazem menção direta à cultura. Os R$14 bilhões a serem aplicados na área fazem parte de uma série de iniciativas que incluem cultura e turismo e se darão, em sua maioria, na “Construção/reforma/ampliação/estruturação de espaços culturais” e no “Inventário e registro do Patrimônio Material e Imaterial, Natural e Histórico”. Outras medidas incluem auxílio a comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais e reparação e fortalecimento da atividade pesqueira.
No mês de junho, a Unesco divulgou o Plano de Reparação das Referências Culturais da Bacia do Rio Doce, cuja prioridade é “preservar a cultura local e fortalecer os laços comunitários na região de Mariana”. A iniciativa é uma parceria com a Fundação Renova, e pretende integrar o Programa de Memória Histórica, Cultural e Artística, da mesma instituição. O projeto abrange tanto Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, quanto Gesteira, em Barra Longa, além de outros distritos em Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado. Alguns de seus eixos temáticos, que visam ações de restituição e mitigação, são educação patrimonial, registros de memória, mestras e mestres da tradição oral, promoção cultural e difusão artística e patrimônio material. Assinado ainda em 2019, o projeto, assim como a reconstrução de Gesteira, sequer saiu do papel, segundo a professora Flora Passos.
(Atualização: Na sexta, 21, a Unesco enviou ao Nonada um relatório de atividades já realizadas. Entre as ações, estão mais de 80 oficinas culturais, “beneficiando mais de 1.500 pessoas”; a promoção de mais de 50 eventos culturais de médio e grande porte, alcançando mais de 10 mil pessoas e mais de 30 projetos com escrita mentoreada, aplicados e contemplados no Edital Doce. Confira a íntegra da notícia aqui.)

Ao Nonada, a Unesco respondeu que o Plano tem sido implementado através do Projeto Abrindo Espaços, e que um dos objetivos para este ano é dar continuidade ao programa. “Incluindo o apoio às manifestações culturais locais, nos novos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana, e nos distritos sede e Gesteira, em Barra Longa.” Outra iniciativa prevista é o “registro de memória e desenvolvimento do Museu Virtual de Território, incluindo a estratégia para a criação de um Centro de Memória físico. Esse espaço de preservação documental, pesquisa e exposição reunirá todo o conhecimento produzido no âmbito do Plano, com ênfase nas iniciativas desenvolvidas em colaboração com as comunidades. O Museu Virtual de Território configura-se como uma estratégia inovadora de preservação e difusão da memória coletiva, fortalecimento das identidades e da resiliência cultural, à medida que busca estimular o protagonismo comunitário no processo de reparação cultural e na construção de soluções de memória para os territórios, incluindo espaços físicos sob a perspectiva de um Museu de Território Sensível”.
Até a publicação desta matéria, a Fundação Renova não respondeu ao e-mail encaminhado pelo Nonada questionando sobre o funcionamento do empréstimo das obras às comunidades atingidas para a celebração das festas; a transferência da Reserva Técnica da Fundação Renova para a Samarco; sobre os motivos pelos quais as comunidades não estão em posse dessas obras; e sobre as denúncias dos moradores a respeito da não participação nas decisões tomadas em relação a cultura e ao patrimônio histórico nas tratativas em torno da repactuação.
Para as comunidades, a repactuação é insuficiente
Mesmo com os reassentamentos, os moradores não perderam o direito às terras que foram devastadas, cabendo a eles decidir o que será feito dos territórios. Apesar desse direito, o avanço da mineração sobre as terras destruídas ainda é uma realidade que preocupa as populações, que tentam preservar o que não foi levado pela lama. A Lei nº 14.066/20, que proíbe as barragens a montante (como era o caso da barragem do Fundão), não impediu que as mineradoras permanecessem nas áreas afetadas.
“Eles acharam outra técnica, né? Dessa vez são as pilhas de rejeitos [ou pilhas de estéril] gigantes, de 200 metros de altura”, diz Flora Passos, professora da Universidade Federal de Ouro Preto. Coordenadora do Conterra (Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Conflitos em Territórios Atingidos), da mesma universidade, Flora diz que o Projeto Longo Prazo, da mineradora Samarco, que dispõe sobre as pilhas de rejeitos presentes em Bento Rodrigues, representa uma ameaça para a comunidade na medida que colocam em risco a sua segurança e o patrimônio histórico remanescente, além da pouca transparência do projeto. “É a própria Samarco que contrata as empresas que fazem o licenciamento ambiental, que fazem o estudo de impacto. É claro que é enviesado”, declara.

Em outubro, as mineradoras e o poder público assinaram o acordo de repactuação que renegocia as condições de reparação estabelecidas no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), de 2016. O acordo prevê o investimento de R$170 bilhões em medidas para auxiliar os territórios. Desse valor, R$6,1 bilhões seriam repassados aos municípios atingidos, sendo R$1,2 bilhão para Mariana. A grande maioria dos municípios ainda não assinou o acordo. Para parte da população atingida, a repactuação é insuficiente.
Foi só no começo de 2023, mais de sete anos depois da tragédia, que o reassentamento de Bento Rodrigues começou a receber as primeiras famílias nas novas moradias construídas pela Fundação Renova, empresa criada pelas mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton para gerir a reparação dos territórios e povos vitimados. Quanto ao reassentamento de Paracatu de Baixo, a entrega das moradias é um processo recente que, tal como Bento Rodrigues, ainda não foi concluído. Em Gesteira, os moradores ainda aguardam a concretização do planejamento de construção de seu reassentamento, que, quase dez anos depois, ainda ensaia formas de sair do papel.
Embora seja uma reconstrução dos lares e dos distritos atingidos como forma de indenizar as vítimas da tragédia, os reassentamentos não reconstituíram por completo a vida antes tida por aqueles que foram atingidos. Uma vez que a transposição dos territórios não envolveu a devolução plena da cultura e dos costumes tradicionais locais, a existência dos reassentados permanece vinculada ao território antigo, enraizada num eterno ‘entre’, onde o reassentamento mantém a estrutura enquanto o espaço devastado encapsula o espírito da comunidade. No caso de Gesteira, suspensa num limbo de espera pelo reassentamento, esse entre se dá no próprio território devastado, onde a comunidade dá continuidade ao seu cotidiano mesmo em meio aos rastros da lama. Porque viver é algo que não se pode esperar.