*Atualizado no dia 25/02 para trocar a palavra “relatório” por “nota”
Após reportagem produzida pelo Nonada que aborda os impactos culturais na vida das comunidades atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão, na região de Mariana, Minas Gerais, a Unesco, agência da ONU para a cultura, enviou à reportagem um resumo com as atividades realizadas na reparação cultural das comunidades nos últimos quatro anos. No texto, o Nonada faz menção ao Plano de Reparação das Referências Culturais da Bacia do Rio Doce, realizado pela instituição em parceria com a Fundação Renova.
Intitulada “A lama mudou a festa”, a reportagem conversou com moradores, brincantes e pesquisadores dos territórios atingidos na região de Mariana e constatou que as festas e expressões culturais se tornaram uma forma de resistência de quem teve a vida completamente modificada. “Até hoje a Festa de Nossa Senhora da Conceição não voltou 100%. O pessoal não consegue a imagem da padroeira para fazer a celebração em Gesteira. Quando consegue, tem que pedir emprestado. Ela vem pro território e, na mesma hora que termina a festividade, ela já volta para a Renova”, conta Simone Silva, presidente da Associação Quilombola de Gesteira, um dos territórios atingidos.
Na matéria, pesquisadores afirmam que o Plano ainda não havia chegado na fase de execução. Durante a apuração, a reportagem entrou em contato com a Unesco para questionar sobre a aplicação do Plano, seus resultados e as previsões acerca de sua continuidade, considerando que a Fundação Renova, parceira no projeto, está em liquidação depois da assinatura do acordo de repactuação das empresas mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton.
Na última sexta-feira (21/02), a assessoria de imprensa da Unesco complementou a resposta, encaminhando ao Nonada uma nota com as ações já realizadas pela organização em relação à execução das atividades planejadas no Plano, por meio das ações do Programa Abrindo Espaços. Grande parte das ações realizadas estão documentadas no site Caminhos de Memória, que não estava disponível no momento da apuração. A Unesco informa que o site ainda está em construção e que o lançamento ainda será realizado junto à comunidade.
Entre as ações já realizadas pela Unesco, estão mais de 80 oficinas culturais, “beneficiando mais de 1.500 pessoas”; a promoção de mais de 50 eventos culturais de médio e grande porte, alcançando mais de 10 mil pessoas e mais de 30 projetos com escrita mentoreada, aplicados e contemplados no Edital Doce.
A assessoria de imprensa da Samarco, empresa que passará a gerir os projetos e ações da Fundação Renova, incluindo a Reserva Técnica, não respondeu ao contato do Nonada questionando sobre a não devolução das imagens sacras às comunidades atingidas; as burocracias no empréstimo das mesmas; e o futuro da Reserva Técnica diante da transição de administração dos patrimônios artísticos, históricos e culturais.
Confira abaixo a nota da Unesco sobre as atividades de reparação das referências culturais realizadas na Bacia do Rio Doce na íntegra:
Desde 2021 a UNESCO tem realizado uma série de ações voltadas para o registro de memória, educação patrimonial, promoção cultural, esporte e lazer em cooperação com a Fundação Renova (em liquidação) para a reparação das referências culturais impactadas pelo rompimento da barragem de Fundão. Naquele ano, os esforços concentraram-se no apoio às festas e celebrações, respondendo a demandas emergenciais e assegurando a manutenção dos vínculos comunitários. Com as restrições impostas pela pandemia, foram implementadas ações pontuais, como os registros audiovisuais das folias de reis de Paracatu de Baixo e de Pedras, em Mariana, e das folias nova e velha de Barreto, em Barra Longa (https://caminhosdememoria.com.br/cinema/). Além disso, foram realizadas validações de diagnóstico das referências culturais (realizados em 2018 e 2019) e diálogos de aproximação com as comunidades para estruturar o plano de ações do ano seguinte.
Em 2022 foram iniciadas as ações-piloto do Programa Abrindo Espaços nos municípios de Mariana, Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, oportunizando às comunidades atividades de esporte, cultura e lazer, além de ações de educação patrimonial e de registro de memória, a exemplo do Projeto “Percursos de Patrimônio” — experiências educativas que incentivam uma exploração sensível da paisagem, promovendo um novo olhar sobre o patrimônio cultural das localidades. A iniciativa, inspirada na lógica de Museu de Território, envolve uma caminhada mediada por uma rota previamente definida, complementada por práticas educativas que estimulam a percepção sensível e crítica do patrimônio cultural e ambiental. Entre 2022 e 2023, foram realizados 13 Percursos com alunos das escolas com a participação de mais de 350 estudantes. Ainda em 2023, foram realizados os Encontros de Patrimônio, seminários cujo objetivo foi de prestar contas às comunidades sobre as ações desenvolvidas no âmbito do plano até aquele momento.
Em 2024, o Programa Abrindo Espaços ampliou significativamente sua atuação, especificamente nos novos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana, e no distrito de Gesteira, em Barra Longa, promovendo 15 eventos de pequeno e médio porte, com uma média de 300 participantes por evento. A programação cultural difundiu tradições que faziam parte do cotidiano nos territórios de origem, fortaleceu os vínculos comunitários e impulsionou a economia local. Além dos eventos, o Programa realizou oficinas regulares de artesanato, música e danças, como a Dança da Peneira, além da confecção de estandartes, cinema itinerante, rodas de conversa e outras iniciativas voltadas para a valorização da cultura local.
No âmbito da cooperação, os resultados alcançados nos últimos 4 anos incluem:
• Mais de 30 registros de memória, (incluindo livretos, cartilhas, caderno técnico e materiais de apoio pedagógico em educação para o patrimônio cultural) e audiovisuais (videodocumentários), mais em: https://caminhosdememoria.com.br/colecoes/ ;
• Apoio logístico, operacional e de produção/curadoria para mais de 50 festas e celebrações;
• Realização de mais de 80 oficinas culturais, beneficiando mais de 1.500 pessoas;
• Promoção de mais de 50 eventos culturais de médio e grande porte, alcançando mais de 10 mil pessoas;
• Mais de 30 projetos com escrita mentoreada, aplicados e contemplados no Edital Doce.
• Mais de 80 ações de educação patrimonial, incluindo Percursos de Patrimônio, palestras, oficinas e minicursos;
• Dezenas de rodas de conversa voltadas para a construção coletiva de soluções de memória;
• Três visitas técnicas formativas para a construção de soluções de memória para o território de origem de Bento Rodrigues, incluindo um projeto conceitual para a reconstituição da Capela de São Bento;
• Desenvolvimento (1ª etapa concluída e 2ª etapa em curso) de um Museu Virtual de Território (https://caminhosdememoria.com.br)
Em 2024, as ações passaram a ser estruturadas dentro de uma lógica de salvaguarda, com foco na ampliação das capacidades organizativas das comunidades. O objetivo é fortalecer a retomada da autonomia e ampliar a capacidade de gestão da política pública de patrimônio, garantindo que as próprias comunidades sejam protagonistas na preservação de suas referências culturais.
Todo detalhamento das ações desenvolvidas na cooperação com a UNESCO podem ser consultadas pelos relatórios de atividades do Projeto, disponíveis em: https://caminhosdememoria.com.br/documentos/
Recapitulando a reportagem

Os distritos de Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues, em Mariana, e Gesteira, em Barra Longa, foram as localidades mais impactadas pela avalanche de rejeitos que soterrou as comunidades ao redor do Rio Doce, compreendendo territórios de Minas Gerais e do Espírito Santo. A reportagem enfatiza como as três localidades mais impactadas fazem uso de suas práticas culturais tradicionais e populares como forma de resistir diante do avanço da mineração nos territórios devastados, tidos como desapropriados em virtude da impossibilidade de residência.
Com o reassentamento dos atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, as comunidades compulsoriamente deslocadas de seus territórios de origem aos poucos migram para as novas localidades, que ficam nas proximidades dos territórios devastados. Quase dez anos depois do desastre socioambiental que é um dos maiores do Brasil e do mundo, a população de Bento Rodrigues ainda não está completamente reassentada no Novo Bento Rodrigues. Em Novo Paracatu de Baixo, a população só passou a receber a entrega das primeiras casas em 2023. O reassentamento de Gesteira ainda não saiu do papel, embora a comunidade já tenha escolhido o novo território do distrito. Apesar dos reassentamentos, as comunidades conseguiram por meio da Justiça o direito da não permuta, ou seja, não perderam o direito às terras destruídas mesmo em posse das novas propriedades, podendo ditar o que será feito delas.
As práticas tradicionais culturais das comunidades impactadas são uma forma de demonstrar que os territórios atingidos permanecem apropriados. As festas de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues; de Santo Antônio, em Paracatu de Baixo; e as novas tradições criadas pelo quilombo de Gesteira (que ainda habita o território devastado), são utilizadas como forma de protestar a apropriação dos territórios, principalmente em Bento Rodrigues, onde a empresa mineradora Samarco avança com atividades de mineração. Depois que a prática de barragem a montante foi proibida pela justiça por meio da Lei nº 14.066/20, a mineradora encontrou nas pilhas de rejeito (ou pilhas de estéril), estruturas de cerca de 200m de altura, uma forma de continuar atuando na localidade.
Em Gesteira, a não devolução das imagens sacras da comunidade, resgatadas pela Fundação Renova e mantidas em sua Reserva Técnica, dificulta a retomada de suas práticas culturais e festejos tradicionais. Simone Silva, líder quilombola do distrito, narra na reportagem os entraves para festejar Nossa Senhora da Conceição, padroeira do distrito. Desde que foi resgatada da lama, a imagem da santa não foi devolvida à comunidade e permanece em posse na Reserva Técnica. Para a realização dos festejos da santa, a comunidade precisa solicitar o empréstimo da imagem e devolvê-la ao final da celebração.