Cátia Conceição, do Atelier Arte e Fibra, em Paraty (Foto: Luiza Saad/Rede Artesol)

Como o artesanato de comunidades tradicionais preserva o meio ambiente e as culturas ancestrais nos territórios

O Quilombo do Campinho, localizado em Paraty (RJ), abriga muitas famílias que dão continuidade a técnicas ancestrais de arte e cultivo. No território, Cátia Conceição Bento integra a família Bento, responsável pelo Atelier Fibra e Arte, um dos muitos encontrados no Quilombo. A avó de Cátia foi responsável pela criação da Casa de Artesanato Central, que concentra as produções da comunidade. 

“Ela [avó] ensinou a todos aqui. Ela que começou com o trançado. Aprendeu com o avô dela, quando ele trabalhava com caxeta, madeira. Dali ela foi descobrindo outras técnicas de trabalhar com artesanato. Ela tinha essa ideia de que a gente saísse de lugares da cidade e viesse trabalhar na própria comunidade. A gente trabalhava em casas de família, muitos trabalhavam fora”, conta Cátia.

Assim como o Quilombo do Campinho, muitas  outras comunidades tradicionais brasileiras possuem sua produção artesanal diretamente associada aos elementos naturais que as circundam, assim como carregam consigo toda a cultura ancestral que atravessa a vida desses povos. O Nonada conversou com artesãos e artesãs de comunidades tradicionais de diversos estados do país que têm suas produções incentivadas por organizações e iniciativas sem fins lucrativos, como o Instituto Socioambiental, a Rede Artesol e a organização Tingui.

Artesãos da comunidade Os Rufinos, em Pombal (PB) (Foto: Bruna Dias/Rede Artesol)

Em Pombal (PB), a produção artesanal da comunidade quilombola Os Rufinos também é associada à independência financeira: “Desde sempre o artesanato era utilizado como forma de buscar a sobrevivência, uma forma de renda”, conta Thiago Rufino. A tradição com cerâmica e barro é herança de Mãe Quina, que junto a Antônio Rufino de Jesus, filho de uma ex-escravizada, deram início à comunidade. “Uma característica muito forte do nosso quilombo é a relação  da herança material e imaterial através da cultura”, explica Thiago. Ainda que o artesanato não seja a atividade principal da maioria dos habitantes de Os Rufinos, existem planos para um processo de cooperativismo que fortaleça a prática. 

A distância de 14 km entre o sítio onde se localiza o quilombo e a sede do município no sertão paraibano gera algumas complicações, visto que a comunidade é assentada entre as margens dos rios Piranhas e Piancó. Thiago Rufino diz que chegam a ficar de três a quatro meses do ano sem acesso por terra ao espaço urbano, e que mesmo contatando órgãos públicos sobre a dificuldade, nada foi feito a respeito.  

Artesão do Quilombo do Campinho (Foto: Luiza Saad/Rede Artesol)

No Quilombo do Campinho, cada integrante da família Bento apresenta uma afinidade maior com diferentes técnicas.  A fibra com a qual Cátia mais trabalha é a da taboa, que pode ser encontrada nas áreas alagadas do Quilombo e em territórios vizinhos. Sua mãe costuma trabalhar mais com a fibra da taquara, enquanto o pai é especialista na do bambu. Os resultados são diversos: cestas, boleiras, tapetes, luminárias e muito mais. Esse trabalho é responsável inteiramente pela sustentabilidade econômica da família, e fonte de renda de muitas outras da comunidade. 

Um trabalho composto por várias etapas e sujeito a riscos, como explica Cátia: “A gente corre o risco de estar dentro de um brejo porque tem vários animais peçonhentos. Chegar alguém aqui e falar que está caro, não têm noção do trabalho”. O processo de coletar as fibras é herança de gerações e é envolto pelo cuidado com a preservação ambiental dos territórios. Cada uma das diferentes plantas exige um processo de extração diferente, para que se tenha maior proveito e evite a morte. “A gente recebe por isso [artesanato], então a gente quer que esteja ali sendo preservado”, esclarece Cátia.

Fiando e cantando

Para as fiandeiras do Vale do Jequitinhonha (MG), o artesanato não dá conta de prover toda a renda necessária para o sustento econômico. “A gente faz não pelo dinheiro, mas pelo encontro, de encontrar uma com as outras e passar o saber umas para as outras”, diz Maria da Aparecida Leite. Quanto ao incentivo externo, Maria responde: “Os grupos mais velhos nos incentivam”, e menciona também a organização Tingui.

As fiandeiras trabalham tecendo o algodão e Maria conta que chegam a ter encontros impossibilitados em períodos de seca. Encontros esses que, quando acontecem, são inundados pelos cânticos entoados em conjunto. “As cantigas estão ligadas a nossa ancestralidade, nos conectam com nossos avós, bisavós. Nos levam a uma outra dimensão, em um tempo passado onde as mulheres que plantavam algodão lutaram com muita força. A cantiga é curativa. O trabalho, quando a gente canta, rende mais e a gente não cansa”, conta Marli de Jesus Costa, da comunidade quilombola de Curtume, também no Vale do Jequitinhonha.

Marli lembra que todo material com os quais as fiandeiras trabalham vem da natureza e do uso sustentável dos recursos naturais. Os algodões utilizados, por exemplo, são plantados sem utilização de agrotóxicos. “Elas [fiandeiras] precisam ser cuidadosas na retirada da casca, saber qual a casca que serve para dar a cor de tinta que elas querem. Precisam entender a Lua, respeitar os dias do mês e da semana. Precisam pedir licença para entrar na mata e retirar as cascas, folhas, frutos e raízes. É uma relação íntima. Retira da natureza o que precisa mas também zela por ela. Não pode cortar a madeira nem queimar nada”, explica. 

Três horas de viagem de carro separam o Vale de Jequitinhonha da cidade de Berilo (MG), onde as fiandeiras da comunidade quilombola Roça Grande parecem partilhar de conhecimentos similares em relação à natureza, como conta Maria Valdete Gonçalves Cota, presidente da Associação de Produtores e Artesãs de Roça Grande: “quando se usa as cascas das árvores para o tingimento, como a casca da mangueira, do angico, do tingui, jenipapo entre outros, só retira uma porcentagem da casa para manter viva a árvore.”

O trabalho com artesanato em Roça Grande desabrocha em meio à agricultura familiar praticada por seus habitantes, que também funciona como fonte de renda. Cana de açúcar, milho, feijão, quiabo e abóbora são algumas das plantas produzidas no território.  Para a produção de redes, almofadas, bolsas e muitos mais, são utilizados dois tipos de algodão: o arbóreo e uma espécie rara que leva o nome de “ganga”, responsável pela tonalidade caramelo.

“As pessoas que vem de fora não estão acostumadas a ver isso na cidade grande. Não estão acostumadas a ver tanta alegria”, fala Marli sobre o encanto das pessoas que visitam os espaços de trabalho das fiandeiras do Jequitinhonha. Ela opina que quando as pessoas percebem o amor a energia depositados no artesanato, passam a valorizar ainda mais as peças produzidas. 

O não-índigena precisa conhecer

Para Larissa Ye´padilho Duarte, a desvalorização do artesanato índigena pelo não-índigena é um dos desafios a serem enfrentados pelas mulheres da aldeia onde cresceu, em São Gabriel da Cachoeira (AM). As artesãs percorrem longas distâncias para comercializar peças sob as quais trabalham durante meses e muitas vezes sequer conseguem vender. “Eu acredito que falta essa consciência das pessoas não-indígenas. Não é só pegar cerâmica para enfeitar. É um pedaço do território. É um conhecimento muito ancestral. É muito difícil uma pessoa entender sobre isso que eu estou falando se não saíram ainda das suas comunidades de base, não tem muito conhecimento de fora”, explica Larissa, que acredita que a cultura índigena poderia ser mais divulgada.

Desde a infância, Larissa via a avó trabalhando com cerâmica. Era a mãe de seu pai, que passou o conhecimento para a nora, que mais tarde o transmitiria para a filha. “A mulher índigena não aparece muito. Ela não escreve livro, não se filma, não fala dela. Mas ela faz um papel muito importante para que esses conhecimentos dos nossos antepassados continuem presentes hoje em dia. Por exemplo, a cerâmica Tukano, que era conhecimento de uma família, agora é geração de renda para outras famílias”, conta Larissa.

Loja inaugurada pelo Instituto Socioambiental em 2022 comercializa produções de comunidades indígenas e quilombolas (Foto: Claudia Tavares/ISA)

A história da mãe de Larissa com o artesanato se assemelha a de Elizângela da Silva Costa, do povo Baré, também São Gabriel da Cachoeira (AM).  Ela conta que retomou o contato com o fazer artesanal a partir da sogra, que trabalhava com fibra de tucum, fazendo desde colares até fruteiras. Foi a partir desse momento que Elizângela passou a ver no artesanato uma possibilidade de sustento. “Quanto eu morava com minha mãe, eu era babá. Eu ia para casa dos militares. Minha mãe trabalhava na vila militar e sempre falava para ser babá. Quando alguém tava precisando, a gente ia cuidar das filhas dos militares. A gente ficava estudando e trabalhando ao mesmo tempo”, relembra Elizângela. 

Sobre as técnicas empregadas por diferentes aldeias e grupos étnicos, Larissa estabelece uma comparação: “Sabe a receita de bolo que os não indígenas usam? Os materiais são sempre trigo, ovo… Aí cada mulher tem sua própria forma de fazer o bolo. Na cerâmica é a mesma coisa. Elas ensinaram a pegar a argila, modelar, defumar, queimar, etc. Mas muitas das vezes, entre as mulheres, elas têm a sua própria técnica. Por exemplo, quando estão defumando a cerâmica para ficar preta, umas utilizam sumo de casca. Mas para outra, não dá. Ela usa a folha de cubiu. As mais velhas dizem que depende muito da mão de cada mulher.”

“A gente não se divide nesse mercado. Hoje de manhã eu to fazendo brinco, de tarde eu to fazendo uma bolsa. Se você quiser concorrer em um edital, precisa ter que colocar que é artesã e produtora de biojoias, ou cestarias… Esse é o desafio para nós”, compartilha Elizângela sobre as dificuldades do ofício. 

Polimento de cerâmica com semente de inajá em São Joaquim do Ayari, Terra Indígena Alto Rio Negro (AM). (Foto: Natália Pimenta/ISA)

Originária da região Norte do país, do povo Tukano, Larissa transita hoje também pelo Sudeste, onde estuda Artes Visuais na Unicamp. “Sinto falta de tomar banho no rio, da minha família, da casa, do ritmo que eu tinha nas comunidades. Mas eu sinto que eu preciso terminar o curso, somar o conhecimento tradicional com o conhecimento ocidental, para entender como é o ponto de vista dos não-indígenas em relação às artes índigenas”.  Larissa explica que logo quando começou a graduação se deparou com professores de mentalidade pouco aberta, com “pensamento do colonizador”. 

Esse deslocamento mexeu com o modo de Larissa trabalhar a cerâmica, já que “não pode fazer fogo na cidade”. Os grafismos empregados nos objetos dão sequência aos conhecimentos tradicionais quando é preciso buscar outra maneira de realizar a defumação das peças. A estudante ainda reflete sobre processos e tecnologias com os quais entrou em contato em Campinas: “Na minha comunidade, as mulheres que trabalham têm problemas de vista por causa de muita fumaça e também sofrem com a coluna, porque carregam muita coisa pesada, madeira nas costas, na cabeça. Eu acredito que a tecnologia não indígena pode ajudar a facilitar também”.

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Estudante de Jornalismo que acredita em uma leitura da realidade a partir das expressões culturais. Tem especial interesse pela imagem, religiosidades, perspectiva queer e jogos eletrônicos. Flerta com o cinema, organizando e participando das curadorias do Cineclube Vestígio em Porto Alegre.
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