Beatriz de Oliveira, especial para o Nonada Jornalismo, e Anna Ortega
A cozinheira paraense Maria Helena Galdino cresceu ao lado da mãe, no bairro do Marco em Belém (PA). Desde criança, adquiriu o hábito de observar os temperos e modos de fazer das comidas de seu território. Na mesa da família matriarcal, sempre era possível encontrar uma maniçoba, um peixe no tucupi ou um arroz paraense. Porém, ao escolher uma profissão, Maria Helena não optou pela gastronomia de imediato. Ela trabalhou vários anos no ramo calçadista, até que em 2016, trocou de profissão para cuidar da saúde da mãe. “Por que não cozinhar?”, pensou.
No quintal da casa, começou a fazer os pratos que já conhecia, como a maniçoba e o peixe frito. Não demorou muito para o local virar um sucesso da vizinhança. “Muita gente começou a dizer que iria almoçar lá no quintal. As pessoas falavam que era um tempero único, que era o ‘sabor da nega’”, conta. Com a casa sempre lotada, mãe e filha expandiram o cardápio, oferecendo mingau de milho e tapioca. Assim, nasceu o Sabor da Nega, empreendimento culinário familiar gerido por Maria Helena.
Seu trabalho com a gastronomia paraense é a definição de “Patrimônios culturais que cabem num prato”. No dia a dia, prepara comidas que estão intimamente ligadas à cultura de seu povo. “A nossa comida paraense é muito rica, cheia de ancestralidade. Aprendemos através das gerações até o dia de hoje.”

Tanto é que são base para alguns dos bens culturais imateriais registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como, por exemplo, o ofício das doceiras de Pelotas (RS) e o ofício das baianas do acarajé, que é originário da Bahia mas é registrado em todos os estados brasileiros. Seja no dia a dia, numa manifestação religiosa, em celebrações e festas, as comidas estão sempre presentes na cultura brasileira das cinco regiões.
“Todo grupo social tem uma comida própria, uma comida que se come em casa”, afirma Ana Claudia Alves, especialista em Preservação Cultural pelo Iphan, onde trabalhou entre 1983 e 2010. Nessas décadas de experiência, ela pôde constatar que “as pessoas podem esquecer a língua materna, mas não esquecem as comidas maternas”.
No caso de Maria Helena, a origem materna é direta. “Me espelhei em minha mãe para cozinhar”, explica. O entendimento dela é que o trabalho com alimentação é também um trabalho com a cultura. “Eu sempre digo que não trabalho com comida típica. Eu faço comida regional paraense. É como estar com o Pará em nossas mãos. É sobre quem nós somos”, define. Assim como as comidas significam identidade e ancestralidade para ela, diversos outros pratos alimentares são registrados por sua importância cultural no Brasil.
Comida é transmissão de saberes
Sabrina Silva, técnica em História pelo Departamento de Patrimônio Imaterial e Coordenadora Substituta de Registro e Revalidação do Iphan, pontua que os sistemas alimentares refletem a história e as formas de convivência de comunidades. “Esses saberes e práticas incluem modos tradicionais de cultivar, colher e preparar alimentos, além das dinâmicas culturais que incluem o significado de determinados alimentos, a transmissão de conhecimentos e o compartilhamento de refeições. Dessa forma, o alimento se torna um elemento simbólico que conecta pessoas, sociedade e cultura”, afirma.
Nota-se que o Iphan não reconhece as comidas em si ou as receitas culinárias como patrimônios culturais, mas sim as práticas e saberes ligados à alimentação. Isso se deve a um entendimento do órgão, que considera os alimentos como parte de processos culturais. “Por isso, a identificação, o reconhecimento e o apoio devem estar voltados às referências culturais associadas à produção e ao significado dos alimentos para determinadas comunidades, que por vezes não se limita à comercialização”, explica Sabrina.
As práticas e saberes ligados à alimentação já reconhecidos como patrimônio cultural são as seguintes: Ofício das Baianas de Acarajé; Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro, Serra da Canastra e Salitre/Alto Parnaíba; Produção Artesanal e Práticas Socioculturais associadas à Cajuína do Piauí e Tradições Doceiras de Pelotas. Há ainda o Sistema agrícola tradicional de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) e o Sistema agrícola tradicional do Rio Negro.

Além disso, atualmente outras quatro práticas e saberes estão em processo de registro: Ofício de Tacacazeira na Região Norte; Ofício das Quitandeiras de Minas Gerais; Modo de Saber Fazer do Queijo Artesanal Serrano de Santa Catarina e Rio Grande do Sul; e Engenhos de Farinha de Santa Catarina.
Essas tradições devem ser adicionadas aos mais de 40 bens culturais de natureza imaterial já registrados pelo Iphan. Isso se tornou possível a partir do ano de 2000, com o Decreto Presidencial 3.551 que criou a Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, permitindo assim que celebrações, saberes da cultura popular e outras práticas passassem pelo registro do órgão.
Para além de decretos e registros do Iphan, “o principal motivo para que esses patrimônios estejam vivos é o olhar das comunidades entendendo que é um bem cultural e pensando coletivamente como mantê-lo” afirma a historiadora Gabriella Pieroni, autora da dissertação de mestrado “Fazedores de cultura, comedores de patrimônio: Estado e sociedade civil no registro do patrimônio imaterial ligado à alimentação (2000/2016)”.
Gabriella aponta também que entre os motivos que levam as comunidades a reivindicarem o registro de um bem como patrimônio cultural está a busca por um olhar mais atento do Estado para as dificuldades locais pelas quais passam para manter suas práticas e saberes.

Quais práticas e saberes alimentares são considerados patrimônio?
Na família de Maria Helena, e de milhares outras no estado do Pará, um patrimônio cultural imaterial ligado à alimentação é o Círio de Nazaré, manifestação de fé que conta com várias celebrações e procissão em homenagem à padroeira da Amazônia. Parte importante da tradição é o “almoço do Círio”, que inclui pratos típicos como a maniçoba e o pato no tucupi – presentes no cardápio do Sabor da Nega o ano inteiro. Já no Rio de Janeiro, a tradição do Samba, registrada pelo Iphan em 2007, é outro exemplo de reconhecimento. Como não associar uma roda de samba a um boa feijoada?
No ano de 2004, houve o primeiro registro de uma prática diretamente ligada à alimentação: o Ofício das Baianas de Acarajé. O acarajé – bolinho de feijão fradinho, cebola e sal, frito em azeite-de-dendê – é de origem africana, vindo com os escravizados durante a colonização. E são as baianas do acarajé quem preservam e perpetuam esse legado.
O dossiê destaca que esse registro expressa a relevância das raízes afro-brasileiras na cultura. “O registro do Ofício das baianas de acarajé como Patrimônio Cultural do Brasil, no Livro dos Saberes, é ato público de reconhecimento da importância do legado dos ancestrais africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade e do valor patrimonial de um complexo universo cultural”, diz o texto.
Em 2008, foi a vez do registro do Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro, Serra da Canastra e Salitre/Alto Parnaíba, que destaca a produção artesanal de queijos de leite cru com técnica de origem milenar. “Fazer e comer queijo são parte do modo de ser mineiro”, resume-se no dossiê.
Já em 2010, houve a primeira definição de um sistema agrícola como patrimônio cultural: o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. Passando por municípios amazonenses como São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos, esse sistema é comandado por diferentes povos indígenas e baseado na mandioca, que desemboca no preparo de itens essenciais na culinária local, como farinha, beiju, tucupi e caxiri.
No ano de 2014, o reconhecimento cultural veio à Produção Artesanal e Práticas Socioculturais associadas à Cajuína do Piauí. A cajuína é uma bebida não alcoólica feita a partir do suco do caju, por meio de uma produção tradicional feita por diferentes famílias em seus próprios quintais.
Em 2018, houve o registro das Tradições Doceiras de Pelotas (RS). As produções envolvem doces como: bem casado, marmelada, quindim, pessegada, ninho, camafeu, figo em calda, amanteigado, ameixa recheada, abóbora cristalizada e bolo de noiva. A tradição se desenvolveu em casas de famílias ricas, contando com as trocas entre senhoras da elite e suas cozinheiras, formada em maior parte por mulheres negras escravizadas e suas descendentes.
No mesmo ano, o Iphan reconheceu o Sistema agrícola tradicional de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) como patrimônio cultural. Além das técnicas de cultivo e diversidade das plantas, a prática envolve a transmissão de conhecimento e de consumo alimentar através de expressões de música e dança.
Origens afro-brasileiras e indígenas na alimentação

Ao olhar para os registros citados acima, ficam evidentes as contribuições de populações indígenas, africanas e afro-brasileiras para a construção da diversidade culinária existente no país e seus impactos nas culturas populares. Mas, para Gabriella Pieroni, essa representatividade ainda precisa ser ampliada. “O Iphan deveria fazer um trabalho de fortalecer as culturas indígenas e de matriz africana nos registros das práticas alimentares, é muito importante alguma ação pensando em priorizar esses processos”, afirma.
A pesquisadora, que analisou os pedidos de registro ao Iphan ligados à alimentação entre 2000 e 2016, destaca ainda que muitos desses pedidos trazem narrativas que promovem o apagamento das culturas alimentares indígenas e afro-brasileiras. “Muitos deles vem com uma narrativa que enaltece a cozinha portuguesa, a influência dos colonizadores, como é o exemplo da tradição doceira de Pelotas (RS), que foi registrada, e no meio do processo se aprofundou essa relação com as comunidades negras, que não existia anteriormente [no pedido de registro]”, explica.
Para além dos patrimônios culturais ligados diretamente à alimentação, há aqueles que de alguma forma se relacionam com isso, conforme explica Ana Claudia Alves. É o caso, por exemplo, do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, que trata de mulheres do Espírito Santo que produzem panelas de barro, as quais são itens indispensáveis para receber pratos como as moquecas de peixe e a torta capixaba. “A comida sempre faz parte da festa e do cotidiano. Tem comidas cerimoniais, tem as mais festivas e tem as comidas do cotidiano”, pontua Ana Claudia.
Gabriella Pieroni destaca que entender a comida como patrimônio pode reverberar em diferentes âmbitos da sociedade. “É muito importante reconhecer os patrimônios alimentares do Brasil. A agricultura e a alimentação contém bens culturais que contam a nossa história e a nossa identidade cultural. E também, esse olhar da educação patrimonial e da salvaguarda do patrimônio imaterial é uma ferramenta muito interessante para se pensar o combate à fome e a resiliência às mudanças climáticas”, diz.

Beatriz de Oliveira
Jornalista formada pela PUC-SP. Atualmente é repórter do veículo Nós, mulheres da periferia. Tem como foco pautas de memória, sociedade e cultura.