Lucas Veloso, especial para o Nonada Jornalismo
São Paulo (SP) – Por trás de uma barbearia na parte alta da favela de Paraisópolis, o artista plástico Moisés Souza foi apresentado a um espaço ocioso no segundo andar da casa do amigo Hermeson de Morais, mais conhecido como Ticano. “Ele me mostrou o lugar e disse que sonhava em ter uma galeria ali”, lembra Moisés. A ideia ficou guardada por meses até que ele decidiu retomar o contato. “Falei pra gente montar a galeria do jeito que estava. Ele fez umas reformas, eu chamei os artistas. Deu no que deu.”
Assim nasceu, em dezembro de 2024, a Favelarte Galeria Suburbana. Um espaço criado para dar visibilidade à arte periférica e abrir caminhos para artistas que não encontram lugar no circuito tradicional. “Arte tem que estar onde não há. Ali não tinha galeria, agora tem.”
Na zona sul de São Paulo, outra galeria surgiu por impulso semelhante. O fotógrafo Léu Britto, morador da favela Monte Azul, conta que estava cansado de tentar emplacar suas fotos no mercado tradicional. “Decidimos criar e fomentar o nosso mercado”. Em 2024, junto ao sócio Rogério Vieira, fundou a Galeria Sérgio Silva, que deu início ao FotoBeco, uma exposição fotográfica a céu aberto no meio da comunidade. “Nossa ideia era criar um circuito de arte da ponte pra cá”, diz Léu. “Onde melhor fazer isso do que com o nosso povo, no nosso bairro?”
Galerias que movimentam cultura e economia

Nem a Favelarte nem a Galeria Sérgio Silva começaram com patrocínio ou edital. Foram erguidas com recursos próprios e apoio informal dos vizinhos. “A gente queria um espaço para mostrar nosso trabalho”, diz Moisés. “Não acredito que a galeria vá mudar a visão sobre a favela, mas os artistas brotam e precisam de lugar para expor”.
Além de espaços culturais, as galerias também se tornaram polos de economia criativa nos próprios territórios. “Ficamos aqui, entre os nossos. O dinheiro que gira aqui, fica aqui”, afirma Léu. Desde os montadores até os artistas gráficos, as exposições movimentam uma cadeia produtiva local. “Quem imprime a lona é da quebrada. Quem instala, também. Quando tem evento, a gente compra da tia do lanche, do som do vizinho”, completa.
Jamila Reis Gomes, geógrafa, professora e doutoranda em Geografia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), pesquisa há mais de dez anos as relações entre arte, cidade e território. Organizadora do livro A arte como geografia: sentir e viver o espaço (EDUFBA), junto com Maria Auxiliadora da Silva, ela observa que esses espaços têm papel estratégico na criação de redes econômicas autônomas. “As periferias constroem um circuito cultural que também é um circuito de trabalho, renda e sobrevivência. A arte nesses territórios é também empreendedorismo”, pontua.

Léu Britto entende essa construção como forma de resistência e de afirmação econômica. “Não vamos dar nosso dinheiro para nenhuma imobiliária. Vamos ficar e fortalecer quem é daqui”, reforça. “Quem do mercado fotográfico está preocupado em preservar a arte da quebrada? Dá pra contar numa mão”.
Esse posicionamento faz parte de um movimento mais amplo de descentralização da cultura. “Há uma intensa produção artística nas periferias que constrói o lugar da ação, da produção de arte e economia na contramão de um mercado dominante”, diz Jamila. “Essas galerias articulam a arte ao território em que estão inseridas”. Jamila também destaca o impacto simbólico dessas iniciativas. “Alguns bairros passam a ser conhecidos por causa desses espaços. É possível contemplar não só arte, mas também novas propostas e ressignificações do território”.
Segundo o Mapa da Desigualdade 2024, o distrito do Jardim São Luís, onde está a favela Monte Azul, conta com apenas 1 equipamento público de cultura. Em Vila Andrade, que abrange Paraisópolis, não há nenhum. Para mais de 300 mil moradores, espaços como a Favelarte e a Galeria Sérgio Silva são mais que alternativas culturais: são ferramentas de sobrevivência e ocupação econômica.
Nem sempre respeitado, mas nunca interrompido
A chegada de espaços culturais nas comunidades alterou dinâmicas dos próprios territórios. A Galeria Sérgio Silva ocupa uma viela pouco usada em Monte Azul. “Era ponto de lixo, de drogadição. Agora é galeria”, conta Léu. Nas primeiras exposições, algumas lonas foram rasgadas e pichadas. “Fizemos mais cinco. Aí pararam. Hoje, os próprios moradores defendem. No ano passado, durante o período eleitoral do município, adesivos de políticos foram colados sobre as obras. “Achamos o cabo eleitoral, ele voltou lá e limpou tudo. Isso mostra que arte tem seu respeito”.
Na Favelarte, Moisés relata que artistas que começaram ali conseguiram espaço em outros eventos e venderam obras para colecionadores. “Tem criança que nunca pensou em arte como caminho. Agora pensa. Isso já vale”. As duas galerias têm foco em artistas periféricos. “A maioria dos que expõem na Favelarte é da zona leste”, diz Moisés. “Sou de lá também”. A curadoria mistura estilos, linguagens e trajetórias. “Tem artista que não dialoga com o outro, e isso é a cara da favela. Cada um de um jeito”.

No Sérgio Silva, a proposta é mostrar fotografia feita “sobre, para e pelas periferias”. “Não queremos ser bairristas. Queremos misturar saberes e visões”. Para Jamila, esses espaços criam “outras centralidades da produção artística” e abrem caminhos reais para que artistas da periferia entrem no mercado. “É uma maneira de inserção e também de criação de outros circuitos da arte”.
As ações nas duas comunidades incluem oficinas, eventos e trocas com a vizinhança. “A galeria é viva. Tem oficina de arte, história da arte, inglês. Queremos que o povo aprenda e se expresse”, diz Moisés. No Monte Azul, os moradores participam espontaneamente. “Quem passa pela viela e para pra ver, tá incluso”. A montagem também é feita com mão de obra local. “A lona foi desenhada por um artista da quebrada. Quem monta é um empreiteiro daqui. A parede foi cedida pelo dono da casa.” As iniciativas tornam todos os participantes agentes da arte e da cultura.
Sustentabilidade é desafio
Apesar dos avanços, manter os espaços abertos é difícil e o caminho para obtenção de recursos estruturais é longo. “Estamos arrecadando para colocar ar-condicionado”, conta Moisés. Léu acredita que o desafio começa pelo reconhecimento. “Fotografia é arte. Pode e deve ser vendida”. Mas o problema vai além do dinheiro. “A comunidade precisa entender que aquilo ali não é só comércio, é cultura. Que seu quintal é quem faz sua segurança”.
Em resposta ao Nonada Jornalismo, a Prefeitura de São Paulo afirmou que investe na cultura por meio de reformas e criação de novos espaços, como a Casa de Cultura Cidade Ademar (prevista para 2025) e a requalificação da Casa de Cultura da Brasilândia. Além disso, citou o Programa de Fomento à Cultura Periférica, que financia coletivos culturais com editais anuais e consultas públicas para aprimoramento. A nível federal, em 2024, o programa Rouanet nas Favelas contemplou 26 projetos culturais nos territórios periféricos de capitais no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Jamila reforça a importância de políticas públicas para garantir a continuidade desses espaços. “A maioria dos artistas periféricos trabalha com poucos recursos. É preciso simplificar os editais, oferecer oficinas e apoio técnico para captação de recursos”, pontua. “Esses espaços produzem novos olhares e deslocam o eixo dominante da arte. A favela não é só lugar de consumo cultural, é também de produção potente”.

Lucas Veloso
É jornalista audiovisual, documentarista e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como TV Cultura, UOL, Folha de S.Paulo e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.