Em Porto Alegre, corpos derreteram ao som de BaianaSystem

Fotos: Louise Soares/Nonada

A capital do Rio Grande do Sul ficou um pouco menos provinciana e mais cosmopolita depois da noite abafada da última quinta-feira 1 de março. Isso porque passou por aqui uma das bandas de maior expressão dos últimos tempos no país, trazendo ao mesmo tempo o calor resultante da energia catártica coletiva que geralmente ocorre quando eles tocam e o frescor da renovação no cenário musical brasileiro.

Fazia algum tempo que o BaianaSystem era esperado em Porto Alegre, e o encontro aconteceu, é claro, no bar Opinião. A banda trouxe todo o experimentalismo caracterizado pela mistura dançante entre a guitarra baiana, os sound systems jamaicanos e o irresistível vocal de Russo PassaPusso.

A banda é experiente, há vários anos compõe o mosaico riquíssimo que forma a cultura de rua lá pros lados abençoados de Salvador, mas estourou de verdade no país em 2016 com o Duas Cidades, álbum formado por algumas das principais músicas da carreira deles e que tem a participação inspirada de Daniel Ganjaman na produção e nos arranjos. A alquimia traz elementos como o rock, o samba reggae (que Russo frisou em vários momentos durante o show) e ritmos populares brasileiros, com letras pautadas por crônicas sobre a cultura de Salvador e discursos políticos, como a crítica à especulação imobiliária.

Foto: Louise Soares/Nonada

E se havia algum burburinho de que talvez não rolasse uma compreensão entre a banda e o público porto-alegrense, em comparação com a alegria explosiva que rola lá pra cima no país, o que se viu foi bem o contrário. O show do BaianaSystem, na pista ou na rua, é orgânico, vivo, pulsante, e essa organicidade só existe pela relação de simbiose que público e banda vão construindo ao longo do show. Quando sobe no palco ou no trio elétrico, o Baiana é o público e o público é o Baiana, e nessa quinta-feira a banda fez questão de mostrar esse cuidado especialmente com o pessoal da pista lotada, mas até mesmo com quem assistia lá do segundo andar (esta repórter inclusive chegou a subir as escadas do Opinião para ouvir metade de uma música, mas se permitiu abandonar o distanciamento pra voltar à loucura lá embaixo). Ver de cima proporciona uma visão panorâmica e meio nublada da situação toda, mas esse show só faz sentido mesmo quando estamos cercados de corpos suados e o mais próximo possível nas caixas de som.

É verdade, no entanto, que o início da noite foi de um certo estranhamento, talvez por aquela expectativa do primeiro encontro. Pouco mais de 23h30, depois de distribuir na pista algumas dezenas de máscaras, como sempre faz, a banda finalmente subiu no palco e começou puxando alguns dos maiores hits do Duas Cidades (“Lucro”, “Bala na Agulha” e “Dia da Caça”, com destaque para o refrão lindo das Ganhadeiras de Itapuã cantado em coro pela público). Russo seguiu o show apresentando modestamente a banda, citando o caráter experimental e avisando que iam mostrar para Porto Alegre um pouco do que fazem lá no navio pirata em Salvador.

Parecia tudo meio tímido, mas a relação foi esquentando à medida que a gente se conhecia, até que “Calamatraca” embalou o primeiro ápice do show e a gente chegou lá sorrindo, o Russo e nós – o corpo pulsante que é a grande massa formada pelas centenas de pessoas na pista explodindo de serotonina. Foi aí também que rolou a primeira das várias rodas punks da noite, um dos momentos mais aguardados nos shows deles. Olhos nos olhos, sintonia estabelecida, daí pra frente foi só amor.

Foto: Louise Soares/Nonada

As músicas seguintes adicionaram mais elementos de brasilidade à guitarra baiana, que dominou o início do show. Apresentando singles de fora do álbum como “Capim Guiné” (outro momento absurdo de catarse), “Alfazema” (parceria com o Nação Zumbi) e “Invisível”, o Baiana mostrou ao público um pouco de batuque e do axé da Bahia, ou, como o pessoal chama lá pra cima, pagodão. Tá certo que não é a primeira vez que vemos o rock se dar bem com ritmos genuinamente brasileiros, mas o BaianaSystem faz de um jeito que parece que o rock nasceu foi lá no Pelourinho.

E boa parte disso se deve a Russo PassaPusso, um frontman como há muito tempo não se via no Brasil – ou até mesmo no mundo, se a gente parar pra pensar bem. Além do pique e da voz que faz a gente querer pular mais duas horas seguidas, Russo é daqueles cantores que realmente buscam uma conexão como cada pessoa que tá ali, seja pelo constante contato visual, uma breve conversa com alguém em específico ou por inexplicavelmente conseguir dar sentido ao caos criativo que ocorre em cada show.

Foto: Louise Soares/Nonada

Muito se fala sobre o porquê de cada uma das apresentações do Baiana ser tão diferente uma da outra, mas a resposta pode estar justamente do processo coletivo de criação que acontece, uma espécie de copyleft sonoro e corporal. O show todo é planejado com esse sentido, a começar, por exemplo, pelas projeções audiovisuais (uma delas exibia as palavras “oxe axé exu”) e também pela iluminação, que é parte central da apresentação. A contra-luz permanece no show todo, de forma que os músicos fiquem envolvidos nas sombras e as luzes fiquem voltadas para o público, provocando uma experiência que faz com que os próprios músicos vejam cada pessoa na pista, enquanto, vendo as sombras no palco nos deixamos levar pelo som.

Corpos já em êxtase, foi a vez dos soundsystems da Bahia entrarem em evidência com o reggae e o dub, uma experiência bem marcante por lá (tem até festival com o tema) que a gente aqui no sul não conhece, mas que foi bem abraçada pelo público. Nessa potência, depois de músicas como “Jah Jah Revolta” e “Terapia”, “Playsom” fechou a noite talvez como o melhor momento entre todos, já deixando aquela saudade de quem descobriu um mundo totalmente novo numa nova relação.

Foto: Louise Soares/Nonada
Foto: Louise Soares/Nonada
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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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