Ronald Augusto (*) [1]
Marlírico é um livro de poesia, de poemas? À primeira vista, sim, já que, afinal de contas, todo o conjunto se encontra, ao menos nominalmente, dentro dos limites do gênero – e as informações da ficha catalográfica, inclusive, cumprem função afirmativa quanto a isso, pois ali se lê “poesia” –, mesmo assim, em que pese a mancha gráfica de cada página se revelar como um conjunto de versos, não seria nem um pouco descabido apresentar Marlírico como um experimento em prosa heterodoxa, já que o leitor se embrenhará em uma poesia bastante narrativa e confessional, espécie de jornal íntimo.
A noção de que não se pode mais simplesmente narrar está implicada em todos os poemas do livro de estreia de Marlon Pires Ramos. Em projeto corajoso e necessário, a poesia com andamento de prosa de Marlírico, cujos rolês do jovem negro (persona do poeta) em deambulação pela pequena Porto Alegre, evocados preguiçosamente, se dissipa num discurso sempre elidido e que leva o leitor-seguidor a uma situação indecidível no que diz respeito, por exemplo, a estabelecer nexos de causa e efeito.
Já basta o chefe idiota
– Vc não é negro. É pardo…
Já basta esse Moinhos de Vento inteiro
Parada é pesada. Bagulho tenso.
Mas há uma questão a ser enfrentada. Em algum grau, Marlírico cede à rotina acanhada da maioria dos poetas que às vezes hesitam por opção entre prosa e poema, isso acontece no momento em que Marlon Pires Ramos resolve reconhecer seu experimento ousado como algo da ordem da poesia. A única vantagem de tal decisão acaba por ser a ratificação de duas convenções num só golpe. A saber, que, de um lado, apenas à poesia seria facultado o direito de trair o signatum (o aspecto inteligível) em benefício do signans (a materialidade do texto); e, de outro, que não se poderia solapar à prosa o preceito épico da objetividade e de certo verismo, já que, de acordo com o senso comum canônico, a prosa daria conta da realidade melhor do que a poesia. É como se a partir de um mecanismo automático de “controle de competências”, alerta ao que seria próprio de cada gênero, qualquer experimento com a prosa que desbordasse, para mais ou para menos, de sua consagrada ordem unida, fosse conduzido sem chance de recurso para as bandas da poesia.
O escritor antilhano Édouard Glissant questiona esta disjunção simplista entre os gêneros, pois do seu ponto de vista podemos perceber o quão lucrativa e frutuosa foi tal separação em termos das literaturas ocidentais. Glissant vislumbra um espaço de maior mobilidade discursiva ao escritor; pare ele a prosa pode ser sonhadora e cair em uma espécie de tormenta, de torneio, de embriaguez, sem deixar de ser significante, isto é, sem deixar de ser, ainda que num jogo de simulação e de dissimulação, mais respeitosa no seu trato com a realidade. O que quero dizer com isso é que Marlírico não perderia em nada se fosse pensado ou assumido como um texto de prosa. Sirva de exemplo um romance como As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder, em que cada capítulo ou acontecimento da trama é um breve poema, entretanto o escritor relaciona sua obra aos prazeres da prosa.
Outro aspecto decisivo de Marlírico é o uso do registro da fala e da oralidade na fatura dos poemas que se desdobram também em uma estilização dos modos expressivos consagrados pelas redes sociais. A dimensão da língua “tal como é falada no dia a dia” pode ser interpretada de um modo crítico. Isto é, a tradição oral pode ser abordada em uma dimensão algo problemática ou complexa, tal como é considera, por exemplo, no ensaio “A traição da tradição oral” [1] do poeta Jônatas Conceição (1952-2009). Jônatas levanta a possibilidade de que a oralidade às vezes se constitui em um óbice no sentido em que em muitas circunstâncias a tradição oral tanto da cultura africana, quanto da diáspora são invocadas na qualidade de um ethos ou de uma ancestralidade a ser mantida a todo custo, segundo uma lógica de resistência/resiliência. O crédito dado sem mais à oralidade, à fala das ruas, como uma espécie de traço distintivo da expressividade negra, explica parcialmente a questão do texto escrito como a barreira ou o desafio às capacidades intelectuais do negro, trauma reativo aos estereótipos que ele tem de atender segundo a expectativa da sociedade.
Cêis tão me cobrando
Tem que fala o que escreve, mano
Tem que fala o que escreve, mano
Meu pai tá bebendo
E fumando
Marlon Pires Ramos parece ir além dessa possível tensão relativamente aos registros orais e escritos, de certa forma o poeta não vê nenhuma disjunção nisso, pelo contrário, o aparente conflito funciona como insumo estético à composição de seus poemas. A capacidade de produzir tanto formas de pensamento, como de discursos literários não pressupõe de maneira absoluta a tecnologia da escrita. De todo modo, em seu favor poderíamos lembrar que há mais de trinta anos se estuda o conceito de oralitura [2] que tem relação com o que acontece em Marlírico.
Margarete Nascimento do Santos escreve que “O conceito de oralitura é adotado pelos escritores antilhanos a partir da década de 80 e a justificativa para o uso de tal nomenclatura, segundo estes autores, está no fato de a literatura tradicional, devido à forma como é concebida, não oferecer espaço que abrigue de maneira satisfatória as questões ligadas à produção literária nas Antilhas.” A experiência do falante nas Antilhas é de diglossia, isto é, duas línguas coexistem nessa cultura: o francês como herança colonial, língua majoritária, e o crioulo, língua minoritária derivada da interação forçada com o colonizador, mas que acaba por se converter em símbolo de resistência cultural e política de intelectuais antilhanos a ponto de criar as condições para o reconhecimento de uma crioulidade enquanto perspectiva identitária. É possível afirmar que projeto análogo motivaria o empreendimento criativo de Marlírico, ainda mais se tomarmos como pano de fundo a disjunção entre periferia (capital simbólico negro) e centro (capital simbólico branco) na distribuição/apropriação dos territórios urbanos.
Tô me sentindo queimado o sol tá dentro do bus
Dizem que praga é escorpião marrom em Porto Alegre
Digo que praga é o cara do Padre Cacique
Veneno fudido
Criações verbais aquém ou além da dimensão meramente escrita, em muitos casos e segundo alguns modelos literários, são consideradas, graças a uma estratégia de rebaixamento, como “curiosidades” ou coisas ligadas à cultura popular e periférica.
A este propósito, os estudos de Paul Zumthor ultrapassam a dicotomia entre palavra oral e escrita. O “poeta da linguística”, como às vezes é chamado, se interessou menos pela própria língua do que por seu suporte vocal. Zumthor considera esse suporte como realizador da linguagem, “como fato físico-psíquico próprio, ultrapassando a função linguística”. Suas pesquisas sobre as formas não informativas da palavra e da ação vocal, intimamente relacionadas à performance corporal, rompem o “círculo vicioso dos pontos de vista etnocêntricos, e, no caso da poesia, grafocêntricos”. O linguista empreendeu uma verdadeira tarefa de desalienação crítica na perspectiva de eliminar o que ele entendia como o “preconceito literário” com relação a outras modalidades de vozes poéticas. O jornal íntimo de Marlírico ganha outra dimensão quando lido através dessa chave.
daí dunada apareceu uma fada
sério irmão
um bagulho de outro mundo
real
apareceu aquela fada batendo asinha
saltitante
voando na nossa direção
Marlírico avança sobre ambos os espaços simbólicos, o periférico e o central da provinciana Porto Alegre. Marlon Pires Ramos é um poeta de província. Muitos outros criadores se aparentam por essa qualidade que não é sempre evidente ou que se manifesta em graus diversos em um e outro. Dyonélio Machado, Cesário Verde, James Joyce e Kafka, são artistas provincianos. A deambulação, o lirismo, a linguagem, o pesadelo, enfim, os transes e as transposições poéticas desses escritores têm como substrato a carta geográfica de suas cidades.
É essencial revisar as acepções depreciativas e convencionais vinculadas ao qualificativo provinciano. No caso dos criadores citados e, em particular, no caso de Marlírico, o provincianismo que não tem relação com uma suposta limitação em contraste com a aparente complexidade do cosmopolitismo invocado como uma espécie de distinção. O provinciano na obra de cada um desses escritores é um vetor estético-ético derivado menos de uma fatalidade do que de uma escolha.
Contudo, a partir de agora tudo depende do leitor e sua jornada tanto através do que parece ser uma cidade determinada quanto através de uma linguagem em mutação, tópicos que formam o presente percurso poético de Marlon Pires Ramos, um jovem poeta rente ao seu tempo e à vizinhança de territórios mutuamente intransigentes.
(*) Ronald Augusto é poeta, ensaísta e professor de filosofia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016).
Notas
[1] ALVES, Miriam; CUTI; XAVIER, Arnaldo (Org.). Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987. p. 101.
[2] Ver em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/babel/article/view/97/164