A explicação no lugar da voz

Ronald Augusto*

A motivação para esse texto nasce de uma postagem do poeta Heitor Ferraz em sua página do Facebook a propósito de reportagem publicada no G1 sobre o Prêmio UBC 2019, conferido ao compositor Milton Nascimento. Mauro Ferreira, blogueiro do portal, assina a matéria em que defende a posição segundo a qual a arte de Milton Nascimento “é tão grande que nem cabe explicação”. Na opinião do jornalista, durante o evento de premiação, nenhum amigo ou parceiro de Milton deu conta de explicar a grandeza divina dessa obra “vinda ninguém sabe de onde”.

De outra parte, Heitor Ferraz questiona – e com razão, pois tudo na reportagem soa irritantemente laudatório – a visão sacralizadora e demasiadamente reificada sobre a arte de Milton Nascimento. O poeta salta para o campo oposto e argumenta que tal concepção acomoda “a cultura negra no campo dos milagres”. Para Ferraz, Milton “tem a voz da escravidão brasileira, voz que vem das senzalas”. A arte do compositor de Milagre dos peixes (1973) radicaria em uma circunstância determinada.

Diante desse quadro controverso, onde duas possibilidades de explicação se apresentam em conflito – uma delas faz da suspensão da explicação a própria explicação –, senti a necessidade de dizer algumas coisas e pôr em questão outras.

Afirmar que a arte (canto e composições) de Milton Nascimento é inexplicável, sem lastro social e histórico, que seria produto de um milagre antinaturalista, acaba por reforçar uma interpretação da qual se extrai que as capacidades das pessoas negras não teriam relação com o aspecto volitivo ou que tais capacidades talvez não pudessem ser desenvolvidas nem se configurar como conquistas, construções, enfim, como resultado de algum empenho autodeterminado. A criatividade de Milton só se explicaria, portanto, pelo insondável, por algo que apelasse ao misterioso. Em outras palavras, tal como procuram demonstrar algumas narrativas a propósito da trajetória vivencial e criativa de mestres do blues, Milton seria uma espécie de pactário. Seu canto sem rival resultaria de um contrato com o diabo no âmbito da encruzilhada. Isto é, o extraordinário serviria de porta de acesso à compreensão de sua arte.

Por outro lado, explicar sua voz apenas pela chave da ancestralidade negra e, além disso, circunscrevendo essa ancestralidade ao desvio da escravidão no Brasil (perversa narrativa de origem imposta em termos ontológicos às diásporas africanas), também me parece uma forma de redução, de confinamento, que, de resto, evoca um vago preconceito. A suspensão de qualquer tentativa de explicação, de um lado, e, de outro lado, a explicação aparentemente cumpridora (eu poderia dizer “lacradora”, mas não indica que seja o caso), feita no calor da hora, se encontram no terreno estéril do cancelamento do debate. Ambos os movimentos não dão conta de experimentar algo propriamente não convencional acerca da coisa. De todo modo, não pretendo aqui explicar o canto de Milton Nascimento propondo uma terceira via conciliadora, mas apenas avançar algumas indagações e um par de pensamentos.

A voz de Milton é a voz do povo negro marcado por violências e bênçãos? Subjaz à questão o problema da interpretação que representa “esse povo” como uma unidade e, ainda, o entendimento ligeiro de que alguns criadores e seu povo formam um contínuo como que indistinto. Milton Nascimento e o povo de que é filho significariam um único ciclo de ação e pensamento; não se perceberia a menor descontinuidade entre um e outro.

O drama do artista como “antena da raça”, de acordo com o sonho de Ezra Pound, volta a ser encenado. Romanticamente o compositor carioca-mineiro toma o posto de Castro Alves. Milton, refém de um enredo histórico, falaria do mesmo modo para e por todos os negros. Falaria? Muitos não negros consideram que pessoas negras são afetadas pelo racismo sempre da mesma maneira, um tipo de conhecimento por atacado: ou fomos/somos deprimidos em nosso fervor por liberdade e humanidade ou experimentamos, em reação, uma espécie de transe purgativo graças à nossa musicalidade brutalista e ancestral por meio da qual resistimos desde o início.

Dúvidas que me ocorrem. A dor e a alegria do “povo negro” seriam invariavelmente emanações da escravidão no Brasil do período colonial? É como se seu sofrimento e a desejada superação fossem meros sucedâneos da escravidão, sintomas enclausurados aquém e além de outras chances e predicações relativas à condição humana. Aqui e ali persiste a solidariedade tributária de concepções ready-mades sobre as quais se equilibra a curiosidade quanto à “vida dos negros” – seja nas senzalas, seja nas periferias –, o fetichismo a respeito de como acontece esse “ser negro” que sucumbe, por assim dizer, ao quantificador “o povo negro”. Cada sujeito negro (cada corpo negro?) estaria fadado a exprimir (exteriorizar) apenas isto e mais nada: uma abissal alma negra, porém como decalque do raciocínio essencialista e de base racial (raciocínio apreciado por muitos brancos e negros); uma interioridade tão desconhecida quanto exaustivamente parafraseada por devotados analistas.

Algumas dessas perguntas e considerações objetivam, na verdade, trazer à tona o sempre negligenciado problema do branco. Porque, ao que parece, “o problema do negro”, há tempos, já é consabido de maneira cabal.

*Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). 

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