Estado do RS impõe necropolítica à quadra da Bambas da Orgia

Laura Galli e Thaís Seganfredo
Foto: Louise Soares/Nonada

Desde a noite desta sexta-feira (17), a comunidade carnavalesca porto-alegrense está apreensiva com a possibilidade de reintegração de posse da quadra da escola de samba Bambas da Orgia, que seria destinada a ações relacionadas à Covid-19. O local foi cedido pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul para a agremiação há mais de 25 anos e já é consolidado como o território cultural da escola, a mais antiga em atividade em Porto Alegre e atual campeã do carnaval. A ação judicial de reintegração foi confirmada em nota oficial da Secretaria Estadual de Cultura (Sedac-RS) neste sábado.

A informação, porém, é ainda mais indigesta do que “apenas” a reintegração: corre nas redes sociais, entre pessoas ligadas à escola, que a Secretaria de Segurança Pública do RS teria o objetivo de destinar o espaço para um necrotério, que abrigaria os corpos das pessoas que possam vir a falecer em função do novo coronavírus nas próximas semanas. A Bambas da Orgia recebeu por telefone a notícia de que a Secretaria de Segurança Pública do RS já teria desistido da reintegração de posse, mas a Secretaria ainda não se manifestou oficialmente. Já a nota da Sedac diz que não se sabe a destinação do espaço, mas que ele não será usado para um necrotério.

Além de não oferecer espaços alternativos para a Bambas ocupar, caso seja implementada a ação, o Estado estaria desconsiderando os 80 anos de história da escola e a relação de 25 anos entre a comunidade e seu território cultural. Mesmo que que o destino da quadra não seja um necrotério, qualquer decisão sem o aval da escola é um ato de desrespeito.  Pelas redes sociais, artistas classificaram como racismo estrutural a intenção do governo. 

O filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica para definir os modelos de governança baseados na figura do inimigo, aplicada na negação da humanidade do outro. Tal modo de gestão tem a violência como força motriz e está relacionada diretamente ao capitalismo, ao racismo e a xenofobia, diz Mbembe. No Brasil, a morte como política tem como expressões explícitas o genocídio da juventude negra nas favelas e a violência constante contra comunidades tradicionais, por exemplo.

Doutor em Bioética e professor da UnB, Wanderson Flor do Nascimento, em artigo para a revista Cult, propõe o conceito de Ikupolítica como movimento de resistência fundamentado na cultura negra brasileira, originária dos povos de terreiro e religiões de matriz africana que, por sua vez, são a origem do Carnaval no país. Para Wanderson, “a morte, no contexto necropolítico, é sempre rodeada de violência ou crueldade. Para os terreiros, o problema não é morrer pelo toque de iku (a morte, em iorubá), mas ser morto por elementos violentos que nos retirem da comunidade, em vez de nos manter nela”.

Segundo apuramos, o governo afirmou que poderia “devolver” o espaço à escola após a pandemia, desconsiderando que, de acordo com as religiões de matriz africana, que estão na raiz das escolas de samba, utilizar o espaço para depositar corpos impossibilitaria o retorno da escola ao local.  A proposta do governo do Estado de transfiguração de uma quadra de escola de samba em um necrotério é um ato explícito e vil da aplicação da necropolítica na vidas negras e de periferia. É um ato de violência que, além de desrespeitar a “ikufilosofia” dos povos de terreiro, para os quais, segundo Wanderson, iku é “parte da vida da comunidade”, “não é problema nem encarado como evento punitivo”, também agride a cultura popular, com a tentativa de ressignificar um espaço de vida e de alegria para a comunidade em um terreno de morte. É, portanto, a necropolítica aplicada à vida cultural da comunidade.

Em nota publicada à noite no Facebook, a direção da Bambas da Orgia informou que “continuam em tratativas com o Estado, em relação a utilização da Quadra por parte da Secretaria de Segurança Pública, devido ao Covid 19. Ainda não temos definição oficial. Provavelmente deverão estar finalizadas e formalizadas em documento, até a próxima semana. Assim que estiver pronto será levado a apreciação dos Poderes da Escola e respondido ao Governo. Sobre as alternativas que o Estado está oferecendo de locais para nos alocar, também não se esgotaram e nem há decisão”.

A reportagem entrou em contato com integrantes do Conselho Estadual de Cultura, que informaram que a Sedac deve pedir oficialmente a desistência de uso da quadra como necrotério. A Secretaria de Cultura afirmou em nota que “não há definição sobre a destinação que será dada após a retomada, mas é possível assegurar que o local não será utilizado para os serviços do Departamento Médico-Legal relacionados à pandemia”. 

De qualquer forma, o Governo do Estado apenas negou a intenção de transformar a escola em necrotério, sem oferecer alternativas de espaços para Bambas da Orgia ocupar (desconsiderando a importância do Carnaval para tantas pessoas) e sem informar qual o destino que será dado ao espaço que há tanto tempo significa vida, alegria, música e comunidade para milhares de porto-alegrenses. 

Compartilhe
Ler mais sobre
cultura negra
Ler mais sobre
Processos artísticos Reportagem

Corpo tem sotaque: como mestra Iara Deodoro abriu caminhos para a dança afro-gaúcha