Tambores do Sul: da comunicação ancestral à música popular

Thaís Seganfredo
Foto: Joel Vargas/PMPA

Um grande tambor de dois metros de altura parece avivar a praça Brigadeiro Sampaio (antigamente conhecida como Largo da Forca), no centro histórico de Porto Alegre, próximo à orla do Guaíba. A escultura foi criada por um grupo de artistas negros: Pelópidas Thebano, Gutê, Marco Antônio dos Santos, Adriana Xaplin e Leandro Machado desenvolveram a obra na cor amarela, que remete a Oxum, orixá das águas doces. As imagens gravadas ao redor da escultura trazem representações da cultura e da ancestralidade negra, de forma a relembrar a cidade sobre a contribuição negra para o estado e para o país. Nesse sentido, não foi por acaso que o tambor foi o símbolo escolhido para essa obra de arte.

Se hoje o tambor brasileiro é bastante difundido na música popular, suas origens no Brasil remontam aos tambores ancestrais indígenas e especialmente africanos.  Quando os povos da África foram forçados à diáspora e escravizados pelos portugueses no século XVIII, trouxeram na memória uma gama de fundamentos e elementos culturais que acabaram compondo o mosaico de expressões que formam a cultura brasileira hoje.

A percussão, essencialmente ligada à religião, faz parte deste complexo e acabou originando diferentes instrumentos musicais e tambores das mais variadas características, de acordo com as diferentes religiões de matriz africana presentes no país. O tambor é, portanto, um objeto de “comunicação ancestral”, como destacou a musicista Nina Fola em artigo homônimo, publicado em parceria com Olavo Ramalho Marques.

Sopapo, o atabaque-rei

Obra de Wendroth,1857, com a representação de um sopapo

No Rio Grande do Sul, além da presença marcante de alguns tambores brasileiros como o ilu e o batá, existe também o sopapo, um tambor reconhecidamente afro-gaúcho, criado no estado, de grandes dimensões e um grave imponente. Em entrevista a esta repórter para uma matéria publicada no Jornal do Comércio, o doutor em Música pela Ufrgs Mario de Souza explicou que o tambor era tocado nas charqueadas na região de Pelotas, integrando o ritual religioso dos escravizados antes da matança do gado.“O sopapo atuou também em outras situações festivas, como casamentos e outras celebrações, inclusive em momentos os quais foram reconhecidos posteriormente como ‘sincretismo’, ou seja, em celebrações festivas relativas a santos católicos”, contou Mario, autor da tese “O Sopapo e o Cabobu: etnografia de uma prática percussiva no extremo sul do Brasil”.

Indícios da presença deste grande tambor no estado são a aquarela de 1857 do artista alemão Wendroth, na qual o sopapo aparece sendo tocado por escravizados sul-riograndenses, e o relato do viajante suíço-alemão Carl Seidler, publicado na obra “Dez anos no Brasil”, no qual descreve a Festa de Reis em Pelotas em 1834: “Dois homens fortes carregavam um grosso pedaço de tronco oco, revestido de couro, no qual logo um deles entrou a bater com os pés como num tambor.”

No século XX, o sopapo passou a ser bastante utilizado no Carnaval, principalmente no município de Pelotas, até um momento em que se tornou menos frequente nas escolas de samba e acabou, de certa forma, esquecido. Tudo mudou no início dos anos 2000, quando Giba Giba, percussionista e mestre griô pelotense, percebeu que o sopapo estava se tornando menos presente nas manifestações culturais populares e passou ele mesmo, junto a outros griôs como o mestre Batista, a fazer a salvaguarda deste instrumento.

No mesmo ano, Giba Giba idealizou o Cabobu, festival de cultura que ocorreu em Pelotas, reunindo grandes percussionistas brasileiros em prol da valorização do sopapo. Ele já trabalhava com o instrumento desde o momento em que chegou em Porto Alegre, nos anos 1960 e 1970, quando introduziu o tambor gaúcho em suas músicas e apresentações. O percussionista e compositor inclusive venceu o prêmio Açorianos de Melhor Álbum, em 1993, com o disco Outro Um, no qual o sopapo é o grande protagonista.

A compositora e percussionista Nina Fola tem se dedicado a valorizar o sopapo e o ilu em seu fazer artístico (Foto: arquivo pessoal)

Desde então, o sopapo é sempre lembrado por músicos gaúchos como Kako Xavier, Richard Serraria e Nina Fola. “Eu cresci, convivi com o Giba Giba e eu também sou uma pessoa criada em roda de samba e de batuque. Então o sopapo e o ilu sempre fizeram parte da minha vida. Quando eu volto e me encontro percussionista formada, me encontro com esses tambores. Volto para meu terreiro e começo a pensar muito mais nessa percussão afrogaúcha e a importância, o peso que tem”, relembra Nina Fola, contando sobre o período em que foi estudar na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, e passou a refletir sobre sua vivência e a cultura popular do RS.

A percussionista destaca que toda essa trajetória foi construída com os colegas do grupo Afroentes, que teve início antes dos anos 2000, com uma pausa de 2003 a 2015. Há cinco anos, o grupo retomou sua travessia na música, cada vez mais com a inclusão do sopapo e de outras manifestações afro-gaúchas nas composições. “Afroentes é isso, o nome evoca essa herança ancestral. Nós herdamos o sopapo e herdamos os ilus, que estão aí em todos os terreiros sendo tocados por homens e mulheres”, diz Nina.

Os sons do batuque

É nos terreiros de batuque que o som dos ilus ecoa. Tradição de matriz africana típica do Rio Grande do Sul, o batuque é formado por uma gama de elementos culturais, filosóficos e religiosos que foram sendo construídos pela população negra do estado a partir principalmente da cultura iorubá. Como explica o Babalorixá Phil de Xangô Agandjú Ibeji , fundador do grupo Batuque RS, “ o batuque é hoje o mantenedor dessa tradição milenar, ancestral, dos povos iorubá e fon, que foram trazidos como homens e mulheres sequestrados, escravizados. Quando falamos de batuque do RS, estamos falando de uma tradição que é única, com características próprias”.

Entre essas características, que diferenciam o batuque de outras tradições de matriz africana do Brasil, como o candomblé, também está o conjunto de tambores utilizados.  Pouco reconhecida oficialmente como patrimônio cultural do estado, a tradição tem presença marcante no território gaúcho, diz o Babá Phil. “Hoje pelo menos 50% dos municípios do Rio Grande do Sul tem pelo menos uma casa de batuque, e nesses municípios há a presença do tambor”, afirma.

Tambores do batuque (Crédito Talita Morais/UPF)

Três tambores compõem o batuque gaúcho: o ilu está presente em todas as tradições do batuque e também em outras tradições afro-brasileiras do país, como a nação Nagô, em Pernambuco. Já o batá, tambor menor, é mais usado na tradição Jeje. Já as tradições Ijexá e Oyó  também incluem o ayan, de formato cônico. Cada tradição tem seus próprios rituais, mas a relação do tamboreiro com o tambor é sempre espiritual.

Nesta relação para com o sagrado, de comunicação com os orixás, que acaba também reverberando para a cultura brasileira no trabalho de músicos e percussionistas, um dos elementos que diferenciam o batuque de outras culturas do país é a presença de mulheres tamboreiras e, consequentemente, a adoção dos tambores por mulheres percussionistas. “Agradeço muito que esses tambores ancestrais tenham projetado meu trabalho como cantora e percussionista, entendendo que a ideia sempre é de visibilizar a contribuição negra no Rio Grande do Sul, porque o esforço que o estado tem de se manter branco é muito forte. Tenho conversado com nossas entidades, para que a gente possa fazer isso de uma forma bonita”, destaca Nina Fola.

Toda essa cultura resiste, a cada geração, ao silenciamento e o apagamento provocados pelo racismo. Para o Babá Phil, é preciso que os povos de terreiro do RS estejam atentos à discriminação cultural crescente no Brasil e no estado. “Conseguimos ver esse racismo quando os terreiros são apedrejados, invadidos, ou de forma velada, através de projetos de lei”, alerta.

Tradição litorânea

Tamboreiro do Maçambique de Osório (Foto Francisco Cadaval/projeto Gema)

No litoral do estado, mais especificamente no município de Osório, os tambores afro-gaúchos se fazem mais presentes no Maçambique de Osório, manifestação que é também patrimônio cultural (ainda não oficial) do estado e do país.  A tradição, repassada de geração a geração a partir dos primeiros negros escravizados no RS, é um tipo de congada brasileira, ligada às celebrações católicas da Festa de Nossa Senhora do Rosário.

Os festejos são formados por uma série de elementos, como a percussão (que, neste caso, é composta por diversos tambores), além de cantos e danças. A memória dos santos negros, dos maçambiqueiros anteriores e, principalmente, da Rainha Nzinga Mbandi, estão no cerne ancestral dessa manifestação cultural.

Segundo o antropólogo Iosvaldyr Bittencourt, em sua tese de doutorado “Maçambique de Osório – Entre a devoção e o espetáculo: não se cala na batida do tambor e da Maçaquaia”,“o Maçambique mostra a força que a cultura negra possui no Estado sulino, contribuindo para a consolidação afirmativa da identidade da população de afro-descendentes gaúchos. O Maçambique é uma das mais importantes congadas do país, destacando-se por sua singularidade e resistência religiosa, cultural e política.”

As manifestações começam no primeiro domingo do mês de outubro e ocorrem por 4 dias consecutivos, ao longo dos quais os maçambiqueiros realizam diversos ritos de fé, desde missas, cortejos pelo município, pagamento de promessas, bem como a coroação dos reis (Rei de Congo e Rainha Ginga). Divididos entre as danças, os cantos e os instrumentos de percussão, os maçambiqueiros aprendem com seus pais, mães e avós a continuar a tradição de devoção, que se renovam a cada mês de outubro, durante as celebrações que acabam atraindo também a população do município.

Conforme Iosvaldyr, não se trata de um espetáculo para que a sociedade e o poder público assistam, muitas vezes fascinados pelo “exotismo”: trata-se de uma manifestação cultural tradicional de um grupo afro-gaúcho. “Em geral, as devoções, as crenças e os saberes populares são vistos e considerados como superstições e ignorâncias manifestadas pelas populações mais oprimidas e empobrecidas de um País”, alerta em sua tese. Nas palavras de Manoel Chico, 82 anos, ex-dançante de Maçambique, em relato ao pesquisador, “o Maçambique é uma dança que foi trazida pelos escravos da África”. É portanto, patrimônio da cultura brasileira.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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