Ester Caetano
Foto: UFPel/reprodução
Embora o agronegócio do Rio Grande do Sul continue decolando mesmo durante a pandemia de covid-19, nas comunidades de agricultores familiares, especialmente as quilombolas, a situação é bem diferente. No Quilombo Vó Elvira, a cerca de 25 quilômetros do centro de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul, a venda de legumes e verduras, principal fonte de renda das cerca de 30 famílias da comunidade foi interrompida logo no início da pandemia. Como precaução, também foi preciso paralisar os trabalhos voluntários e de associações logo no início da quarentena.
Sem poder sair para vender a produção agrícola, a comunidade precisou recorrer às suas tradições culturais e religiosas, à auto-organização e à solidariedade bilateral para suportar a crise e, sobretudo, o racismo estrutural. Mesmo com pouco acesso às redes de telefone e internet em seus territórios, todas as comunidades quilombolas pelotenses receberam o recurso da Lei Aldir Blanc, que foi emergencial, mas não o suficiente para manter as famílias com a extensão da pandemia.
Para o líder comunitário Eder Ribeiro, muitos são os desafios que seu quilombo precisa enfrentar durante a pandemia, mas a questão alimentar é a que mais prejudica os moradores. Eles precisaram realocar recursos da área da saúde que recebiam do Estado para não faltar alimentação para os habitantes. Segundo Ribeiro, no entanto, essa insegurança alimentar não é de hoje. “Com os desmontes desses governos, do Temer ao Bolsonaro, já vinha uma falta de recursos para comprar alimentos , e com a pandemia isso se agravou. Então a gente começou a buscar cesta básica de diferentes lugares, diferentes organizações”, relata.
Outro problema apontado pelo líder quilombola é a dificuldade de acesso aos estudos. Com as escolas fechadas e a implementação do ensino remoto, muitos jovens foram prejudicados por não ter acesso a uma boa internet ou devido à falta de equipamentos. Segundo o quilombola, mesmo entre as famílias com acesso à internet, os pais não dão conta de ensinar seus filhos, já que a maioria deles não tem o ensino primário.
Localizada na zona rural de Pelotas, a Comunidade Quilombola Alto do Caixão reúne cerca de 70 famílias. Todas tiram sustento da agricultura, produção que é quase totalmente destinada ao consumo doméstico. Ainda assim, a vida das famílias mudou com a pandemia, uma vez que a produção própria não é suficiente para sustentar todos. Charles Dias da Silva, líder quilombola, relata que antes da onda de covid-19, os quilombolas do Alto do Caixão tinham uma vida normal, com contato um com os outros de visitas e trocas de conhecimentos. O trabalho foi o mais afetado neste período. “Antes, o pessoal trabalhava como peão em algum lugar, safra do fumo, na safra do pêssego. Com a pandemia, o pessoal começou a não contratar mais. Consequentemente, o pessoal não conseguiu ter a comida em sua na mesa”, descreve Charles.
Sem trabalho, a comunidade teve que recorrer ao assistencialismo e criou, por iniciativa própria, um plano de prevenção junto a associações para implementar medidas de proteção e cuidados básicos. As principais urgências são o fornecimento de cestas básicas que já tem sido realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). “Todos os membros do quilombo recebem a comida que vem nas cestas e dá para todos, mas só está dando porque está vindo estas da CONAB, pois senão estaríamos sem comida no quilombo”, lamenta.
Falta de titulação impede acesso a direitos
De acordo com o relatório Revelando os Quilombos no Sul, do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA). Pelotas abriga atualmente seis comunidades quilombolas: Algodão, Vó Elvira, Alto do Caixão, Santa Maria, Pelotinha e Cascata – estas últimas três ainda sem reconhecimento da Fundação Cultural Palmares. Entre as reconhecidas, todas recebem assessoramento da Emater/RS juntamente com o Comitê Gestor Quilombola de Pelotas, que disponibiliza às famílias não apenas cestas como também álcool gel e máscaras faciais. Em todo o estado, são pelo menos 136 comunidades quilombolas, a grande maioria localizada na região sul do estado.
Em comum entre os quilombos de Pelotas e região, está a ausência de titulação da propriedade definitiva das terras. Em Pelotas, de acordo com a Professora Rosane Rubert, responsável pelo projeto de extensão Etnodesenvolvimento e Direitos Culturais em Comunidades Quilombolas e Indígenas, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), não existe no município nenhuma comunidade titulada, embora algumas tenham recebido a certidão de comunidade quilombola da Fundação Palmares.
Um problema decorrente da falta de demarcação é a condição pouco favorável dos territórios ocupados. “A maioria das famílias não possuem terra e, quando possuem, são áreas não propícias para a agricultura”, conta o sociólogo e extensionista da Emater-Pelotas Robson Becker. O relatório do CAPA aponta outra questão compartilhada entre as famílias: “ao analisar as condições atuais de sobrevivência, percebe-se que a única possibilidade de trabalho é na lavoura dos vizinhos – ou viver como agregados em terras que não são suas”, diz o estudo.
Com a falta das titulações, as comunidades padecem também de serviços essenciais, como o fornecimento de água, rede de telefonia e internet. Sem ações integradas de contenção do coronavírus promovidos pelo Estado, os próprios povos quilombolas constroem dentro de suas comunidades ações de prevenção, encontrando alternativas de comunicação e construindo de forma autônoma uma articulação para realizarem seu próprio monitoramento. Desse modo, conseguem identificar quais famílias precisam de alimentação e recursos para seu sustento. “As cestas da prefeitura, via assistência social, são distribuídas pelas próprias lideranças, que avaliam as famílias mais necessitadas. Da mesma forma, acontece quando recebem doações de instituições religiosas ou da sociedade civil”, complementa Becker.
Falta de atenção básica na saúde ainda preocupa moradores
Faltam dados oficiais para medir os impactos da pandemia de covid-19 entre as comunidades quilombolas. Nem a Fundação Cultural Palmares nem o Incra, responsáveis pelas demarcações de terras quilombolas, realizam um mapeamento sobre a situação dos quilombolas na pandemia, seja na questão da saúde, da economia ou da insegurança alimentar que assola muitos grupos tradicionais. Atualmente a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) juntamente com o Instituto Socioambiental (ISA), atualizam constantemente uma plataforma online, Quilombo Sem Covid-19. O observatório mostra que, até a última quarta- feira (23), 5.431 quilombolas foram infectados e 279 morreram em decorrência da covid-19.
O ISA informa ainda uma alta subnotificação da transmissão da doença em territórios quilombolas, sob a justificativa de que muitas secretarias municipais não informam ao Ministério da Saúde as contaminações e óbitos de integrantes das comunidades quilombolas. Desta forma, não há como dimensionar o que significam esses números em relação ao conjunto de quilombos.
Publicado em janeiro de 2021, o estudo Impacto da covid-19 sobre as comunidades quilombolas designa à ausência de Estado a situação precária dos quilombos: “a ‘inação’ do Governo Federal se comprova, inclusive, por meio do apagamento da Fundação Cultural Palmares como órgão competente e relevante na proteção e atuação das causas quilombolas. Apesar de uma cartilha publicada pela instituição e da distribuição de algumas cestas básicas, esta seguiu cancelando comemorações relacionadas ao Dia da Consciência Negra, virtuais e
presenciais, e suprimindo artistas de sua lista de personalidades notáveis negras. Enquanto isso, os índices de contaminação e óbitos permaneceram crescentes, sem efetivas políticas públicas adequadas às comunidades que seguem, inclusive, com desigualdades de renda”. A pesquisa foi realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
A saúde da comunidade Vó Elvira vem sendo impactada com a falta de médicos, já que existe uma mínima cobertura da Saúde Quilombola, denuncia Ribeiro, explicando que muitas pessoas precisam de um acompanhamento regular, pois apresentam doenças crônicas que os colocam no grupo de risco para covid-19. Os postos de saúde constantemente contam com enfermeiras e assistentes sociais, e esporadicamente com a presença de médicos. “Tem um déficit de médicos, mas acredito que esteja assim no geral em função da covid-19. O pessoal que vem trabalhar, trabalha pouco. A saúde continua assim, não está muito boa”, diz Ribeiro. Com relação à prevenção à covid-19, todos os quilombolas de Pelotas foram vacinados e agora estão esperando a segunda dose.
O que diz a prefeitura
Por email, a prefeitura de Pelotas enviou a seguinte nota:
“O secretário de Assistência Social, José Olavo Passos, informou que as comunidades quilombolas de Pelotas continuaram recebendo cestas básicas durante a pandemia, através de um trabalho periódico feito pela Prefeitura em parceria com a Emater, que já ocorria antes mesmo da crise sanitária. Os alimentos são entregues conforme a disponibilidade da Secretaria e, também, de acordo com a demanda que a comunidade tem, variando pelo número de famílias cadastradas. Além disso, Passos também explica que o Município realiza mutirões nessas localidades, para distribuição de gêneros alimentícios e cadastro daqueles que ainda não são atendidos. Nessas ações, os assistentes sociais avaliam a situação das comunidades e encaminham os pedidos daquilo que é necessário no momento.
As famílias quilombolas também têm recebido cestas básicas através da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em 2020, em acordo com as comunidades, o Município fez a compra de cestas básicas durante três meses para atender esses grupos, fazendo uso do saldo referente à Estratégia de Saúde da Família – Quilombola (ESF-Quilombola). Neste momento, estão sendo realizadas novas reuniões para construção do plano de aplicação da verba.
A falta de médicos é uma dificuldade enfrentada por toda a rede municipal de saúde. A diretora de Atenção Primária da Secretaria Municipal de Saúde, Mariane Laroque, explica que na zona rural, por exemplo, a Prefeitura reorganizou as equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS) para que haja um atendimento mínimo. No caso do quilombo Vó Elvira, especificamente no mês de junho, a médica que dá assistência à localidade está em férias. Mesmo nesse período de férias a comunidade não ficou desassistida, indo um profissional ofertar atendimento à saúde periodicamente”.]
Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.