Rafael Costa
Fotos: Liege Ferreira/divulgação
A musicalidade sempre esteve presente na vida de Diih Neques. É possível arriscar que tenha sido por influência do pai músico. O que não deixaria de ser uma verdade, mas Diih prefere versar que a harmonia musical vem além da figura paterna. Nascido e criado dentro do terreiro, ele teve o som do tambor como companhia durante toda a sua carreira. E com o álbum Alùjá, seu mais recente trabalho, não foi diferente. De uma parceria com o Projeto Gema, Diih Neques, que além de música é tamboreiro, traz as rezas aos orixás do batuque gaúcho no caprichado estilo do tambor.
Nesta reportagem, contamos que o batuque é uma tradição de matriz africana presente no Rio Grande do Sul, formada por uma gama de elementos culturais, filosóficos e religiosos que foram sendo construídos pela população negra do estado a partir principalmente da cultura iorubá. Segundo o Babalorixá Phil de Xangô Agandjú Ibeji, “o batuque é hoje o mantenedor dessa tradição milenar, ancestral, dos povos iorubá e fon, que foram trazidos como homens e mulheres sequestrados, escravizados. Quando falamos de batuque do RS, estamos falando de uma tradição que é única, com características próprias”.
Perguntamos a Diih Neques sobre como as variações da religiosidade afro podem cultivar uma relação semelhante ao que ele traz do batuque com o álbum. “O batuque é o culto ao Orixá dentro do Rio Grande do Sul. Lá pra cima é o Candomblé, e o Orixá é cultuado de maneira diferente.” Ele lembra que essa harmonia musical com a religião de matriz africana sempre existiu no Brasil, destacando lugares como Rio de Janeiro e Bahia. “A musicalidade do candomblé, por exemplo, está presente na música popular brasileira e até na cultura mesmo. O maracatu vem de dentro do terreiro. E a proposta do Alùjá é essa. É trazer essa religiosidade pra dentro da cultura negra dentro do Rio Grande do Sul.”
O percussionista explica que o álbum “foi a ideia de trabalhar a educação musical com um olhar fora do eurocentrismo”, destacando a musicalidade afro sendo muito presente no Rio Grande do Sul, oriunda de dentro dos terreiros. O Alùjá parte, inicialmente, do objetivo de preencher vários espaços culturais como o Odomodê e Afrikanamente, como ferramenta para lecionar a percussão e cantos de dentro do batuque, além de outras atividades que cercam a religiosidade afro.
O projeto foi um meio que o artista encontrou para promover o debate da própria religião dentro destes espaços e também para onde o batuque não é tão visível. “Foi pensado em ter pessoas que cantam e tocam dentro dos terreiros para espaços não tradicionais, ou seja, levando o Alùjá para cima dos palcos com o mesmo intuito que trazer o debate e desmistificar as questões da religiosidade”.
Com o trabalho de educação e apresentação, nasce a ideia do EP para “enfatizar cada vez mais a musicalidade dentro do batuque”, explica Diih. Ele ressalta também que diversos músicos gaúchos vêm de terreiros e essa musicalidade do batuque influencia muito no cenário. Então, na premissa de seu trabalho, como ideia primária, vem a proposta de trazer essa relação em forma de documento, com ênfase na musicalidade.
Questionado sobre a visibilidade da música negra dentro do Rio Grande do Sul, Diih Neques se desculpa pelas palavras fortes quando responde: “Virou moda ser preto”. Ele relata sua percepção das pessoas não negras buscarem um conhecimento que é compartilhado por gerações por negras e negros. “Sempre tivemos os nossos conteúdos e nossos conhecimentos, mas nunca fomos vistos por causa do ‘desinteresse social’”, destaca ele, fazendo aspas com as mãos.
O artista acredita que o antirracismo dos últimos anos derrubou barreiras que sempre existiram e as pessoas se viram identificadas. “Hoje eu posso falar ‘essa é a minha musicalidade, eu falo de Orixá sim porque o Orixá tá na minha vida e é isso que eu vou fazer”. Como exemplos semelhantes de artistas que pautam a questão racial em seus trabalhos, ele cita a musicista Dessa Ferreira, o artista Dona Conceição e Bruno Amaral, que participou do álbum Alùjá. Como obstáculo, Diih cita a barreira econômica. “É uma carga histórica, mas é real. Quem tem grana é gente branca e a gente só consegue ocupar alguns espaços se a gente for firme ou se eles deixarem. E a gente tá optando por ocupar do jeito que gente quer e merece.”
No processo de criação artística do EP, o músico se deparou com a necessidade de buscar as expressões em iorubá nas suas formas originais, uma vez que, em se tratando de palavras específicas da religião de matriz africana, não é difícil encontrar manifestações culturais que usem a mesma expressão, mas com pronúncia diferente. A expressão kabecilê, a saudação ao Orixá Xangô, é um exemplo que passa por pronúncias variadas (kabecí-lê/kabecilê).
Em conversas com o seu pai-de-santo Roger Olanyan, eles delimitaram a diferença entre tradição e realidade, mas sem o objetivo de mudar a tradição em si. Ele argumenta que alterações nas expressões devem-se ao fato de que informações se perderem ao longo do caminho no processo de repasse da religião. “Muitas pessoas pessoas que cantavam errado ou que não sabiam pronunciar as palavras certas, que já existiam bem antes de nós, então foram informações que foram se perdendo e são muito difíceis de resgatar.”
Com Alùjá, ele busca trazer esse resgate, trazendo a certidão das palavras além dos motivos de cantar e também no cantar algumas expressões. “O resgate tem que ser feito sempre, mas a gente não pode impor para a pessoa como ela tem que cantar. A gente tem que tratar o nosso povo da maneira que a gente não foi tratado há muitos anos atrás, com carinho, atenção e preocupação. A ideia não é embate.”
Natural de Alvorada, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, Diih Neques traça sua trajetória musical a partir dos doze anos (“de repente um pouquinho menos”, nas palavras dele), quando passou a integrar o Nação Periférica, o projeto social da cidade que ensinava percussão para crianças em vulnerabilidade social. Dali, foi crescendo, até se tornar educador musical do próprio projeto. Em paralelo, trilhava a sua vida religiosa como tamboreiro. Em 2018, Diih ingressou na faculdade de Licenciatura em Música, onde expandiu seus conhecimentos no cenário musical, além de conseguir repassá-los na profissão, mas nunca deixando a função de tamboreiro de lado.
Diih Neques tem trabalhos com Dona Conceição, Adriana Deffenti, Maga Bo (EUA) e Angelo Primon, entre outros. No Alùjá, ele também contou com a participação do seu babalorixá, Roger Olanyan. “Dentro da religiosidade, o meu pai de santo está sempre do meu lado. Ao mesmo tempo que ele me cuida, ele também me corrige. A gente pensa muito parecido. Na musicalidade, ele sempre me respeitou. Enquanto eu estou produzindo, ele não interfere. Mas a partir do momento que toca na religião, ele me alerta ‘olha, isso pode, isso não pode’.” Diih relata que se sentiu à vontade para trabalhar com Roger no ponto religioso ao mesmo tempo que também sentiu uma leve tensão em ter alguém lhe supervisionando. “E o trabalho saiu o mais fidedigno possível”, encerra, satisfeito.
Ao fim da entrevista, Diih Neques revela que a partir do lançamento do Alùjá, a ideia é trabalhar com shows, eventos, aulas e ter o retorno financeiro, mas que o álbum possa estar presente na ocupação dos espaços, de forma que ele possa promover a religiosidade, o conhecimento e, em lugares fora do Rio Grande do Sul, a própria identificação. “Lá no sul do Brasil, existe tradição de culto a Orixá e a gente vai tá mostrando o que fazemos musicalmente por aqui. É trazer o sustento das pessoas que fazem esse trabalho e manter essa tradição viva”.