Bábiton Leão*
Fotos: Arquivo pessoal/Tiatã
Assim como o canto forte e destacado do pássaro tiatã, ou azulão, Vanessa Mesquita chama a atenção por onde passa. Não à toa, a slammer é conhecida como Tiatã, não somente pela voz, mas também em função das poesias que retratam os seus dias, sejam eles marcados por frustrações, tristezas ou alegrias. Uma voz que vem das ruas e periferias, trazendo a representatividade das comunidades.
Tiatã participa das rodas de slam desde 2018, tendo estado em todas as finais regionais de lá para cá. Neste ano, a poeta sagrou-se campeã da Final Gaúcha de Slam. Ao longo desses três anos, ela adquiriu prestígio no meio cultural em que atua. Quem frequenta e acompanha as rodas em Porto Alegre sabe quem é Tiatã. Suas poesias ganham destaque e, por onde ela passa, pedem que declame seu poema mais conhecido, o Mariavilhosa.
Por ter consciência da dificuldade que é viver da arte, a slammer trabalha de segunda a sexta-feira em uma empresa privada, mas faz questão de destacar que não vive sem a poesia. Entre realizações e frustrações, Tiatã segue fazendo seus versos e poemas, enfrentando os obstáculos de ser uma mulher preta, da periferia. Com apenas 23 anos, a artista encontra-se em ascensão na carreira e, após o título de campeã gaúcha, segue em busca dos seus objetivos.
Em entrevista ao Nonada Jornalismo, Tiatã falou sobre a carreira, dificuldades, cultura, representatividade, arte, política e, claro, o slam.
Nonada – De que maneira você descobriu o mundo cultural do slam?
Tiatã – Eu descobri o slam em um telejornal ou pelo Facebook. Lembro que foram duas situações que aconteceram simultâneas. Na rede social, foi o slam Resistência [evento em São Paulo] que vi. Na TV, foi no Jornal Nacional, uma poesia da Mariana Félix que tratava sobre o assassinato de uma criança que tinha sido sua aluna. Ela fez uma poesia sobre como gostaria de ter conseguido ajudar e salvar aquela criança na época, acredito que em 2011. Depois acabou caindo no meu esquecimento, até 2017, quando descobri que tinha o Slam das Minas já atuante no Rio Grande do Sul. Em 2018, tive coragem de ir efetivamente às rodas, pois foi quando descobri os locais em que já aconteciam há algum tempinho e comecei a frequentar.
Nonada – De onde surgem as inspirações para os versos, poesias e rap?
Tiatã – Eu crio as minhas poesias, as músicas e os versos a partir das minhas emoções, de como estou me sentindo. Então, todo sentimento que é intenso eu transformo em letra. É a forma que tenho para me expressar, me comunicar com o mundo, é a forma como eu coloco para fora. Um crush não correspondido, um evento muito forte que me deixou irritada, qualquer situação no trabalho em que sou questionada, qualquer coisa me motiva a escrever. Um bom dia, um pôr do sol, fortes emoções. Eu sou uma pessoa que escreve muito mais para mim do que para os outros. Metade das coisas que escrevo é mais para eu me ouvir do que vontade que as pessoas se identifiquem com a letra.
Nonada – Como foi a trajetória para chegar até a final Gaúcha de Slam 2021? Esse era um objetivo antigo?
Tiatã – Eu comecei a competir em 2018 e desde então eu tenho estado presente em todas as finais regionais. Sempre foi um desejo ser campeã gaúcha de slam. Eu já tinha sido do Slam das Minas e aí eu fui para o Torneio Nacional Singulares, em São Paulo, que aconteceu em 2019. Mas nunca tinha ido como campeã no misto, onde tem homens, mulheres e pessoas não binárias. Foram quatro anos de persistência e eu acredito que aconteceu no momento em que era para ser. Todos esses anos, me doei da melhor forma que pude em todas as finais, mas foi um momento muito lindo [vencer em 2021], era um desejo muito antigo. Quando chegou minha camisa do Slam BR, que foi on-line este ano, foi uma felicidade que não cabia no peito. Eu sempre quis ter uma camiseta e um sonho tão distante se tornou realidade.
Nonada – O poema vencedor foi inspirado em quê? Como ele surgiu?
Tiatã – O poema que eu recitei no final se chama Mariavilhosa (veja a letra no fim da entrevista). É uma poesia que fiz para minha mãe e para todas as donas “Marias” e donas “Anastácias”, para as mulheres pretas que geram o mundo. Ele foi inspirado nisso. É a minha poesia de trabalho. Quando as pessoas falam o nome “Tiatã” nas rodas de slam, elas associam e pedem essa poesia. É um poema que eu uso há mais tempo e, justamente por isso, fiquei um pouco incomodada de usar este. Mas quando se fala em uma final de slam, onde tu precisa ter calma e segurança no que tu está falando, não tem uma poesia que me define mais. Então, foi lindo ter vencido com ela, acho que não tem outra coisa que defina mais esse momento.
Nonada – E agora você participa de alguma etapa nacional?
Tiatã – Eu já participei do nacional, no mês passado, e acabei ficando pelas semifinais, mas muito feliz pelo resultado e com sentimento de dever cumprido, de ter falado o que o coração pediu no momento. Como disse antes, eu escrevo sobre as minhas emoções e elas foram colocadas à prova naquele Nacional. Eu não esperava passar da primeira fase, para dizer bem a verdade. Acabei chegando na semifinal com poetas incrivelmente espetaculares, que eu já acompanhava a trajetória. Para uma primeira vez e, considerando todo esse momento pandêmico, sendo de forma on-line, onde você não olha para o olho das pessoas, achei que foi fabuloso. Fico pensando em como eu estaria nervosa, acho que estaria quase morrendo no palco se fosse presencial.
Nonada – Há frustrações por ser um meio cultural rico em literatura e vivências e não ter divulgação e apoio?
Tiatã – O meio cultural por si só já é frustrante de todas as formas, tanto por ser considerado como hobby quanto por não ter a remuneração que a gente acredita ser necessária para quem está inserido nele. Mas quando a gente fala sobre poesia, acredito que isso fica um pouco mais evidente, principalmente porque o slam é um movimento que começou em 2016 [no Rio Grande do Sul], então recém estamos conseguindo chegar dentro das escolas, das universidades, levar para a Feira do Livro, por exemplo, tendo oportunidade de popularizar esse meio de cultura. Acredito que principalmente agora, no início, a gente está remando muito mais, mas eu espero que num futuro próximo se consiga deixar tudo mais dinâmico.
Nonada – Essa conexão entre slam, poesia e literatura faz com que tenha alguma inserção do movimento em políticas públicas?
Tiatã – O slam, quando vem para o Brasil, em 2008, com a Roberta Estrela Dalva, vem com formato totalmente diferente de como foi criado nos anos 1980, em Chicago. Lá nos Estados Unidos, acontecia em bar. Esse lado de ser de rua, acessível para todas as pessoas e feito para o público popular é totalmente caracterizado no Brasil, então eu acho que acabou tomando viés político, sim. A gente fala sobre várias coisas no slam. Quando a gente fala de Rio Grande do Sul e, acredito que não só aqui, por ser uma cultura de rua, a maioria é periférica. A maior parte dos artistas que a gente tem é preto, ativista, pessoas que chegam com pautas sociais para falar, então o slam acaba sendo uma forma de afronta contra o sistema, uma forma de se posicionar. É dar voz para pessoas que não são ouvidas.
A gente sempre fala que o slam é tratado como poesia marginal porque ele está à margem de uma sociedade que nunca nos deu voz. Além disso, as referências que a gente tinha de poesia, quando eu ia à escola, eram todas em linguagem que a gente não entendia. O slam está aí para mostrar que a nossa gíria, o nosso dialeto, que desqualificavam, mesmo tendo uma taxa de analfabetismo enorme no Brasil, também é poesia. É tu mostrar que sim, Racionais MC’s cai no ENEM, mostrar que a forma como a gente fala ou o meio não descaracteriza nosso potencial enquanto artista. É reconhecer que o que a gente faz é rico em cultura, talento e conhecimento.
Nonada – Como são feitas as competições de slam? Existe algum apoio, algum respaldo de governos e prefeituras?
Tiatã – O slam surge com a característica de ser na rua, ser popular. Nesse quesito tem alguns eventos que, sim, a gente tem patrocínio, como do SESC. Eventos maiores, como o Nacional de Slam, tem apoio do Itaú. Tem diversos editais que a gente ganha e, enquanto artista independente, a gente pode utilizar para fazer as rodas de slam. Em 2019, a Carol Dall Farra, do Rio de Janeiro, foi apresentar uma roda de slam no Rock in Rio. Portanto, existem apoios, mas na sua maioria são feitos de forma independente, por pessoas que acreditam no poder do slam como arte e como atividade que transforma. Ele é feito totalmente na rua, por pessoas que estão passando por ali [pelas rodas] ou que foram para ouvir as poesias, e pelos poetas que não têm nada além da voz e da performance para oferecer ao público.
Nonada – A cultura slammer, com suas vivências, sendo voz da periferia, sofre muito preconceito entre os demais meios culturais?
Tiatã – Eu não digo que o slam sofre preconceito, mas digo que é questionado. Ninguém acreditava que o slam poderia ser uma forma de ensinar literatura dentro das escolas, hoje isso já acontece. Mas assim como as batalhas de MC’s, como em qualquer cultura que é periférica, que é de rua, é questionada. As pessoas acham que é coisa de vagabundo que não tem estudo. Não reconhecem a gente como participante ativo da cultura daquele local e momento. Então, não digo que sofre preconceito, mas que é marginalizado, sim, como toda cultura de rua e periférica.
Nonada – E você, sendo uma mulher negra buscando seu espaço, precisou enfrentar muito preconceito?
Tiatã – Eu, sendo uma mulher negra, moradora do Rio Grande do Sul, não só precisei como preciso enfrentar há 23 anos da minha existência [o preconceito]. Todo dia é uma prova, provar que sou capaz. É como se a gente passasse 24 horas por dia em xeque, sendo questionada e tendo que reafirmar a nossa autonomia enquanto pessoa. São comentários sobre cabelo, cor da pele, sobre os traços. É cansativo, é desgastante, cansa. Você está em uma roda, por exemplo, querendo se distrair, e tem alguém falando: “Tu viu que tal pessoa morreu com 80 tiros”? E tu pensa: “Nesse momento eu quero descansar, não quero falar sobre pautas políticas, porque eu não sou só isso”. Mas parece que é sempre isso que esperam da gente. Por isso falamos que nós, como pessoas pretas, quando sorrimos é um ato de resistência. A gente sempre fala que mostrar que pessoas pretas se amam também é resistir em um país racista, em um mundo racista, pois não nos é dada essa perspectiva de vida. Então, sim, a luta é diária, é incessante, até quando a gente não quer, até quando a gente cansa, quando a perna falha, a gente tem que ser o nosso próprio colo e se reerguer de novo, porque em nenhum momento nos é permitido um dia de paz.
Nonada – Em algum momento você pensou em desistir do slam por conta das dificuldades?
Tiatã – Eu sou escritora e poeta antes do slam surgir na minha vida. Eu acredito que assim como já pensei, sim, em parar de competir no slam, eu também sei que a poesia nunca irá sumir de mim. A partir do momento em que não escrever, eu não existo mais. A poesia sou eu. Eu me encontro assim. Se eu perder ela, eu me perco de mim. Então, não, não existe essa possibilidade. Mas os fatos que me fazem não querer competir no slam não são dificuldades externas. Claro, já teve um momento em que eu pensei que iria viver de arte, mas hoje prefiro a estabilidade financeira de um emprego com renda fixa. Eu não tenho mais a coragem que tinha de achar que isso poderia acontecer, mas entendo que o slam tem uma importância muito grande na minha vida. Então, não me vejo saindo disso de forma alguma. Se eu não estiver à frente enquanto poeta em uma roda, vou estar nos bastidores fazendo com que aquele movimento aconteça.
Nonada – Como você vê a importância do slam para o dia da Consciência Negra, que foi criado há 50 anos aqui no Rio Grande do Sul?
Tiatã – Para nós, pessoas pretas, o slam no mês de novembro toma uma proporção muito grande, mas me traz diversos questionamentos. Por que só se lembram de nós nesta data? Por que muitos desses trabalhos não são remunerados no mês em que a gente fala sobre isso, sobre dar visibilidade, sobre questionar, sobre a pauta? Por que esses assuntos são questionados, sendo que eu, por exemplo, tenho 23 anos de existência e vivo o racismo todos os dias? Por que até hoje a nossa pauta é questionada? Por que as pessoas não se permitem pensar? Tem, sim, sua importância, óbvio. Eu acredito que o slam também vem para democratizar o acesso à informação. Tem muita coisa que a gente coloca nas poesias que é embasado em teóricos, em diversos assuntos, e eu acredito que falar sobre isso da forma como a gente fala, sem ser acadêmico, falando para quem precisa ouvir e para quem precisa saber, torna esses assuntos de extrema importância.
Nonada – Qual foi a maior dificuldade que você enfrentou na carreira até hoje?
Tiatã – Eu acredito que a maior dificuldade seja a burocracia para conseguir fazer parte dos trabalhos maiores, como SESC e Viradas Culturais, nas prefeituras. Eu sei que isso é necessário, mas quando a gente fala sobre arte de rua, periferia, acredito que deveria ser feito por outros meios, como os pagamentos que precisam ser para pessoas jurídicas. Quem é que tem acesso a isso crescendo dentro da periferia? Quem é que sabe como funciona? É tudo muito difícil. Como participar de editais com uma linguagem tão acadêmica assim? Eu acredito que isso é uma dificuldade que desmotiva. Não são todas as pessoas que têm acesso a isso, acesso à internet, acesso a esses editais. Eu tenho e não faço, então imagina quem não tem e nem sabe que isso existe. Eu acho que a democratização para todos seria a chave de todo artista independente. Desde a pessoa que fica na rua, até a pessoa que faz arte dentro do vagão do trem. Eu queria que todo mundo tivesse acesso e condições de fazer esses editais, que não fosse tão burocrático levar e dar acesso para essas pessoas estarem dentro desses espaços. É muito importante a gente estar lá, não só para reconhecimento artístico, mas já que eles querem a nossa arte, por que eles não aceitam a nossa arte como ela é e tentam moldar dentro desses padrões? Acho que a burocracia é um dos maiores empecilhos.
Nonada – Depois da conquista, quais são os planos para a carreira?
Tiatã – Eu não uso muito das minhas mídias sociais. Faço uma ressalva para o Instagram, que se tornou um portfólio para quem faz arte. Então, os meus próximos planos são pegar as coisas que eu mais me identifico, as favoritas, gravá-las, fazer alguns processos musicais envolvendo música e poesia, e postar. É muito difícil para mim, porque eu não tenho hábito e não gosto de postar foto nem nada do tipo. É uma hipocrisia, visto que eu gosto de falar numa roda com 400 pessoas, onde a imagem é colocada em pauta da mesma forma. Acredito que os próximos planos sejam esses. Mas, para este fim de ano, é colocar o pé no chão e reavaliar os próximos passos para, no ano que vem, com as rodas presenciais, me preparar e ver se vou estar apta e disposta a voltar para as ruas de novo.
Nonada – O que esperar para o futuro do slam pós-pandemia?
Tiatã – As rodas de batalha de MC’s já estão acontecendo. Acredito que não vai demorar muito, talvez no fim deste ano ou começo do ano que vem, para as rodas começarem a acontecer novamente. Eu prevejo que vai ter muitas slammers novas aparecendo. Muitas pessoas novas voltando – novas, mesmo que sejam velhas dentro do movimento, mas que haviam parado e voltaram de novo a competir –, então vai ser bem disputado. Acredito que o primeiro slam pós-pandemia vai ser um dos mais disputados possíveis e deverá ser mais dentro das escolas, pelo que tenho acompanhado, pelo trabalho que está sendo feito.
* Estudante de Jornalismo da Unisinos. Esta entrevista é fruto de um projeto especial de parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos.