Daryan Dornelles/divulgação

Em novo livro, Chico Buarque mostra que os Anos de Chumbo continuam

O mais novo livro do escritor Chico Buarque, Anos de Chumbo (Companhia das Letras) é também uma incursão em uma das poucas áreas criativas em que ele não tem tanta experiência: a narrativa curta. No campo do romance, é amplamente conhecido tendo, inclusive, ganhado o prêmio Jabuti em três ocasiões, com as obras Estorvo, Budapeste e Leite derramado. Também já escreveu para o teatro, principalmente durante os anos 1970, com peças como Gota d’água e Ópera do malandro. Na canção, não é necessário fazer maiores comentários. Mas esse Anos de Chumbos vem para mostrar que o artista também domina o conto. 

São oito histórias curtas que cumprem o papel de impactar o leitor, seja pelas escolhas do autor, ou pela perplexidade assustadora tão próxima da realidade. Há um jogo interessante no título do livro, que nos remete à época da Ditadura Militar quando o artista foi um entre os vários perseguidos. Só que a maioria das histórias não tem o período como cenário. Quem está por trás de tudo sempre é a cidade do Rio de Janeiro. Não é à toa que o conto que abre o livro, chamado Meu tio, é muito atual, mostrando a capital carioca dominada pelas milícias, narrado a partir da visão de uma adolescente. Um drama que não apenas desestrutura aquela sociedade, mas também está enraizado na família. Os anos de chumbo, então, se perpetuam a partir de uma nova roupagem. 

Já em O Passaporte, um dos pontos altos do livro, Buarque faz uma espécie de  paródia autorreferencial colocando como protagonista o personagem “o Artista”, em uma narração muito bem realizada e que prende o leitor até o surpreendente ponto final. A trama conta o “martírio” do tal artista para conseguir embarcar em um voo para a sua amada Paris. Ainda que de leve, percebe-se a perseguição na área da cultura tão em voga atualmente, mas o inquisidor nem sempre é quem parece. 

No conto Os Primos de Campos, o autor traz novamente um narrador adolescente em primeira pessoa, o que nos faz ter empatia quase de imediato com as problemáticas adolescentes que, cada vez mais, vão sendo invadidas, assim como na primeira história curta que abre a obra, pela violência das gangues e milícias do Rio de Janeiro. O futebol, como uma diversão e também como uma falsa esperança para uma família mais pobre, também aparece no pano de fundo.

Cida, um dos pontos baixos da obra, traz um olhar glamourizado demais sobre a mulher em situação de rua que dá nome ao conto. Ela também sofre de alucinações sobre uma outra realidade. Há o subtexto da sociedade rica carioca que “adotava” essas pessoas, lhe dando roupas e comida no passado, e agora, com o passar do tempo também no conto, substitui o tratamento por uma espécie de higienização desses bairros. Mas a história não funciona para nenhum lado que se observa. 

Copacabana e Para Clarice Lispector, com candura, são duas narrativas que evocam um Rio de Janeiro do passado, principalmente a primeira, com uma espécie de devaneio de um narrador que visualiza grandes nomes da arte de todos os tempos passeando pelas ruas do famoso bairro. Não há nada de impressionante, mas também nada de aborrecido nessa história. Agora, a trama de Clarice Lispector, essa sim, é um bom exemplo de uma narrativa curta, que consegue apresentar a transformação de um personagem a partir de um encontro marcante (pelo menos para uma das partes) – amarrando, dessa forma, uma história do passado com um tema tão frequente no presente: a obsessão e a solidão. Nesse caso, com uma sórdida ironia. 

Os últimos dois contos não poderiam ser mais diferentes entre si, o mais longo do livro, O sítio, conta a história de um casal que se conhece há pouquíssimo tempo e que, por impulso, resolvem alugar um sítio na serra da Mantiqueira. A história faz alusão ao isolamento causado pela covid e mostra a aproximação e desconfiança do narrador em primeira pessoa, que se vê cada vez mais deslumbrado pela paixão. Alguns dos melhores momentos do livro se passam pela descrição do ciúme e da desconfiança do narrador de que ela não estaria no mesmo embalo. 

E, finalmente, o conto que fecha e dá nome ao livro, Anos de Chumbo. Uma pequena história (de vingança?) contada por um narrador que se lembra da sua infância e de seu pai militar, visto aqui como violento, sendo traído também pelo seu superior. O menino coleciona pequenos exércitos de brinquedo e acha os brasileiros muito “mequetrefes”. Agora sim, por trás do conto há algo acontecendo, torturas e jogos políticos entre os militares – tudo nas entrelinhas, com o protagonista escutando pequenas conversas e deixando para o leitor fazer a costura. 

É interessante que este seja o conto que dê o nome ao livro, e também seja o escolhido para fechá-lo. É como se fosse o começo do ciclo, como a ditadura influenciou a militarização e a violência policial, que acabou levando mais tarde as milícias e a truculência da instituição, ambas muito presentes no conto que abre o livro. Buarque prova que também tem o domínio da prosa curta, e que os anos de chumbo se encontram bem vivos no Brasil. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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