Autoras de Travessias do Amanaã (Foto: Marco Nedeff)

Do ubuntu literário ao novo terror: o poder transformador da criação coletiva

Entre os diferentes tipos de expressões artísticas, pode-se pensar que a literatura é a que exige o trabalho mais solitário. Entretanto, por trás da escrita, há toda uma estrutura girando para fazer o livro acontecer. E é cada vez mais necessária a organização dos próprios escritores para o lançamento de suas obras, seja pela dificuldade imposta por um mercado dominante ou pelos objetivos escolhidos. Nesse sentido, o trabalho em conjunto a partir de uma antologia, por exemplo, pode ser interessante tanto para a criação coletiva quanto para aprofundar diferentes temas.

O escritor e ativista social Alessandro Buzo, natural de São Paulo, é organizador da coletânea Pelas Periferias do Brasil, que esse ano chega ao seu nono volume. Buzo é um exemplo de alguém que teve que correr atrás para lançar seus próprios livros, transformando também a cadeia literária ao redor.

Da periferia de São Paulo, no bairro Itaim Paulista, extremo leste, ele conta que escreveu um texto sobre as condições precárias do metrô no fim da década de 1990. Sem receber resposta da empresa, resolveu enviar para os jornais da capital, que também o ignoraram. Então, imprimiu várias cópias e entregou para os passageiros. Eles acabaram gostando e o incentivaram a escrever um livro. “Só que naquele tempo, 1998 para 1999, não tinha nenhuma cena de sarau ou slam, não existia um movimento, pouquíssimos autores periféricos tinham lançado livros. O Ferréz tinha lançado o Capão Pecado, o Paulo Lins tinha lançado o Cidade de Deus, mas ainda não tinha virado filme, então, não era tão famoso assim”, diz. Apesar das dificuldades, Buzo conseguiu lançar o livro e não parou mais. Já são 33 publicados, quinze como organizador e co-autor e dezoito obras como autor.

Grupo do Sarau Suburbano no evento Favela Literária (Foto: divulgação)

Com isso, foi ganhando cada vez mais oportunidade. “Como a literatura foi abrindo várias portas para mim, eu comecei a frequentar eventos, a fazer palestras, a viajar para outras cidades e estados. E as pessoas queriam ter acesso a publicar, mas tinham poucas chances, então, decidi que era preciso tentar uma coletânea”, explica. O Pelas Periferias surgiu com o apoio de uma ONG em São Paulo, que cobriu os custos dos primeiros volumes, e tinha oito estados diferentes representados. Depois de um tempo, a publicação teve que se tornar independente, com o próprio dinheiro dos participantes, e agora na nova edição vai sair sob o selo da editora Reformatório.

“O desafio que fizeram foi: eles iriam publicar se tivessem autores dos 27 estados, e, pela primeira vez, teremos de todos”, diz. Os autores são livres para optar entre contos ou crônicas. A previsão de lançamento é para o mês de junho. Entre os autores que já passaram pela coletânea estão nomes como Geovani Martins e Mel Duarte. “Sempre convido pessoas dos Estados que eu conheço da literatura ou do hip hop, nesta edição, além de ter pessoas de todos estados, a maioria será de mulheres. E fiz o mesmo processo, mas nos estados que não conhecia ninguém, tive indicações da Lunna Rabetti do Mulheres no Hip Hop”, completa.

Para o coordenador do curso de Escrita Criativa da PUCRS, Bernardo Bueno, grupos de escrita e a publicação coletiva são essenciais para o desenvolvimento da carreira literária. “E eu falo isso tanto como professor quanto escritor que passou por isso. No começo a gente não sabe muito bem como publicar ou quais são as possibilidades de gênero e de estilo, e essas atividades ajudam os escritores a encontrarem o seu lugar”, diz. A questão do financiamento coletivo também favoreceu essa cena, sendo mais acessível economicamente juntar um grupo para bancar uma obra.

Terror em evidência

Em novembro de 2021, foi lançada a coletânea O Novo Horror, com organização dos escritores gaúchos Daniel Gruber e Irka Barrios. O livro reúne 20 contos de dez autores e dez autoras de vários lugares do país, juntando nomes conhecidos e aqueles em começo de carreira. “Os leitores também têm a chance de entrar em contato com escritas diversas daquelas que estão acostumados. Esse foi nosso norte em O Novo Horror e deu muito certo, tenho recebido inúmeros comentários de leitores que ficaram bastante contentes em conhecerem novos nomes dentro e fora do gênero”, diz Gruber. Entre os autores estão Daniel Galera, Juliane Vicente, Gustavo Czekster, Larissa Prado e Matheus Borges.

A publicação foi lançada pela editora O Grifo, fundada em 2017 por Gruber, e voltada para autores nacionais de literatura contemporânea e de ficção de gênero de todo o país. “Hoje a editora já está trabalhando no 14ª título do seu catálogo. Tenho muito orgulho dessa trajetória, é claro, mas não nego que foi um lance no escuro, e muito trabalhoso. Cada dia é mais desafiador que o outro”, revela.

Coletânea O novo horror (Foto: Escuro Medo/divulgação)

Irka Barrios conta que a ideia da coletânea também foi pensada com o intuito de contribuir com a popularização do gênero horror produzido no Brasil. “É uma literatura que já tem os seus fãs, e a nossa ideia, talvez, inocente, era trazer para o grande público, não ficar tão nichada assim”, diz. Segundo Gruber, é evidente o crescimento do gênero nos últimos anos, tanto no meio cinematográfico, quanto na literatura, com o interesse em torno de autoras latino-americanas como Mariana Enriquez e Samanta Schweblin. “Tenho lido muitos críticos afirmando que o horror é a única forma de explicar a atual situação no mundo, em especial no Brasil, como as crises sanitárias, o negacionismo, a ascensão do pensamento fascista, etc. Eu tendo a concordar”, diz. Sucessos de livros como Gótico nordestino, de Cristhiano Aguiar e o romance Corpos Secos, escrito a quatro mãos por Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado, animaram o mercado editorial brasileiro.

É como um círculo que se retroalimenta, acredita Irka. “Eu acho que quanto mais a gente puder incentivar, tanto os que já publicam há mais tempo, quanto os que estão surgindo agora, melhor e mais forte esse ciclo vai ficando. Acredito que esse é o caminho que a literatura brasileira tem que seguir”, aponta.

Para Gruber, há uma retomada de interesse no horror que é global, mas ver isso acontecer por aqui é quase inédito. “E acho que ainda nem chegamos na crista da onda, o que me deixa muito esperançoso”, completa. Tanto que um segundo livro já está sendo planejado. “Muita gente boa ficou de fora de O Novo Horror, mas em um primeiro momento priorizamos os autores que gostávamos, que tínhamos mais proximidade, o que é algo natural. Com o tempo, porém, os leitores foram atribuindo à antologia um peso que inicialmente ela não tinha (ou que não pretendemos que tivesse), que era a de fazer um recorte da produção de horror nacional. Hoje, mais conscientes das consequências, estamos elaborando com mais cuidado um segundo volume, que deve sair ano que vem”, avisa.

Arquétipos dos orixás

Foto: reprodução

O livro Contos de axé: 18 histórias inspiradas nos arquétipos dos orixás, organizado pelo jornalista e escritor carioca Marcelo Moutinho, foi lançado no final do ano passado, pela editora Malê. A ideia surgiu após ele escrever um conto chamado Oxé, que dialoga com o arquétipo do orixá Xangô. “Foi mais ou menos na época da minha iniciação no Ifá e também quando comecei a me interessar ainda mais pelos itãs, os mitos, os orixás ”, explica.

O aumento do número de casos de intolerância às religiões de matriz africana também foi um dos motivadores da obra. “Eu me deparei com muitos casos, um crescimento muito grande de ataques sobretudo a terreiros de umbanda, de candomblé, então, eu acho que era importante esse livro sair logo”, confessa. Só no Rio de Janeiro, em 2020, foram registrados mais de 1,3 mil crimes que podem estar ligados à intolerância religiosa, de acordo com Instituto de Segurança Pública (ISP).

Primeiramente, Moutinho tinha pensado em fazer um livro solo, mas a ideia da antologia com a oportunidade de dar espaço para diversas vozes de autores foi a escolhida. A coletânea reúne nomes como Nei Lopes, Eliana Alves Cruz, Geovani Martins, Luisa Geisler e Itamar Vieira Junior. A seleção dos autores foi realizada atendendo aos recortes de amplitude geográfica, bem como a diversidade de raça, gênero, idade e estilo.

O organizador conta que os autores tiveram liberdade para escolher os orixás que iam trabalhar. “Alguns autores que não conheciam muito o assunto, eu indiquei alguns livros que tratam dos orixás e eles escolheram a partir dali”, explica. Um caso interessante, ele aponta, é o da cantora e compositora Fabiana Cozza que fez a primeira incursão dela na literatura publicando um conto no livro.

Moutinho diz que a repercussão está sendo boa tanto para quem é inserido na religião, quanto para quem não é. “A ideia era justamente chegar no público não-iniciado, no que não é convertido ao Candomblé, a Umbanda, ao Ifá, as religiões de matriz africana, e destacar que, na verdade, para além da questão religiosa, há o valor simbólico, mítico, literário mesmo dos mitos dos orixás”, conclui.

Travessia Ubuntu

Ubuntu é uma noção existente nas línguas Zulu e sua filosofia parte da ideia de ser uma pessoa com consciência de que está inserida em algo maior e coletivo. “Os coletivos negros de literatura mais do que os outros trabalham com essa perspectiva do ubuntu, eu sou porque nós somos”, explica a poeta e escritora Ana dos Santos.

No Rio Grande do Sul, há grandes exemplos, como o Sopapo Poético, promovido pela Associação Negra de Cultura desde 2012. O sarau coletivo que acontece sempre na última terça-feira do mês evoca o protagonismo negro, em uma roda de atuações, reflexões e convivências literárias. Ana conta que participou do livro Pretessência, uma antologia poética organizada pelo Sopapo, que reuniu algumas das inúmeras vozes negras gaúchas que fomentam literatura. Para ela, a experiência a encorajou a participar de outros coletivos e antologias, impulsionando sua carreira. “Observando a minha produção dá para ver que hora estou em coletivos negros de literatura, hora estou em coletivos de mulheres”, diz.

A poeta vem compondo várias antologias ao longo dos últimos anos, mas também se destacando nos lançamentos individuais, como as obras Poerotisa e Pequenos grandes lábios negros, publicação que integra a coleção Mulherio das Letras, lançada pela Venas Abiertas Editora Popular, de Minas Gerais. “Esse livro também nasceu de uma iniciativa coletiva, que é o Mulherio das Letras, um grupo de escritoras de todo o Brasil que se organizam de forma horizontal. Essa coleção tem quinze títulos, quinze colaboradoras, e todas se leram, isso é muito bom para conhecer novas autoras de diferentes lugares”, explica. O Pequenos grandes lábios negros ganhou o prêmio Milton José Pantaleão de Literatura Independente,na categoria poesia em 2021.

O livro mais recente é a antologia Travessias de Amanaã, uma compilação de textos escritos a partir dos saraus do grupo Arte Negra no Teatro de Arena de Porto Alegre. Além de Ana, o grupo é composto por Carmen Lima, Fátima Farias, Delma Gonçalves, Lilian Rocha e Taiasmin Ohnmacht. A publicação é uma construção coletiva de mulheres inspiradas em suas vivências, assim como Conceição Evaristo e Maria Carolina de Jesus.” Então, começamos a escrever poemas, contos e crônicas, esse é o diferencial dessa antologia, nós todas somos poetas, mas muitas de nós são prosadoras, e quem não faz acabou sendo inspirada pela outra a escrever contos e crônicas. Então, nós mesmas colocamos esses desafios para nós”, explica. Segundo Ana, as mulheres negras têm uma necessidade maior de se juntar. “A mulher negra na literatura sofreu muito com a representatividade negativa, e agora a abertura do mercado para ouvir as nossas vozes, nós queremos sim, falar e ser escutadas”, completa.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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Ensaio: música e modernismos negros