Cecília Silveira/Think Olga

Artistas rompem silêncio e relatam casos de assédio no trabalho

Era o primeiro dia de trabalho de Marcela (nome fictício) no set de filmagem de uma série. Cenógrafa com anos de experiência, ela já estava acostumada a ouvir comentários de cunho sexual de colegas. Mas não estava preparada para o comportamento do proprietário da produtora, que tentou agarrá-la à força. Em outra empresa, tempos depois, sofreu outro tipo de assédio.  “Um diretor ‘brincou’ que o mais interessante do cenário que fiz era o lixo acumulado num canto”, relata. 

Situação semelhante viveu Juçara Gaspar, atriz e diretora residente em Porto Alegre (RS). Ela e outras 12 atrizes aguentaram caladas as investidas sexuais e “passadas de mão” de um diretor teatral conhecido no meio artístico que hoje ocupa um cargo público na cidade. “As mulheres se trancavam no camarim para se trocar”, diz Juçara, contando que as atrizes chegaram a pensar em denunciar o caso na Justiça, mas desistiram no meio do caminho por medo. “O meio teatral é como qualquer outro meio da sociedade, cheio de misoginia e machismo. O que tem de assédio sexual com mulheres tu nem imagina. São naturalizados porque a história do teatro e as configurações seguidas por anos, em estruturas hierárquicas onde o diretor era Deus, incidiram diretamente em abusos. A dramaturgia universal também não nos ajuda muito, já que é um compêndio de feminicídios”, alerta.

O Nonada Jornalismo coletou relatos de 15 profissionais da cultura que vivenciaram casos de assédio moral ou sexual em sete cidades de diferentes regiões do país. As conversas ocorreram de forma online ou por telefone. A maioria das vítimas não quis ter seu nome revelado na reportagem por medo de represálias. Em vários casos, os ataques sofridos abalaram psicologicamente os artistas; em outros, chegaram a impedir que os profissionais realizassem seu trabalho.

A discriminação ligada a questões de gênero, orientação sexual e etnia são uma constante entre as denúncias. Renan (nome fictício), um ator residente em Santo André (SP), conta que a proprietária de uma escola de teatro o impediu de se vestir com um sapato de salto alto. “A diretora me mandou um áudio no WhatsApp dizendo que havia conversado com o diretor geral da escola e que era melhor eu não usar o salto, alegando que como o público do local era diferente poderia causar estranhamento”, conta. 

Outro ator de Campo Grande (MS) diz que foi descartado para o papel de um engenheiro agrônomo no trabalho por ter cabelo cacheado, o que, “na visão do contratante, não parecia o cabelo de um agrônomo”. Segundo Pedro, artista visual de Cuiabá (MT), a discriminação “sempre acontece através de piadas LGBTfóbicas ou comentarios machistas entre os colegas de set, afinal há pouca diversidade nesse meio”.

A cultura do silenciamento no meio artístico dificulta que denúncias sejam levadas adiante em esferas administrativas ou judiciais. Em um mercado de trabalho em que muitos profissionais não têm carteira assinada e trabalham emitindo nota fiscal, por exemplo, há o senso comum de que se reclamarem, os artistas podem se queimar no meio. A Procuradora Regional do Trabalho Adriane Reis de Araújo explica que o Judiciário tem meios para garantir o sigilo e anonimato da vítima, ou seja, ela pode fazer a denúncia diretamente no site do Ministério Público do Trabalho (MPT) sem que seu nome seja revelado mesmo quando a relação de trabalho é informal. 

“Nos termos da convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), qualquer pessoa que sofra violência e assédio no ambiente de trabalho pode fazer esse tipo de denúncia independente do tipo de vínculo de emprego. Se a relação de trabalho é eventual, a competência é da justiça comum [via Ministério Público estadual]. Se é um trabalho contínuo, ainda que sem a carteira assinada, é possível fazer esse tipo de denúncia na Justiça do trabalho [via MPT]”, diz a Coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do MPT.

Quando o trabalho vira um pesadelo

Ministério Público do Trabalho/divulgação

Em alguns casos, a discriminação ocorre repetidas vezes com a mesma pessoa, o que configura assédio moral – por parte da chefia, dos colegas ou até mesmo de subordinados. Segundo cartilha explicativa do MPT, o assédio tem como característica “atitudes abusivas com conteúdo vexatório e constrangedor” e traz como consequência “desestabilizar emocionalmente a vítima e/ou degradar psicologicamente o meio ambiente do trabalho”.

Foi o que aconteceu com Natália (nome fictício) quando ela trabalhava em uma produtora de filmes e streaming de shows de Porto Alegre há cerca de dois anos. Além de assédio moral, passou por vários episódios de injúria racial, ela conta. “Logo no meu primeiro dia de trabalho, a mulher responsável pelo RH tocou no meu cabelo sem permissão e disse: ‘Hmm cabelo diferente’ e se retirou da sala. Durante os meses que se seguiram sofri todo tipo de injúria racial das mais sutis até as mais explícitas.”

Ela conta que, durante um trabalho intenso em um evento, descobriu que seus colegas haviam criado um grupo de WhatsApp onde falavam sobre ela. Sem reação, ela não conversou mais com os colegas durante todos os dias no set de gravação e seu chefe percebeu. Mas a atitude do supervisor não foi nada acolhedora. “Já no escritório da produtora, quando estávamos sozinhos, meu chefe fechou a porta e gritou comigo de forma que nunca havia visto. Totalmente antiprofissional e antiético. Fiquei sem reação, pois não esperava aquela atitude dele. Comecei a chorar e pensei em pegar a minha bolsa e ir embora, mas pensei nas contas que precisava pagar no final do mês e desisti”, relembra. 

Comentários privados e constrangedores por parte dos colegas e da chefia começaram a fazer parte da rotina de trabalho. “Eu virei motivo de piada do meu chefe, por ser ‘mulata’ do Carnaval. Sendo que nem vínculo com a festa eu tenho. Nessa época, coloquei box braids e ele disse que eu já estava pronta para o Carnaval, era só pintar uma trança de cada cor”.

Sua supervisora direta até tentou controlar a situação conversando com o chefe sobre as “piadas”, mas as coisas só pioraram desde então. “No outro dia quando ela foi embora mais cedo, ele novamente gritou comigo falando que não gostava do politicamente correto, que ele também por ser um homem branco poderia sofrer preconceito. Ele também disse que já havia sido pobre e que havia passado por situações de preconceito e que não era só os negros que passavam por isso”, relata.

Natália foi demitida em março deste ano, sob alegação de cortes de gastos. “Soube por colegas que mantenho contato, que meu chefe fez comentários como: ‘o clima está bem melhor agora’”. Enquanto isso, mesmo fora do trabalho, ela continua a sofrer consequências psicológicas. 

Joana (nome fictício), uma artista visual de São Paulo, também passou por assédio em uma galeria de arte em que trabalhava no ano passado. “O proprietário da galeria desrespeitou profundamente a minha pessoa e o meu trabalho, inclusive usou várias palavras ofensivas e agressivas para colocar em dúvida a minha profissão, talento e capacidade de expor o meu trabalho em sua galeria. Chegou a afirmar que ‘meu trabalho não significa nada’ e que as exposições que realizei foram fracas. Também já havia chamado minha atenção desnecessariamente na frente de colegas”, diz a artista, que foi desencorajada por colegas a denunciar o caso. “O proprietário expõe a vida pessoal de todos os artistas para qualquer pessoa, brinca com coisas sérias, não respeita o tempo, estudo e pesquisa dos artistas. Eu gostaria que ainda pudesse fazer algo para que todo mundo soubesse”, completa.

Já Natália contratou um advogado, reuniu provas e avalia entrar na Justiça contra a produtora audiovisual para que o que aconteceu com ela não volte a acontecer com outras pessoas. “Enquanto eu estava sofrendo racismo, a produtora estava ganhando prêmios com um documentário sobre cultura negra. Enquanto eles faziam piadas transfóbicas e homofóbicas, eles estavam ganhando dinheiro com uma peça de teatro LGBTQIA+. Esses tipos de pessoas não podem deter os meios culturais mais”, lamenta.

Assédio sexual e o desrespeito aos corpos

Ministério Público do Trabalho/divulgação

Jane estava animada para uma oportunidade de trabalho imperdível: atriz de Niterói (RJ), ela foi convidada para fazer um teste de elenco para uma emissora de televisão. Mas a prova nem chegou a ocorrer. “Logo em seguida, recebi proposta de ir para a cama com o diretor. Ao negar, perdi também a oportunidade profissional antes oferecida”, revela.  

Em alguns espaços, ultrapassar os limites do privado quando se fala nos corpos dos artistas é algo até naturalizado. “Muitos casos vêm de colegas que usurpam os conceitos de corpo dentro de um processo em artes da cena e também o conceito de que as e os performers nessa arte estão livres de sexualizar a outra ou o outro”, aponta Ricardo Zigomático, que trabalha com artes cênicas em Porto Alegre. 

André (nome fictício), ex-ator e morador de Petrolina (PE), passou por uma situação semelhante quando fazia parte de uma companhia de teatro. “Permaneci no teatro durante todo o ano de 2015 e fui obrigado a fazer uma cena nu com outro ator também nu, onde o ator tinha que cuspir na minha cara. Eu dizia insistentemente que não queria fazer”. Depois da recusa, ele nunca mais foi convidado para trabalhar nem pelo diretor da companhia nem por colegas de outros grupos. “Hoje trabalho na feira vendendo lanche. Levei alguns anos em análise e com ajuda de remédios pude tratar desse assunto”, relembra. 

Diante dessa cultura, o assédio sexual e a violação aos corpos dos profissionais da cultura segue sendo um tabu no meio artístico. Muitas vezes, quando tentam denunciar abusos, as vítimas são alvo de deboche ou são isoladas por colegas, em especial diante de atitudes machistas e misóginas. O caso de Gisele (nome fictício) ilustra essa questão. A rapper estava participando de um programa sobre Hip Hop apresentado por um colega de profissão. “Após eu fazer fala sobre o machismo no hip hop, ele pediu a palavra e disse que” algumas mulheres ” estavam no movimento para fazer sexo com homens negros”.

Para a curadora de arte Luciara Ribeiro, que pesquisa relações de ética em ambientes artísticos, as instituições culturais ainda precisam avançar nas questões de ética trabalhista. Além disso, a classe artística, salvo exceções em algumas categorias, é pouco organizada em sindicatos, órgãos que historicamente atuam no auxílio jurídico em casos de assédio. “Não tem um sindicato dos curadores, por exemplo. Se acontece algo, como um assédio moral, que é muito normal dentro dessa área, você não tem o que fazer. Você adoece, porque todo mundo se conhece e tem uma prática de inibir qualquer reação que possa ser contrária aos desejos da instituição ou dos demais superiores”, diz.

Uma pesquisa realizada pela consultoria Think Eva em parceria com o LinkedIn revelou que 47,12% das mulheres entrevistadas revelaram ter sido vítimas de assédio sexual em algum momento. Neste contexto, a maioria das vítimas eram mulheres negras (52%) e mulheres que recebiam entre dois e seis salários mínimos (49%). O estudo também mostrou que as ações mais relatadas foram a solicitação de favores sexuais e o contato físico não solicitado pela vítima. Desde 2018, com a aprovação da Lei de Importunação Sexual (13.718/2018), práticas como o beijo à força e toques sem reciprocidade são consideradas crime passíveis de até cinco anos de reclusão.

Arte do Movimento Me Too (divulgação)

Mesmo com o surgimento de movimentos como o Me Too, que revelou casos de assédio sexual em Hollywood, o silenciamento ainda se impõe. A procuradora do MPT Adriane Reis acredita que o apoio coletivo é fundamental para romper essa cultura. “Nós temos alguns grupos que têm funcionado para recolher esse tipo de denúncia, como o Me Too, além de espaços como a ouvidoria da mulher no Conselho Nacional do Ministério Público. Também é possível reunir essas vítimas e fazer uma denúncia coletiva diretamente no MPT. Somente por meio da denúncia é que é possível transformar essa realidade”, comenta.

Como denunciar

O Ministério Público do Trabalho dá alguns exemplos de práticas e atitudes que configuram assédio moral, como passar tarefas humilhantes, ameaçar com demissão constantemente, criar apelidos depreciativos, falar com o empregado aos gritos e criticar a vida particular do empregado. Outros casos são mais velados, mas também caracterizam o assédio. “Isolar fisicamente o trabalhador no ambiente de trabalho, para que este não se comunique com os demais colegas, desconsiderar ou ironizar, injustificadamente, opiniões da vítima, e impor condições e regras de trabalho personalizadas ao empregado” são alguns exemplos.

Qualquer trabalhador que sofra discriminação ou assédio no trabalho pode denunciar o caso de forma sigilosa no próprio site do MPT. A procuradora Adriane Reis explica que não é preciso haver uma repetição dos atos para encaminhar a denúncia – que pode ser anônima -, mas que a vítima precisa coletar provas. 

“A vítima também pode procurar o sindicato e a auditoria fiscal para fazer esse tipo de denúncia. É importante ter um certo número de provas do fato, que podem ser desde testemunhas como provas documentais, mensagens, fotografias”, observa.

A partir da denúncia, o MPT investiga a veracidade dos fatos, analisa a gravidade e instaura um inquérito civil. “O MPT então chama a empresa ou empregador para adequar sua conduta nos termos da lei. Caso ele não queira fazer essa adequação, então nós ingressamos com ação civil pública”, complementa a procuradora.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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