Foto: Theo Tajes

A fineza cheia de sonoridades da Encruza: uma conversa com Kiko Dinucci

Texto: Claudia Tajes

Entrevista: Theo Tajes e Eduardo Reis

Fotos: Theo Tajes

Encruza, show que Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes, Thiago França e Gui Amabis apresentam nesta quarta-feira (24) às 21 horas, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, é – na realidade – um grande cruzamento de talentos, projetos e carreiras. No mesmo palco, os sete artistas revivem os projetos Metá Metá, Passo Torto e Sambas de Absurdo, além de passear por seus trabalhos solos. 

Nessa entrevista, o paulistano Kiko Dinucci, quatro discos individuais lançados, cantor, compositor, instrumentista e produtor de alguns dos discos mais importantes da música brasileira dos anos 2000, fala do encontro com os parceiros da Encruza, do que passou e das perspectivas. 

Pode esquecer o clichê de que São Paulo é o túmulo do samba. No trabalho da Encruza, o samba chega com tantas nuances e tantas sonoridades que quase dá para considerar uma releitura do gênero. Coisa fina para ouvidos não menos, em cartaz por uma única noite em Porto Alegre.

Como foi que a música, e a Encruza, entraram na sua vida?

Kiko Dinucci – Começou com as bandas de hardcore, em Guarulhos. Era uma coisa de bairro, sem pretensões artísticas. Tínhamos 13, 14 anos. Todo mundo tocava tudo, bateria, baixo, guitarra. A gente formava um monte de banda que ia mudando a formação e ia virando outras bandas, outro repertório. Aí comecei a encher o saco de rock de uma maneira geral, e culminou na morte do Kurt Cobain. Já não se sabia mais o que era independente e o que era mainstream. Tinha coisa com cara de alternativa, mas não era. Comecei a achar tudo igual. 

Eu já gostava de música brasileira, daí comecei a focar mais. Comecei a ouvir uma coleção que se chamava Música Popular Brasileira, da Abril. Vinha um vinil de dez polegadas dentro. Comecei a entrar de cabeça nesse repertório. Tinha as coisas mais antigas, Ismael Silva, Noel Rosa, Nilson Batista, Geraldo Pereira, Ary Barroso, Hermeto Paschoal, Tom Zé, tinha Jorge Ben, Roberto Carlos. Era metade dos anos noventa, eu comecei a frequentar uns pagodes, comecei a tocar melhor, a aprender o que era harmonia, tom, tonalidade, intervalos, a tirar a harmonia das músicas na hora, até de música que eu nunca tinha escutado. Eu morava em Guarulhos ainda, mas vivia em São Paulo. 

Em 1997, mais ou menos, eu descobri uma roda de samba aqui em São Paulo, na Zona Norte, e foi onde eu conheci o Douglas Germano. Comecei a andar com o pessoal da música, conheci as pastoras que cantam hoje comigo no (disco e show) Rastilho. Em 2005, eu comecei a tocar no Ó do Borogodó, onde eu conheci o Rodrigo (Campos). Começou a amizade ali, mas também era uma coisa que a gente se via de vez em nunca. No dia em que eu apresentei a Juçara (Marçal) pra ele, foi entrando num ônibus. Eu estava lançando o [disco] Padê com a Juçara e ele estava gravando o [disco] São Mateus

E a turma foi se cruzando.

Kiko Dinucci –  O Rômulo (Fróes), eu cheguei a ver no Ó do Borogodó, ele ia lá assistir às vezes. O Rômulo já tinha uma carreira, já tinha clipe. O Thiago (França) eu conheci no Ó do Borogodó também. O Rômulo teve essa sacada que ele, o Rodrigo e eu éramos uns sambistas diferentes. O (grupo) Passo foi fundado nesse clima, era um show de três compositores, aí depois começou a virar o Passo Torto, entrou o Marcelo Cabral, começou a compor também. 

A gente até tentou gravar uma vez nesse trio, uma demo. Deu tudo errado. O cara do estúdio falou “por que vocês não chamam um baixista pra fazer o chão do negócio?”. Por isso que no primeiro disco do Passo Torto, só tem os três. No disco seguinte, a gente botou só o Cabral pra fazer justiça. A Juçara talvez seja a que tem um percurso mais diferente. Ela estudava na USP, fez matemática, aí largou a Matemática, fez Jornalismo, completou o Jornalismo e fez Letras. Ela começou a cantar no coral da USP. A gente tocava muito juntos. Eu tinha meu trabalho solo, o Thiago e a Juçara trabalhavam no meu trabalho solo comigo. 

A gente lançou um disco chamado Metá Metá, não era um projeto, a gente ainda nem sabia o que era. Começou então uma época que parecia aquela história do hardcore lá do início. A gente mudava algumas peças e virava outras bandas. Isso fica muito claro na Encruza, é muito natural aquele repertório pra todo mundo. Rodrigo tocou em vários discos do Rômulo, Thiago também, o Cabral também ligou todo mundo. Tocava no Passo Torto, tocava com Rômulo, tocava com o Rodrigo. O Cabral sempre foi a argamassa que juntava as coisas. 

O Encruza (Foto: José de Holanda)

Encruza é um show praticamente inédito. 

Kiko Dinucci – A gente fez poucas vezes esse show. Uma vez foi no Auditório Ibirapuera, era Passo Torto e Metá Metá, passeando pelos trabalhos solos. A gente tinha a formação banda e a formação trio, com sax, violão e voz. E na formação trio é onde eu acho que o Metá Metá é mais Metá Metá. Muito mais livre, mais elástico. O show de banda era mais ruidoso, caótico. É interessante ver como esse show foi se desdobrando por vários projetos. Tem música do Encarnado, do Mulher do Fim do Mundo (álbum de Elza Soares). “Mulher do Fim do Mundo” foi onde tudo culminou. As pessoas não sabiam de onde tinha saído aquela sonoridade. É só ouvir Passo Torto que você vai sacar.

Mulher do Fim do Mundo foi um grande delírio, que talvez tenha levado a sonoridade de vocês para um público maior. E que delirou mesmo.

Kiko Dinucci –  Tanto o Passo Torto quanto o Metá Metá lançaram álbuns totalmente esquizofrênicos. Foi uma grande sequência. Hoje eu sinto todos mais isolados. Acho que aquela vontade de fazer tudo juntos ficou lá atrás. A gente ainda se relaciona muito e faz coisas juntos. Mas esse show da Encruza é uma comemoração de algo que aconteceu lá atrás. Você pega o disco novo da Juçara, Delta Estácio Blues, e tem o Thiago, Rodrigo e Rômulo, mas sinto que de uma maneira mais oculta. O Metá Metá não grava faz tempo. O Passo Torto a gente brinca que acabou. Uma hora a gente volta.

Parece natural e saudável que as coisas mudem.

Kiko Dinucci –  A coisa vai andando. Tinha uma época em que pensavam que a gente era uma panelinha. Que a gente só tocava entre a gente. Mas não é verdade, todos ali tocam com um monte de gente. Eu sempre gravei com um monte de gente. Eu trabalho muito com rap. É comum eu tocar com grupo de hip-hop, de rap. Eu sempre gostei dessa coisa de me embrenhar em outros lugares e conhecer gente nova. Mas fica muito esse papo de que a gente é uma panelinha, que não conversa muito com os outros. A gente não conversava porque as pessoas da nossa geração faziam um trabalho mais comercial, mesmo sendo de um cenário indie. Aí quando a gente conheceu a galera do Rio, a gente se identificou mais. O Negro Leo, a Ava [Rocha]. Tinha muita coisa radical no Rio de Janeiro nessa época. Então a gente se identificou muito com essa cena. 

Você tem quatro álbuns lançados, todos muito diversos, com diferentes tipos de instrumentos, e isso diz bastante sobre o teu trabalho. A escolha do instrumento acaba sendo uma opção estética?

Kiko Dinucci – É uma ferramenta. Eu não toco violão e guitarra direito, hoje em dia. Quando eu preciso criar alguma coisa que eu acho que é com guitarra ou violão, eu vou lá e estudo. Mas não tenho nenhum amor por nenhum instrumento específico. Eu vejo isso em algumas pessoas. Acho bonito, mas não é a minha vida. Eu não me considero nem músico. Me considero um cara metido a besta que fica mexendo nas coisas. Se colocam uma partitura eu já fico triste. As pessoas me chamam pra estragar os discos delas, quando o disco está muito careta (risos).  Aí eu levo umas máquinas, a guitarra e começo a envenenar o som. Por isso eu acho que é um disco muito diferente um do outro. 

O que você tem feito e ouvido nesses dias?

Kiko Dinucci – Vou fazer um disco com o [Fernando] Catatau agora. Aí são dois guitarristas fazendo um disco que talvez nem tenha guitarra. A gente gosta de música pop. Cada vez mais eu consigo enxergar o lado experimental da música pop. Comecei a sacar que o experimentalismo é uma expressão criativa e não necessariamente música de vanguarda. Se você ouvir o disco novo da Beyonce, vai ver que a base é totalmente experimental.  Uma frase de rap dos anos 80, com umas palavras separadas na MPC e sendo executada de maneira frenética, com ela cantando em cima. Pra mim é super experimental. 

Tenho curtido muito o Motomami, da Rosalía. É um disco com poucos elementos, isso eu gosto no pop também. O experimental é contemporâneo, não vanguarda. A gente ligava o experimental a ruído, dissonância, à vanguarda. Mas tudo que é diferente e explode por ser diferente é experimental. Michael Jackson, Madonna. A história do pop inteiro foi assim. O João Gomes, hoje em dia, é diferente de todos os outros piseiros. Ele traz o piseiro, a vaquejada, canta com a voz grave e ao mesmo tempo tem cara de criança. Tem um experimentalismo nisso, né? Uma tristeza, uma melancolia do forró mais romântico. 

E acho que isso tem tudo a ver com A Mulher do Fim do Mundo, que era um disco pop, não era uma Elza Soares sambista clássica, aliás, isso ela nunca foi, mas as pessoas a ligavam muito ao samba. A Elza sempre fez aquele samba swing, com baixo e bateria. Samba-jazz. Olhando hoje,  Mulher do Fim do Mundo é um disco pop, com elementos estranhíssimos e que pouca gente chamou de experimental. Isso é uma grande vitória, quando você faz um trabalho experimental e as pessoas aceitam porque é pop. Porque as pessoas já botaram um rótulo no nosso tipo de som. “Experimental, esquisito, espinhoso, esquisito”. 

E o rótulo de experimental acaba assustando geral.

Kiko Dinucci – O Delta Estácio Blues, da Juçara, eu acho um disco pop, de música eletrônica. Mas os programadores de festival têm medo, acham um disco muito atormentado. O Rastilho tem experimentalismo no violão, mas tem coisas ali super palatáveis, tem sambas. “Fui Batendo o Pé na Terra” é um samba rural, tradicional. Mas o pessoal acha atormentado. Quando o pop encontra o experimental e as pessoas não percebem, é interessante. Nos discos da Beyonce, Jay-Z, Tyler, The Creator. O Tyler tem horas que parece que está derretendo a música, vai ficando lisérgico. Ele canta um R&B, mas o fundo está derretendo. E ninguém chama de experimental. 

Tenho pensado muito sobre esse termo. Outro dia fui no show do Art Popular e achei muito experimental. Tem partido-alto, mas é em tom menor. Aí fica meio latino, jamaicano. Depois entra coisa de blues no meio, entra Olodum. E ninguém nunca chamou de experimental, a galera só dançou, porque não tem como ficar parado. E pra mim isso é experimentalismo, ele acontece no agora, ele é contemporâneo. Acho que é onde ele se difere da vanguarda. Eles até se encontram, mas o pessoal ouve o experimental agora e nem percebe que é experimental, principalmente o que vem de fora. Tem até uma certa síndrome de vira- lata aí.  De ouvir o disco da Beyoncé e aceitar aquela sonoridade, mas ouvir a gente e achar estranho.

Foto: Theo Tajes

Existem planos de gravar um álbum da Encruza?

Kiko Dinucci – Eu sempre fui contra, tinha que ter feito em 2012. Se fizer isso agora, vai ser um disco antigo. Eu não gosto de reviver uma época. Eu gosto de relembrar e fazer um show de vez em quando. O Rômulo teve a ideia de fazer uma coisa com músicas inéditas, mas acho que passou o tempo. Tinha que ter sido feito, no máximo, em 2013. Agora fica cada vez mais impossível, cada um tomou um rumo. Juntar todo mundo é fácil, o difícil é achar um assunto. 

Tanta coisa aconteceu com o Brasil depois, apareceu tanta coisa no cenário da música. Tem que entender o tempo das coisas. A gente teve a nossa época de frescor. O Metá Metá não grava há seis anos. A gente não tem assunto no momento. A gente não queria gravar um disco com baixo e bateria pra não ficar parecido com o M M 3, ou então gravar um disco só de trio, que poderia ficar igual ao primeiro. Aí a gente deixa de molho, faz um show de vez em quando, mas tocando música antiga, botando uma coisa ou outra nova. Aí fica aquele clima de instituição, de clássico. 

A Juçara está fazendo os shows do disco dela, amarradona, tocando uns eletrônicos. Aí o Thiago tem a Charanga, que é um rolê totalmente diferente. O Rastilho encontra o Metá Metá em alguns lugares, mas não é Metá Metá. O Rodrigo está fazendo uns pagodes. O Rômulo e o Rodrigo sempre tiveram mais suas carreiras solos. Ao mesmo tempo, o Passo Torto sempre foi um lugar de experimentalismo. Era desenhado, mas um desenho esquisito. As músicas chegavam prontas e a gente ia desmontando até estragar, de uma certa forma. O Encarnado é assim. A gente tirou todos acordes, foram só frases com a Juçara cantando em cima. Então, se você pegar o Encarnado e tirar a voz, você tem um disco instrumental. 

E essa sonoridade culminou no disco da Elza. Se você pegar o disco da Elza, são frases o tempo todo. Quando a Elza ouviu o disco, ela falou: esse disco vai dar trabalho. Porque o baterista, o baixista e o pianista sempre deram o chão pra ela sambar. Aí ela falou, “vocês tiraram o meu chão, vou ter que estudar. Vou estudar, voltar e comer essas músicas com farinha”. Ela prometeu e cumpriu.

A ideia inicial do disco da Elza era regravar algumas músicas, né?

Kiko Dinucci – Sim, a ideia era a de fazer releituras. Mas aí rolou a conversa de gravar um disco de inéditas. E ela disse que nunca tinha tido um disco de inéditas. E deu certo. Deu trabalho, mas deu certo. E ela não estava numa época boa, antes da Mulher do Fim do Mundo. A Elza tinha se acidentado, não estava mais andando. Na época, ela estava fazendo o show do Lupicínio Rodrigues, tocando nuns lugares menos bombados, ganhando pouco, num ostracismo danado. Aí ela se reinventou. Ela se reinventou várias vezes durante a carreira, mas a Mulher do Fim do Mundo foi muito bom pra ela. Ela pegou um público jovem. Foi bom pra todo mundo, as pessoas só não entenderam que era a Encruza ali no disco. Alguns entenderam, mas o público que gosta desse disco não entende que já tinha uns caras fazendo esse som há uns cinco anos. Mas quem cavocar, vai achar.

A gente falou bastante do passado, agora é aquela parte de falar do futuro.

Kiko Dinucci – A gente está numa época em que o mercado nos obriga a ficar produzindo conteúdo sempre, só que a gente tem lançado cada vez menos, já percebeu? O Rastilho é de 2020 e, na época, todo mundo falou sobre ele, dizendo que era o disco do ano. Hoje em dia parece que é um disco de 15 anos atrás. Mas a gente tá relax, todo mundo tranquilo. O Metá Metá continua tocando, Passo Torto não toca mais, mas de repente tem uma reunião. Acho que 2012 foi o frescor, o grande ano, que se desdobrou em outras coisas. Exatos dez anos atrás.

É legal olhar pra trás e ver tudo que a gente lançou, em torno de 25 discos. Discos em que todo mundo toca um no projeto do outro. Agora começam a ser relançados em vinil. Tem uma história ali, garantida. Causava muita confusão, às vezes a galera não conseguia acompanhar, já não sabiam mais que era um e o que era outro. Todo mundo pedia pra lançar mais devagar, com mais calma, pediam mais tempo pra assimilar. Hoje em dia é o contrário, pedem pra lançar mais coisas. A gente já fazia isso há dez anos. Agora que todo mundo tem que lançar correndo, a gente segurou. A gente é do contra mesmo, aí seguramos a onda um pouco. Mas a Encruza ecoa, a Encruza sempre ecoa no trabalho individual de cada um, independente do caminho que tomar.

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