Como sobreviver trabalhando com cultura? O pesquisador da UFRJ Gustavo Portella entrevistou profissionais do Rio de Janeiro que atuam em diferentes setores da cultura para identificar estratégias de sobrevivência dos trabalhadores. Mestre em cultura e territorialidade, ele tem investigado as relações entre trabalho e cultura, pensando temas como a informalidade, precarização, condição de microempreendedor individual e ação coletiva no setor cultural.
Os resultados da pesquisa foram apresentados na mesa de abertura do Enecult, o Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, que ocorreu no dia 11 de agosto, em Salvador. Dividindo a mesa com as pesquisadoras Liliana Segnini (UNICAMP) e Maylla Pita (Juntó Educação), Gustavo revelou que encontrou três eixos de estratégias conversando com os profissionais: o econômico, o sentimental/identitário e o de prevenção.
Um modo encontrado é a realização de atividades alternativas, fora da atuação profissional no campo da cultura, para completar a renda. Os relatos mapeados pelo pesquisador também trazem a questão afetiva e identitária como uma motivação frequente entre os profissionais, que, para além de seus trabalhos, realizavam projetos que promovem satisfação pessoal, mas que não são remunerados. A cultura aparece então, como um trabalho por amor à área ou pela dedicação a uma causa.
Por outro lado, muitos trabalhadores abrem mão de projetos pessoais ou de determinadas vontades, com medo de que no futuro não possam ter trabalho. “A ideia de prevenção cria, inclusive, um novo cálculo. São trabalhadores que estão pensando de forma intermitente, em temporalidades muito distintas, onde eu tenho trabalho por 3 meses, mas que talvez não tenha nos 3 seguintes”, explica Gustavo.
Os dados mostrados pelo pesquisador evidenciam a informalidade do setor da cultural. “De 2014 a 2018, existe uma diminuição do trabalho formal de 45% para 34,6%. Em contraposição, a gente tem o trabalho por conta própria se tornando a principal forma de contratação, de 32,5% para 44%.” Apesar disso, ele afirma que as pessoas não estão saindo do mercado cultural. Estão tendo suas formas de atuação modificadas.”
Na dissertação “Jovens Produtores à Procura de Trabalho: experiências, estratégias e perspectivas de futuro de produtores/as culturais como microempreendedores individuais na cidade do Rio de Janeiro”, defendida na UFF, ele estudou a sindicalização e organização dos trabalhadores da cultura. Agora no doutorado, Gustavo analisa dados para entender o panorama dos trabalhadores. “O acirramento da tensão entre trabalho e cultura não é um processo novo”, explica. “Há cinco, seis anos, víamos na imprensa que a cultura e o trabalho criativo eram os trabalhos do futuro, que não paravam de crescer. Mas quando a pandemia chega, a gente fala de ser o setor mais afetado”, questiona.
Profissão: artista
Um consenso entre os pesquisadores presentes foi o de que, muitas vezes, quem trabalha com cultura não é visto como profissional, fazendo com que as relações trabalhistas sejam raramente citadas. “A obra se revela, mas o trabalho que a elabora é quase sempre ofuscado por idealizações e pelo silêncio”, disse a pesquisadora Liliana Segnini da Unicamp.
A escassez de políticas públicas para o setor também foi abordada. Mesmo com a aprovação das Leis Aldir Blanc I e II, e da Lei Paulo Gustavo, eles lembram que a precarização é muito anterior à pandemia. “O trabalhador cultural tem suas especificidades. Ele tem que ser pensado em um sistema de seguridade e previdência social por suas características”, defendeu Carmen Lima. A professora explica que mesmo que o mercado já seja estruturalmente configurado por projetos temporários, isso não deveria ser sinônimo de precarização. Ela defende uma política de segurança social também para trabalho intermitentes.
Maylla Pitta, produtora cultural, refletiu sobre o tema da Mesa “Os novos desafios para o trabalhador da cultura”. Ela questionou o entendimento sobre quem são considerados artistas na sociedade. “Falamos muito pouco dos desafios sociais dos trabalhadores da cultura. Às vezes, a gente não considera o produtor rural, o sambador, a mestra da cultura popular enquanto trabalhadora da cultura. Tendemos a simplificar as condições de produção, criação e difusão desse lugar social”. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pretende dar reconhecimento aos mestres e mestras.
Idealizadora do Juntó Educação, projeto educativo de empreendedorismo em cultura, Maylla fala sobre a valoração dos produtos culturais. “O que se coloca na balança quando se dá preco para seu trabalho enquanto artista? O que você pondera para definir o preço final do seu trabalho como músico? Quais são os caminhos?”. Ela enfatizou a importância de capacitações que instrumentalizem os trabalhadores para aprenderem, por exemplo, o processo de inscrição em editais. “Escrever edital é trabalho. Pensar sobre o que você vai escrever é trabalho e a gente precisa falar sobre isso.”
Nas entrevistas feitas por Gustavo, o pesquisador relata que quase nenhum trabalhador conseguia projetar onde estaria dali cinco anos. A preocupação com as condições de sobrevivência, fruto do cenário incerto e “sazonal” do setor, foi pautada em todas as falas do debate. “Quando eu perguntava daqui a dez anos, a maioria achava engraçado, porque não conseguia nem pensar em 5 anos. Mas isso parece um tanto quanto absurdo, porque todos nós deveríamos ter o direito de pensar onde gostaríamos de estar no futuro.”