Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo

Artistas debatem direito ao aborto e expõem violência da criminalização

Entre páginas em preto e branco, aparecem imagens de objetos do cotidiano, como cabides e gravetos de árvores. Lugares, aparentemente comuns, também entrecortam o livro, como banheiros e salas de estar. Do início ao fim, aparecem retratos de mulheres de várias idades, alguns nítidos, e outros borrados. Todas olham frontalmente para a câmera. 

As imagens são do livro On Abortion (2018), de Laia Abril, fotógrafa e artista espanhola, que documentou os efeitos da falta de acesso ao aborto em diferentes países. Laia acompanhou pessoas que precisaram fazer o procedimento de forma insegura e precária. 

A narrativa do livro é não-linear e mostra a pesquisa da artista, que além de fotografias, também utiliza excertos de vídeos, publicidade, anúncios de jornais, documentos e imagens encontradas em arquivos. O projeto mostra que o problema atinge diferentes regiões geográficas e estratos sociais. O Brasil aparece no trabalho da artista, como um dos países em que há mais óbitos decorrentes de abortos clandestinos.

A obra integra uma investigação mais ampla, intitulada Uma história da misoginia, em que a artista discute como as opressões de gênero chegam aos dias de hoje. Para isso, divide a série em “capítulos”, em que, além do aborto, trata do estupro, do feminicídio e da menstruação. 

Laia Abril (On Abortion, 2018)

O aborto como tema de trabalho artístico na história tem sido trabalhado especialmente por mulheres cisgênero – foi tema de Frida Kahlo em 1936 – , mas as instituições de arte ainda têm dificuldade em reconhecer obras que tratam do assunto, mesmo com  retrocessos recentes na área dos direitos reprodutivos.

Segundo a OMS, um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019. Na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura. Por outro lado, é também na América Latina onde parece haver a maior efervescência de reivindicação do direito. 

Na Argentina, os movimentos nas ruas foram chamados de “Maré Verde”, em alusão aos panos verdes utilizados para simbolizar a luta. Em dezembro de 2020, o aborto seguro e gratuito se tornou lei no país. Este ano, a Colômbia, como fruto do movimento social e feminista “Causa Justa”, organizado no país, também descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação. 

Frida Kahlo, “El Aborto”, 1936

No Brasil, o aborto é legal em apenas três casos: quando a gestação põe em risco à vida da gestante; em caso de anencefalia fetal, que é uma malformação; e quando a gravidez é fruto de um estupro. Nessas circunstâncias a pessoa tem direito ao aborto legal e seguro através do SUS. Apesar de previsto na lei, desde 1940, nem sempre esse atendimento acontece. E quando acontece, pode vir acompanhado de violências do campo moral. 

Os dados sobre a insegurança do aborto, até mesmo nos casos previstos na lei, são imprecisos. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, uma a cada cinco brasileiras fez ou fará um aborto até os seus 40 anos. As estatísticas ajudam a entender que o aborto é uma realidade próxima e não distante. O que trabalhos artísticos como o de Laia fazem é aproximar as pessoas  a essas histórias, a partir de uma perspectiva também íntima, além de meramente informativa. 

A artista apresenta histórias que, cotidianamente, são ocultadas – por medo, tabu ou pela própria criminalização. Nas imagens do livro,  é possível ver desde roupas que vestiam, viagens que fizeram para poderem abortar de forma segura, remédios de indução do aborto, clínicas clandestinas, aos instrumentos de cirurgia, à tortura psicológica e ao julgamento moral que sofreram. Também há espaço para o texto, onde as mulheres retratadas relatam, em primeira pessoa, aquilo que viveram. 

A artista também joga, por vezes ironicamente, com o peso religioso dado ao assunto.  Além de um fotolivro, a obra é resultado de uma longa pesquisa sobre as implicações políticas, culturais e religiosas que repercutem na (i)legalização do aborto em diferentes países. 

Falar para mulheres, meninas e pessoas gestantes sobre seus direitos é um papel que não deve ser apenas dos sistemas de saúde, acredita a pesquisadora da UFRGS e artista Cristina Ribas. Para ela, a produção cultural e artística do país deve também pautar o aborto. “As artes têm a responsabilidade de fazer um debate público sobre essa trama complexa que está ao redor do aborto como direito de escolha. E como ter esse direito também expõe uma enormidade de condições que se colocam para as pessoas que gestam”, explica. 

Sair do privado 

Como nas fotografias de Laia, as mulheres retratadas por Paula Rego também olham para o espectador. Em um conjunto de gravuras, a artista portuguesa mostra o procedimento acontecendo em ambientes domésticos. A série foi criada após um referendo que pretendia retroceder com os direitos reprodutivos em Portugal, no início dos anos 2000. 

Paula Rego, 2000

Sempre sozinhas em quadro, as personagens pintadas por Paula têm seus corpos contorcidos, que parecem estar em angústia, dentro de ambientes pequenos e desconfortáveis. Paula Rego, uma artista branca que pôde frequentar escolas de artes plásticas, pretendia denunciar como o aborto acontecia precariamente, em especial nas classes trabalhadoras. No início de setembro, a série foi exibida no Armory Show, uma importante feira de arte de Nova York.

Levar essas obras a público, não só a espaços expositivos, mas também à rua, tem sido uma escolha de artistas que tratam do aborto em suas pesquisas poéticas. Espacio para Abortar é uma intervenção do coletivo Mujeres Creando, fundado na Bolívia em 1992. Segurando uma estrutura de metal, pessoas se movimentam em grupo pelas ruas de La Paz. A frase “Nem boca fechada, nem útero aberto” aparece bordada em um tecido de veludo, vermelho, que acompanha o monumento. Como um “útero ambulante”, o grupo caminha no que se confunde entre performance, manifestação e intervenção artística. 

O trabalho foi exibido na Bienal de São Paulo, em 2014, onde o coletivo propôs uma marcha no parque Ibiraquera. As estruturas de metal, envolvidas com um tecido vermelho transparente, serviam como “abrigo”, em que pessoas poderiam entrar e relatar memórias sobre a interrupção voluntária da gravidez. 

Coletivo Mujeres Creando, 2014(Foto: Mídia Ninja)

A ação levava o assunto à público, em um lugar de grande circulação de pessoas, e também permitia um espaço raro de escuta sobre essas vivências. Os relatos coletados de forma anônima puderam ser ouvidos depois no Pavilhão da Bienal, onde o público poderia fazer o mesmo movimento de “entrar” nas estruturas de metal que antes estavam no parque e escutar os relatos em fones de ouvido. 

Porém, alguns dias depois da abertura, o Instituto conservador Plinio Corrêa de Oliveira visitou a Bienal, filmou a marcha das mulheres e denunciou a obra do coletivo como “adulta”. A Instituição cedeu e colocou um tótem na frente recomendando a visitação apenas a maiores de 18 anos, mesmo após o protesto das artistas – que analisaram o ato como censura. A restrição impedia que meninas, adolescentes e escolas pudessem visitar a obra, o que é grave, em especial no Brasil, em que essa é uma preocupação também para esse público. Só em 2020, como mostra esse panorama feito pela Piauí, 642 meninas de dez a catorze anos haviam sido internadas no SUS para fazer um aborto. 

Em alto e bom som 

A Frente Pela Legalização do Aborto/RS (FrePLA) tem estado nas ruas de Porto Alegre com um carro que informa os casos em que o aborto é legalizado no Brasil e como agir. “Atenção: O Carro do Óvulo está passando na sua rua”, anuncia o auto-falante, que lembra os carros usados para o comércio. “Você sabia que o aborto é um direito?”. A ação acontece em diferentes bairros da cidade e também destaca os lugares preparados para acolher as mulheres gratuitamente e que, para serem atendidas, elas não precisam apresentar boletim de ocorrência. 

Cristina, que também participa da frente, considera o Carro uma intervenção artística. “A ideia está em uma borda, entre intervenção artística e uma intervenção militante da área da saúde pública. Preparamos uma rota junto a agentes de saúde e a pessoas que trabalham nos hospitais”, explica. “Dizemos que é uma intervenção artística porque o carro do óvulo vem quebrar a ideia de que um carro estaria na rua só para comercializar, como é o afiador de facas ou o carro do metal.”

Ana Gallardo, artista de Buenos Aires, trata do aborto a partir do material. Em uma escultura criada em 2000, e depois remontada diversas vezes, Ana expõe um amontoado de agulhas de tricô, um dos instrumentos utilizados por mulheres sem condições econômicas utilizam para fazer abortos, que são ilegais e clandestinos na Argentina. Em outra obra, exibe fileiras de talos de salsinha, outro método caseiro para o procedimento. Ela denuncia a insalubridade às quais essas pessoas são submetidas e a falta de preocupação da saúde pública. 

Ana Gallardo, 2000 “Material Descartável)

O título provocador do trabalho, “Material Descartável”, também indica a crítica que faz. “A violência da clandestinidade do aborto do aborto expõe um problema de hipocrisia de classe, de abuso econômico, de abuso das religiões e de violência do estado. Os objetos da vida doméstica chamam atenção para as relações de poder que se escondem por trás daquilo que chamamos de ‘vida privada’”, diz a artista sobre a obra que integrou a 12ª Bienal do Mercosul, em 2020. 

A relação que artistas como Ana e Laia procuram estabelecer com os objetos lembra o uso do cabide de arame, como ícones políticos, durante o movimento pró-choice, nos Estados Unidos, nos anos 70. Recentemente, o país viveu um retrocesso de direitos, quando a Suprema Corte devolveu aos estados a decisão do aborto legal. Desde 1973, a lei garantia o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação. 

Artistas e ativistas têm um papel importante na sensibilização da sociedade. Pensando nisso, a FrePLA/Rs vai realizar em Porto Alegre um festival que reúne arte e militância. “O aborto ainda é um tema ocultado nas praticas artísticas. Ainda é um tabu social, um assunto que ninguém quer tocar, que é tratado de maneira secreta, como se fosse privativo”, explica Cristina. “Precisamos debater e também pensar, como é este Brasil que a gente deseja no qual o aborto possa ser legal como direito de escolha para mulheres, meninas e pessoas gestantes”, observa. 

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Coordenadora de jornalismo do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.