Carolina Bataier*
Mestre Verino tem 90 anos e é um dos cirandeiros mais velhos de Paraty (RJ). Na juventude, ele trabalhava como servente de pedreiro e tocava ciranda caiçara nos bailes de roça. Tentou aprender viola e violão, mas se deu bem mesmo com o bandolim, instrumento que dedilha até hoje, acompanhando o som com versos que falam da vida rural, da pesca e de outras experiências presentes na história da região onde vive. Os aprendizados na música vieram da prática e das vivências com os colegas de ciranda. Em 2020, Verino teve Covid 19, passou dois dias internado e voltou para casa.
Com o mestre Julinho de Souza, também cirandeiro, o contágio foi fatal. Barqueiro e tocador de cavaquinho, ele morreu aos 70 anos, deixando saudades nos companheiros de música e de vida.
“Não dá para mensurar o tamanho dessas perdas, porque eram mestres importantíssimos para a ciranda de Paraty. Cada um tinha sua linguagem, a sua particularidade de tocar, cada mestre desses tinha versos diferentes”, avalia Fernando Alcântara, jovem cirandeiro da cidade. Além de acompanhar o trabalho dos mais velhos, ele faz parte do Grupo Cirandeiro de Parati, com outros jovens que buscam dar continuidade a essa tradição.
Alcântara fala no plural porque Julinho não foi o único cirandeiro que partiu recentemente. Em Paraty, outros cinco mestres morreram no período da pandemia, porém, nem todos por causa do vírus da Covid 19. Em alguns casos, como o de João Paciência, 68, tocador de pandeiro e adufe, há a suspeita de morte em decorrência das sequelas deixadas pelo vírus. Ele foi vítima de um AVC dias depois de se curar da Covid 19.
Na capital carioca, a Folia de Reis Penitentes do Santa Marta também sofreu com a perda de um mestre, vítima da Covid 19. Mestre Riquinho morreu aos 62 anos, quando assumia a função mais importante do grupo. Ele era o responsável por repassar, através da oralidade, o conhecimento sobre aquela tradição aos demais participantes, entoando os versos repetidos pelo coro ao ritmo do seu banjo.
“Depois dessa perda, a primeira coisa que a gente pensou foi em não sair mais com a folia, mas o próprio filho dele falou que o pai ia ficar muito feliz de a gente continuar”, lembra Ronaldo Junior, sobrinho do mestre.
Formada em 1955, atualmente, a Folia do Santa Marta tem 30 integrantes. Além de estar à frente do grupo entre os anos 2010 e 2020, mestre Riquinho foi um dos fundadores da Escola de Folia de Reis Mestre Diniz, que oferece oficinas de atividades ligadas à Folia de Reis para as crianças da comunidade do morro Santa Marta.
“Foi um baque muito grande, mas a gente viu que o melhor jeito de homenagear ele seria não deixar a folia morrer, senão tudo que ele construiu iria por água abaixo”, diz Junior.
Aos nomes de Riquinho e Julinho, somam-se outros mestres e mestras da cultura popular vítimas da Covid, em diferentes cidades do Brasil. Mestre Joel Menezes, um dos responsáveis por levar a capoeira para São Paulo tornando-se referência dessa prática no estado, morreu em junho de 2020, aos 76 anos. Em 2021, a capoeira também perdeu o mestre Luiz Paulo Lima, aos 61 anos, importante nome da tradição capixaba. No Sergipe, o mestre Deca, pioneiro do Cacumbi, manifestação cultural local, foi outra vítima da pandemia. Mestre Chocho e mestre Jaime, ancestrais de Pernambuco, também morreram por complicações da doença.
Em Santarém Novo, no Pará, o casal de mestres do Carimbó, Seu João Bernardo de Souza e Dona Ana Lopes Botelho de Souza foram vítimas da pandemia em 2020, aos 80 e 79 anos, respectivamente. Como legado, deixaram o grupo de Carimbó Trinca Ferro Mirim, formado por crianças.
“A relevância deles aqui na nossa cidade era muito grande, porque além de serem senhores moradores da minha cidade, filhos da terra, eles conheciam muito, eram ricos em cultura. Eles incentivavam jovens a sempre estarem praticando, fazendo as danças pra cultura não acabar”, lembra Vittor Fabrício, integrante do grupo Os Quentes da Madrugada – Carimbó São Benedito, do qual Seu Bernardo e Dona Ana também faziam parte.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), não existem dados quantitativos sobre a morte de mestras e mestres durante a pandemia. Em nota, o instituto informa que “por se tratarem de manifestações culturais intrinsecamente dinâmicas e com ocorrências por todo território nacional, não é possível identificar à exaustão o universo completo dessas práticas, tampouco mapear e localizar, de forma precisa, todos os detentores e seus grupos”.
Para quem acompanha essas manifestações, as perdas podem ser mensuradas de outras formas. De acordo com Jaqueline de Oliveira Silva, doutora em Antropologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), quando morre um mestre, se perde uma biblioteca. A frase é atribuída a uma sabedoria africana.
“Essa passagem de vários mestres e mestras que guardam diversos saberes que não estão escritos em nenhum lugar, formas de lidar com o mundo, jeitos de ver e de organizar o próprio conhecimento, isso se vai com as pessoas”, diz.
O fotógrafo Ratão Diniz acompanha e registra, desde 2005, diversas manifestações populares brasileiras. Em suas andanças pelo Brasil, ele fotografou a Folia dos Penitentes do Santa Marta, o Reisado de Caretas de Potengi, no Ceará, A festa do boi de máscara de São Caetano de Odivelas, no Pará, entre outras manifestações. Para Diniz, a figura dos mestres é importante na condução dos grupos. “Tem essa questão da oralidade, a importância do mestre para manter essa tradição, o modo de conduzir essa tradição”.
Silva e Diniz lembram que muitas dessas manifestações são mantidas e renovadas com a participação dos mais jovens. Contudo, a partida dos mais velhos reforça a importância de políticas públicas que valorizem esses conhecimentos e garantam a mestras e mestres condições materiais de se manterem saudáveis e atuantes para que possam repassar os saberes e preservar a memória das tradições.
A PL 1176/11, conhecida como Lei dos Mestres, traz entre as propostas a garantia de um auxílio financeiro de, pelo menos, dois salários mínimos para pessoas que reconhecidamente representem a cultura brasileira tradicional, de acordo com critérios do Conselho Nacional de Política Cultural. Enquanto segue em debate na Câmara dos Deputados – onde tramita desde 2011 – alguns estados, como Ceará e Paraíba, já aprovaram leis semelhantes como forma de valorizar mestres e mestras.
“O princípio dessas leis é que a pessoa não tem que fazer um produto, não tem um evento, um bem cultural específico, uma ação cultural específica para receber determinado valor. É pela vida dela, pelo que ela já faz. Entendendo que a existência daquela pessoa, o saber imaterial dela, já é uma garantia da continuidade da cultura como um todo”, explica Silva.
Embora seja procurado por alguns jovens da cidade, mestre Verino suspeita que ninguém mais em Paraty saiba tocar bandolim como ele. “Tem quem toca violino, tem cavaquinho, mas esse instrumento aqui não conheço mais ninguém, não”, conta, enquanto tira algumas notas do bandolim pintado com tintas coloridas e enfeitado com uma imagem de Jesus Cristo.
*Carolina Bataier (@carolbtr) é repórter e escritora, com interesse em temas ligados à cultura, sobretudo cultura popular e suas manifestações.