“O amor e as histórias fizeram parte da minha vida desde criança”, conta Sonia Rosa, escritora de literatura infantojuvenil há 34 anos. Seus ouvidos curiosos desde cedo captavam as conversas das mulheres de sua família enquanto penteavam seus cabelos. Sua mãe foi a principal referência de uma grande contadora de histórias que, mesmo sem livros em mãos, alimentava a imaginação e fazia Sonia criar intimidade com as palavras. No gesto de carinho e cuidado, a escritora entendeu desde pequena que contar histórias era uma forma de amor. E enxergar a si mesma nelas, ainda mais.
Em 1988, Sonia escreveu seu primeiro livro, O Menino Nito. O lançamento aconteceu alguns anos depois, mas ainda muito antes de haver no país a Lei 10.639 (2003), que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira. O Menino Nito, protagonizada por um menino negro, foi a obra que deu início a carreira de Rosa na literatura infanto juvenil e que abriu caminhos para os outros mais 40 livros que viriam depois.
Neste percurso, a literatura feita por Sonia recebeu um nome: literatura negroafetiva. Porque as histórias de seus livros trazem personagens negros protagonistas, em uma representação que ela chama de “positiva” e “afetiva”. Ela cria narrativas ilustradas por artistas diferentes em cada livro, que trazem situações familiares para abordar temas mais amplos da sociedade.
Em Zum Zum Zumbiiiiiiii (2020) , ela conta a história de uma mãe que está fazendo bolo, enquanto o pai brinca de pião com o filho. Enquanto ele assa, a mãe está com a criança no colo e explica o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. As cenas cotidianas aparecem em outros, como em seu livro Enquanto o almoço não fica pronto (2020), ilustrado por Bruna Assis Brasil, que conta a história de uma família negra conversando em casa, enquanto aguarda o momento da refeição.
Entre as várias participações em eventos literários do país – incluindo uma homenagem a ela na Festa Literária das Periferias (Flup), Sonia participou da Feira do Livro de Porto Alegre, com a conferência “A urgência da representatividade negra na Literatura Infantil: reflexões e referências”. Na sala lotada, no Espaço Força e Luz, e uma plateia formada por professores vindos de diferentes partes do Estado, Sonia direcionou sua fala ao diálogo entre literatura e educação. Ela, que também é professora há 30 anos, e mestre em Relações Étnicos Raciais, falou da importância da literatura com representatividade negra já na primeira infância.
Sonia acredita que a inserção de literatura nas escolas – públicas e particulares, ela reforça – é uma forma de enfrentar o desconhecimento sobre a pauta racial. “Os livros formam mentalidades – todos eles”, comenta Sonia. Ela enfatiza que o combate ao racismo deve ser uma responsabilidade diária, dos educadores e da comunidade escolar. Os livros podem ser aliados, ao trazerem novas representações, positivas, afetivas, com protagonistas negros e negras.
Depois da palestra, a autora se dirigiu para o Teatro Carlos Urbim, onde o público aguardava ansiosamente. Seus leitores, de 7 a 10 anos, saíram da região metropolitana de Porto Alegres para ouvir a autora contar pessoalmente suas histórias. Eles já tinham lido vários de seus livros, como “Os tesouros de Monifa” (2008), “Como é bonito o pé do igor” (2008) e “O tambor de crioula” (2020). As crianças completavam as falas de Sonia, reproduzindo os sons (o tum tum do tambor) e completando “como é bonito?” – perguntava Sonia. “O pé do Igor”, respondiam em coro.
Fizeram fila quando o microfone ficou aberto para perguntas à autora. Tinham dúvidas sobre os livros, mas principalmente sobre a vida da escritora. “Como faz para ser escritor?”, perguntou uma aluna. Sonia falou que tudo começava com a leitura, com ser amiga dos livros. “Que horas você faz os livros?”, outra perguntou. Ela respondeu que geralmente escreve pela manhã, é quando se sente mais disposta.
A criança que perguntava balançava a cabeça atentamente, como quem guarda uma informação importante, mas logo voltava para o final da fila para perguntar outra vez. “Você vai fazer uma parte dois do Monifa?”, “Por que o Nito construiu um muro, será que ele tinha muito choro guardado?”, “Por que o pai da Monifa não aparece no livro?”, foram dúvidas que vieram na sequência.
A presença da escritora ali para os alunos parecia ser um momento de identificação não só com os personagens dos livros, mas com a própria escritora. Uma das crianças disse no microfone: “Não é uma pergunta, mas queria te avisar que seu sobrenome é Rosa e o meu nome é Rosa.” Sonia, com o sorriso que lhe é característico, respondeu que seu nome era, na verdade, ainda maior e aproveitou para contar outras histórias sobre sua família.
Avanços Irreversíveis
O livreiro Antônio Schimeneck observa que a presença de livros com temáticas étnico-raciais é cada vez maior. Desde 2011, Antônio está à frente da distribuidora Ama Livros e percebe que a procura por histórias com protagonismo negro também é maior nos últimos anos. “Muito se mudou nos catálogos infantis e juvenis quanto a questão de representatividade”, comenta. “Hoje, nós temos muito mais livros abordando a africanidade, as questões indígenas. Antes, a maioria das representações eram feitas por autores brancos. Acredito que esse é um caminho irreversível, que só vamos avançar.”
“A diversidade é importante, não só para que as crianças se vejam representadas, mas também para que quem não se vê, entenda que exista essa diversidade. Às vezes a gente escuta que não precisa dos livros por não ter alunos indígenas na escola, mas daí pergunto: “E o mundo não tem?”. O que Antônio aponta é também o que Sonia traz ao dizer que seus livros são para todas as crianças.
O trabalho de letramento racial, afirma a autora, deve e pode ser feito já na primeira infância e mesmo os adultos podem se beneficiar das histórias contadas para as turmas. “O racismo deforma as infâncias e ele é fortalecido pelo cotidiano escolar.” Ela defende que a importância de se ver representado nas histórias está em desde cedo, aprender uma auto-estima, poder gostar de si.
“A literatura infantil pode ser um letramento racial, porque todo mundo educa, todo mundo sabe. O nome da mesa, ‘a urgência da representação’, quer dizer que tem um caminho. A saída são os saberes ligados à racialidade que a gente tem que se apropriar para proteger todas as infâncias. Para não magoar as infâncias”, finaliza.