Olivio Jekupé e Jovina (Foto: Diego Lopes/Feira do Livro de Porto Alegre)

Literatura indígena se consolida com escrevivências e ideias para (re)pensar o mundo

A musicalidade sempre esteve presente na vida de Auritha Tabajara. Sua avó é declamadora; seus tios, repentistas; seu avô, que era vaqueiro e cantada toadas, viria a inspirar sua carreira de escritora anos depois. “Era daquela forma que eu queria falar com o povo, do jeito que meu avô falava com o gado”, diz. 

Foi com as rimas que a escritora cearense aprendeu a ler e escrever. Depois de ser alfabetizada em casa, ela foi matriculada em uma escola regular aos 9 anos. “Eu era a única menina indígena em uma escola regular. Ninguém gostava das minhas rimas. Mas mesmo assim, eu não desisti de fazer o que eu queria”, lembra a autora de Magistério Indígena em Verso e Poesia (2007) e Coração na aldeia, pés no mundo (2018).

Auritha Tabajara (Foto: Eduardo Fernandes/Feira do Livro de Porto Alegre)

Hoje, Auritha é cordelista e uma das principais autoras indígenas do país, ao lado de nomes como Eliane Potiguara, Graça Graúna e Julie Dorrico. “A literatura escrita pelos povos indígenas não começa escrita no papel. Começa escrita pelos nossos ancestrais, através dos nossos grafismos, dos nossos corpos”, explica a autora, que participou de uma mesa de autores indígenas no sábado (5), na Feira do Livro de Porto Alegre. Ao lado de Daniel Munduruku, Jovina Renh Ga e Olivio Jekupé, ela falou sobre os rumos da cena literária atual e do protagonismo dos povos originários na pauta ambiental.

A literatura de autoria indígena vive um período de consolidação na cena editorial do país, impulsionada por novas publicações e pela inserção nos festivais literários.  Um dos nomes mais celebrados da área é o do veterano Daniel Munduruku, que vê com otimismo esse momento. “A sociedade está se abrindo para reconhecer essa presença qualificada. Indígenas estão presentes nos eventos literários, inclusive com alguns autores fazendo parte da curadoria do evento, o que mostra que os povos indígenas têm muita coisa para oferecer à sociedade”, avalia.

Autor de mais de 50 livros e doutor em Educação pela USP, Daniel atribui às políticas públicas de inclusão das últimas décadas o maior protagonismo dos parentes em diferentes áreas. “Por muito tempo, fomos escondidos da arte brasileira. Só valia quando alguém falava por nós, quando alguém nos representava”, relembra. 

“Hoje em dia, graças às políticas e oportunidade que foram oferecidas aos povos indígenas, estamos nos qualificando para conversar com a sociedade brasileira, mas sem abrir mão de ser quem nós somos”, diz o autor de Histórias de Índio (1996) e Minha utopia selvagem (2022) , celebrando a criação do Ministério dos Povos Originários no governo Lula 3.

Auritha Tabajara, Jovina Renh Ga, Olivio Jekupé e Daniel Munduruku (Foto: Eduardo Fernandes/Feira do Livro de Porto Alegre)

O paranaense Olivio Jekupé, ex-colega de Daniel na USP durante os anos 1990, destaca a importância de os indígenas escreverem suas próprias histórias. “Falam dos povos indígenas desde 1500 e é um absurdo, eles chegam na aldeia e continuam perguntando se a gente come gente. Estamos procurando até hoje esse “Guarani” que o José de Alencar escreveu, não sabemos de onde ele veio”, critica o autor guarani, que já publicou livros como O Saci Verdadeiro (2000) e Literatura Nativa em Família (2020).

Ele conta que sofreu preconceito quando começou a escrever e até hoje escuta comentários de que a literatura nativa colocaria em risco a oralidade dos povos. “A oralidade a gente não perde, ela continua. E a gente precisa ter livros para que eles cheguem nas aldeias e os professores usem para ensinar as crianças. Depois de tantos anos de massacre, a gente ainda precisa conscientizar nosso próprio massacrador, por isso nossa literatura é importante”, explica.

Daniel e Olivio são dois dos muitos nomes que abriram caminhos para a nova geração, incluindo autoras como Auritha, Lia Minapoty (do povo Maraguá), Márcia Kambeba e Jovina Renh Ga, Kaingang e esposa de Olivio. O casal está lançando em conjunto um livro sobre a casa de passagem indígena de Curitiba e prepara lançamentos sobre a Marcha das Mulheres Indígenas e sobre a pandemia de covid-19. As obras têm em comum o fato de documentar lutas recentes do movimento indígena no país. “Se a gente não lutar pelo novo povo, seremos sempre rebaixadas [pelos brancos]”, diz Jovina.

Para Auritha, essa diversidade – de autoria e de temas – não é importante apenas para os não-indígenas, mas também para que os diversos povos originários gerem conhecimento sobre si e para si. “Somos mais de 300 povos no país e eu não conheço todas as culturas indígenas”, comenta.

Obras documentam temáticas urgentes e propõem soluções 

O autor Daniel Munduruku (Foto: Diego Lopes/Feira do Livro de Porto Alegre)

Da literatura infantil à não-ficção, as temáticas abordadas na cena literária indígena na última década ganham cada vez mais relevância à medida que o mundo vai acordando para o protagonismo dos povos originários na necessidade de repensar novos modelos de vida.

Na última década, o Brasil viu lançamentos marcantes, pautados pelas diferentes cosmologias, que abordam temas como a destruição do meio ambiente e as contradições do capitalismo, como A Queda do Céu, de Davi Kopenawa (2015) e Ideias para Adiar o Fim do Mundo, de Ailton Krenak (2019). O livro mais recente de Daniel Munduruku, Minha utopia selvagem, contribui com as discussões ao fazer um manifesto pelo bem viver, defendendo que o modo de vida e a coletividade dos povos indígenas são a resposta para a crise socioambiental que vivemos.

Para Daniel, uma particularidade da literatura de autoria indígena é a conexão direta com o pertencimento à natureza. “Na tradição indígena, sempre foi ensinado que somos um fio nessa teia da existência. Aquilo que abala um único fio abala a teia inteira. Na natureza, nós, humanos, somos os seres mais incompletos”, observa. 

Ele aponta que essa incompletude é um sentimento que gera na sociedade a ideia de desenvolvimento desenfreado. “A gente vai criando instituições, estados, empresas, que vão detonando o ambiente que a gente vive, com uma ideia de que nós precisamos ser felizes e de que a felicidade está ligada ao que acumulamos na vida”, diz. 

“Existe uma incompreensão que as pessoas têm de nós indígenas estarmos dominando as plataformas, as tecnologias”, ressalta. “Embora tenha pessoas que digam que somos do passado, nós somos do presente. Nós estamos comprometidos com esse país, com o destino que esse país está construindo para si. Talvez o Brasil ainda dava para os povos indígenas o reconhecimento de que lutamos bravamente para manter os territórios intactos para todos nós”, reflete.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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