A infância como ferramenta de construção: uma conversa sobre a Cidade das Crianças

Amanda Bernardo*

Carros, carros e mais carros. Pedestres dividindo espaço com ciclistas. Brincar? Somente dentro de casa ou na pracinha do condomínio. A lógica das cidades mudou com o passar dos anos — e não houve grupo social que não tenha sido impactado. É nesse cenário, entre uma brincadeira no balanço e alguns brinquedos espalhados pelo quarto, que estão as crianças: desatendidas e insatisfeitas com a cidade.

É o que o pedagogo italiano Francesco Tonucci propõe mudar com a Cidade das Crianças, proposta da qual faz parte o arquiteto e urbanista Alencar Massulo, 42, para realizar projetos de (re)construção de bairros e cidades.

Alencar atua como arquiteto na cidade de Osório, litoral norte gaúcho. Lá, a Cidade das Crianças já virou pauta para a elaboração do novo Plano Diretor Municipal e atividades com mais de 400 crianças do município foram desenvolvidas. Os pequenos também têm sido consultados para reformas nas escolas. Confira a entrevista:

Por que uma cidade amiga da criança é uma cidade boa para todos?

Alencar Massulo  —  Quando a gente coloca o olhar nas reais necessidades da criança — seja na primeira infância, seja ao longo da infância, da pré-adolescência ou da adolescência — e aplica nos projetos urbanos junto com elas, essas necessidades se transformam em cidade. As crianças precisam de acessibilidade, de segurança, de salubridade, de ambientes agradáveis, de contato com a natureza e de um lugar onde elas consigam brincar e interagir de uma forma sadia. A partir desse conceito, é uma cidade que vai ser boa para o adulto, para o idoso, para os animais de estimação, para um comércio, para um serviço… Porque as pessoas vão estar na rua, se apropriando dos espaços públicos, percorrendo as calçadas e cuidando desses espaços, preservando aspectos naturais. 

E a gente percebe que dentro de todo esse discurso o carro nunca é central. É sempre um complemento, funcionando como mobilidade urbana pontual, porque o centro da necessidade da cidade é um espaço para que a criança possa brincar. 

Qual a tua definição de espaço público que atende e é atraente para todas as gerações? O que esse espaço deve oferecer?

Alencar Massulo —  Os espaços que servem para as crianças — considerando espaços públicos, não espaços específicos para criança — precisam ter acessibilidade. Porque as crianças têm uma estrutura menor e precisam acessar o mobiliário urbano, de espaço livre para correr, que a iluminação seja na altura mais baixa do pedestre, que a rua seja bem sinalizada, que as passagens de pedestres sejam mais seguras. Todos esses artifícios de projeto urbanístico são refletidos positivamente para qualquer outra pessoa. O que é mais legal disso tudo é que esse tipo de projeto acaba automaticamente sendo inclusivo. Ele também vai precisar, por exemplo, que o pavimento seja antiderrapante, livre de obstáculos e que não ofereça perigo.

Ainda, essa abordagem de pensar o espaço que é coletivo é exatamente o oposto da segregação. A segregação é pensar um espaço inteiro e reservar um cantinho para Espaço Kids. Assim, a gente vai para outros lugares: como o restaurante também pode ser legal para a criança ao mesmo tempo? Será que a altura da mesa está correta? Se a gente começa a levar esses conceitos para outros lugares de uso coletivo, automaticamente esses espaços começam a prestar atenção em outras coisas que antes não se percebiam.

Como tu enxerga e entende esse processo de escuta das crianças? 

Alencar é arquiteto na iniciativa pública. (Foto: Juliana Bonamigo)

Alencar Massulo  —  Tem sido libertador para os meus projetos e para as minhas atitudes como urbanista no serviço público e gestor da cidade. Eu já participei de escutas on-line e oficinas presenciais, já recebemos materiais como desenhos, textos e vídeos.

Citando dois exemplos de situações práticas: a elaboração do projeto de uma escola em Osório, que vai ser demolida e vai se construir uma nova. As crianças opinaram sobre o projeto — desenharam, escreveram e fizeram vídeos sobre como elas imaginam que pudesse ser a escola delas. E a partir do que elas nos forneceram de material a gente elaborou aquilo que o projeto precisava contemplar. O que mais aparece nesses materiais é justamente os espaços em que elas podem estar juntas: da brincadeira, do pátio, ambientes livres e salas multiuso… e [as crianças] não foram direcionadas para isso, foram com liberdade para opinar sobre.

O segundo exemplo que para nós é fantástico é a participação das crianças na revisão do Plano Diretor. Fizemos 17 oficinas em todas as escolas da rede municipal de Osório, com quase 400 crianças de idades, localidades e realidades sociais diferentes, convidadas a pensar: o que vocês gostam da cidade? O que vocês não gostam da cidade? E se vocês pudessem oferecer alguma ideia, qual seria? Somando todos os textos, vídeos e desenhos que citam espaços públicos e abertos, temos 34% de ocorrência. Isso foi muito simbólico e significativo porque serviu para montarmos o diagnóstico da cidade em conjunto às informações técnicas. O material foi apresentado como obrigatório para que o Conselho do Plano Diretor elaborasse as alterações do Plano.

Muito legal o envolvimento das crianças. Ainda sobre isso, na prática, o que vocês têm feito de atividade?

Alencar Massulo  —  O que a gente tem feito na prática surge das demandas do dia a dia da prefeitura. Nós estamos com um projeto de reforma no pátio de uma escola, então nós conversamos com as crianças para entender o que funciona para elas. Temos oficinas nas escolas para conversar com as crianças sobre como elas enxergam a cidade. 

Cada cidade vai entender qual o melhor caminho para aplicar o projeto e, nesse caso, nós estamos começando pelas demandas corriqueiras. Osório ainda não é oficialmente uma Cidade das Crianças, então nós estamos fazendo essas atividades prévias. Os resultados já são muito legais porque mudam a perspectiva de um projeto e orientam o olhar de quem trabalha para perceber o que antes passava anonimamente.

Tu citou a questão dos restaurantes e também do plano diretor. Como tu enxerga os papéis da esfera pública e da esfera privada em relação à Cidade das Crianças?

Alencar Massulo  —  A parceria com a iniciativa privada é super bem-vinda, porque, como cada município vai adaptar as diretrizes do projeto à sua realidade, pode ser interessante a possibilidade de contar com a participação das associações comerciais. Isso pode estar conectado ao projeto porque um dos carros-chefes é a iniciativa de que as crianças podem ir a pé para a escola. Nesses casos, é mapeado o percurso de um conjunto de crianças até a escola para que possam ir a pé. Assim, em algumas cidades existem estabelecimentos comerciais que são os amigos das crianças, que têm um selo na sua fachada indicando que a criança tem um ponto seguro  —  se ela precisar ir ao banheiro, usar o telefone ou resolver qualquer problema — , ela sabe que pode entrar ali. Cria uma conexão entre público e privado e essas empresas que ficam no caminho podem tentar melhorar a sua calçada, a sua fachada, a sua esquina, para que fique mais seguro, agradável e acolhedor. 

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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Editoria de cultura da Beta Redação - Agência de jornalismo experimental da Unisinos