“A lei norte-americana não protege nossos pintores, escultores, músicos, autores ou cineastas contra a distorção de suas obras, que pode arruinar suas reputações. Se algo não for feito agora para definir claramente os direitos morais dos artistas, as tecnologias atuais e futuras irão alterar, mutilar e destruir para as futuras gerações as sutis verdades humanas e os mais altos sentimentos humanos que indivíduos talentosos de nossa sociedade criaram. (…) Aqueles que alteram ou destroem obras de arte e nossa herança cultural visando o lucro ou mesmo como um mero exercício de poder são bárbaros – e se as leis dos Estados Unidos continuarem a permitir este comportamento, a história certamente nos classificará como uma sociedade de bárbaros. (…) Estes vandalismos atuais são apenas o começo. Hoje, engenheiros com seus computadores podem adicionar cores a filmes em preto-e-branco, modificar a trilha sonora, aumentar o ritmo e adicionar ou subtrair material que atendam aos gostos filosóficos do detentor dos direitos autorais. (…) Logo será possível criar um novo negativo ‘original’ com quaisquer alterações que o detentor dos direitos autorais deseje.”
Acredite se quiser, as palavras acima são trechos de um discurso proferido por George Lucas diante do Congresso dos EUA em 1988. Voltarei a elas a seguir.
Mesmo com obras em 3D lançadas antes de Avatar (2009), é difícil negar a influência de James Cameron na popularização do formato. Após o lançamento do filme, surgiu uma autêntica febre pelo 3D, o que levou a apressadas conversões de qualidade duvidosa de blockbusters filmados de forma convencional. O público logo notou que estava sendo enganado, pagando um bom dinheiro a mais para ver algo que passava uma impressão de profundidade similar a um livro infantil pop-up. James Cameron, responsável por Avatar, foi um dos primeiros a criticar tais conversões mercenárias, cujo apelo em pouco tempo se esvaiu e, felizmente, estão sendo cada vez menos empregadas – ao menos para os novos lançamentos.
Infelizmente, o próprio Cameron defendeu a conversão de clássicos como forma de apresentá-los às novas gerações de cinéfilos. O cineasta não economiza nas citações ao esforço que fez para fazer de Titanic uma experiência genuinamente tridimensional. Ao que parece, a ideia do cineasta tem dado resultado: desde 2011, filmes da década de 1990 tem sido reexibidos na tela grande e gerado bons resultados nas bilheterias: Toy Story (1995), Toy Story 2 (1999), O Rei Leão (1994), A Bela e a Fera (1991) e Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma (1999) foram apenas os primeiros. Entre os relançamentos dos próximos meses, Jurassic Park (1993) já está na fila para 2013; a Disney anunciou a conversão de A Pequena Sereia (1989); a Pixar promete Procurando Nemo (2003) para o próximo mês de setembro e Monstros S.A. (2001) para janeiro; e, logicamente, George Lucas pretende arrancar mais dinheiro dos fãs na continuidade de sua saga espacial.
Pergunta óbvia: tais conversões não são o mesmo exemplo de “barbarização” acusado por Lucas em seu sensato discurso? Por mais que James Cameron ostente o investimento e o tempo empregados para o relançamento de Titanic em 3D, nada muda o fato de que a concepção visual do filme foi deturpada. Não é diferente da dublagem ou da colorização de filmes em preto-e-branco feita no passado. Não por acaso, piadas sobre as conversões vêm se multiplicando na Internet*, ressaltando o fato de que o interesse principal dos cineastas e estúdios é arrancar alguns trocados fáceis dos espectadores.
Então, por que o público segue financiando esse processo infame? Simples: porque ama esses filmes. Acredito que a restauração de grandes filmes para relançamentos comemorativos é uma ideia admirável e que deve ser estimulada. Nem a maior TV Full HD conseguirá emular uma projeção em 35mm numa cinema – além do fato óbvio que uma restauração sairia bem mais barata para ambos os lados. Assim como o George Lucas de 1988, não tenho o menor interesse em ver Chaplin ou Gene Kelly destacados do fundo do quadro – mas adoraria conferir produções como Luzes da Cidade ou Cantando na Chuva na telona (para citar apenas dois exemplos). Isso resume o “interesse artístico” dos relançamentos.
Pior ainda, a insistência nas conversões é algo que só atrapalha o desenvolvimento de uma linguagem visual própria para o 3D.
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Qualquer um que tenha crescido na década de 90 lembra das meninas de todas as idades suspirando por Leonardo DiCaprio e da repetição incessante de “My Heart Will Go On” nas rádios. Apesar do desnecessário 3D, revisitar Titanic com um ponto de vista mais maduro é uma experiência gratificante – não apenas pela escala grandiosa da obra, mas também pelos detalhes menores empregados por James Cameron, que podem passar despercebidos por quem vê o filme meramente como uma tragédia acompanhada de uma clássica história de amor impossível.
Quem teve a oportunidade de visitar a exposição sobre o Titanic que passou por Porto Alegre no ano passado certamente constatou que o perfeccionismo de Cameron não foi em vão. São conhecidas as histórias da obsessão de Cameron, que fez questão de procurar as mesmas empresas que decoraram o navio para trabalhar no filme e mandou construir uma réplica quase do tamanho do navio original, além de empregar atores que se parecessem com as figuras reais da história, como a sufragista Molly Brown (Kathy Bates) e o capitão Edward Smith (Bernard Hill). Mas seu cuidado não se aplica apenas nos aspectos físicos, já que Titanic traz, ao longo da primeira hora e meia, uma fascinante reconstituição de uma sociedade européia típica da década de 1910. Mesmo com os padrões elevados do navio (na vida real, muitos passageiros mais pobres acharam que tinham entrado em alojamentos da 1ª classe por engano), as divisões de classe e gênero se mostram fortíssimas nessa época pré-Primeira Guerra Mundial. Empregar tanto tempo nesse retrato mostra-se tão importante para o sucesso da narrativa quanto o romance entre Jack e Rose.
Assim, quando a longa e excepcional sequência do naufrágio toma conta da tela, sofremos junto com os passageiros por sabermos que a lógica da sobrevivência será regida pelo dinheiro. É por isso que a sequência mais memorável e dramática do filme não envolve mortes ou ação frenética (e nem mesmo o destino do casal principal, na minha opinião), mas a cena em que a orquestra executa a triste “Nearer, My God, To Thee” enquanto acompanhamos os “dispensáveis”: diferente do que acontece na maioria das vezes, aquelas pessoas se encontram numa situação em que não há alternativa que não seja pensar no fim iminente. São momentos como esse que estabelecem Titanic como um clássico, mesmo com seus clichês e ocasionais momentos embaraçosos (“I’m the king of the world!”).
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Voltando ao 3D: esta semana, Peter Jackson exibiu no CinemaCon, em Las Vegas, algumas cenas de O Hobbit: Uma Viagem Inesperada. Além do esperado 3D (genuíno), Jackson prepara uma surpresa: o filme está sendo rodado a 48 fps (frames per second), o dobro dos tradicionais 24 fps, o que proporcionará imagens ainda mais realistas. A técnica dos 48 fps é defendida por Roger Ebert, crítico do Chicago Sun-Times e um notório detrator do 3D. A novidade dividiu a opinião dos presentes: foi ressaltado que o formato é impressionante, mas muito diferente do cinema como estamos acostumados, lembrando mais uma TV Full HD. Resta esperar até 14 de dezembro para ver se a novidade dará certo.
* Os vídeos satirizando os relançamentos em 3D podem ser vistos aqui, aqui (sobre Titanic) e aqui (sobre Star Wars: Episódio I).