Escultura A Justiça sendo cuidado por equipe de restauradores (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Restauradores se mobilizam para recuperar patrimônio cultural vandalizado por golpistas

*atualizado em 10/1 para incluir informações do Senado

O Governo Federal, o Supremo Tribunal Federal o Congresso Nacional iniciaram os processos de restauro dos prédios que foram danificados por radicais terroristas na tarde de domingo (9), em Brasília. O conjunto arquitetônico da Praça dos Três Poderes, bem como toda a cidade, é tombado como patrimônio mundial da humanidade pela Unesco. Além da estrutura dos prédios, diversas obras de arte foram vandalizadas.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, se manifestou na manhã desta segunda (9), condenando os atos. “O mundo assiste, estarrecido, à violência do terrorismo de extrema direita contra o estado democrático brasileiro. A dilapidação do patrimônio público e da consciência livre do nosso povo não será tolerada”. Em reunião com a ministra e com o Iphan, a Unesco se dispôs a ajudar na recuperação do patrimônio. Foi definida a criação de um grupo interinstitucional para, primeiramente, produzir um relatório dos danos.

O Palácio do Planalto realizou um levantamento preliminar das obras depredadas, e agora deve encaminhar uma perícia especializada para continuar os trabalhos. O caso de maior notoriedade é o quadro “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, perfurado sete vezes com faca. A peça, que está localizada no Salão Nobre, tem valor estimado de R$ 8 milhões. Já a escultura em bronze “O Flautista”, de Bruno Giorgi, foi completamente destruída, informa a secretaria de Comunicação da Presidência. Outra escultura, feita em madeira pelo artista Frans Krajcberg, também foi quebrada. O valor de ambas é avaliado em cerca de R$ 300 mil.

“O que a gente encontrou lá é algo bastante triste, é algo bastante difícil de se ver, principalmente para quem se relaciona com o patrimônio”, avalia o diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho, em relato por áudio logo após a perícia realizada ainda na madrugada desta segunda.  “O espaço mais danificado é o segundo andar, que foi praticamente revirado do avesso”, diz o especialista, contando que está em contato com o Ministério da Cultura e o Iphan.

“As Mulatas”, de Di Cavalcanti, localizada no Palácio do Planalto, teve sete perfurações a faca (Foto: reprodução/redes sociais)

Outra raridade “completamente destruída”, segundo Rogério, foi o relógio feito no século XVII por Balthazar Martinot, relojoeiro de Luís XIV, dado de presente a Dom João VI. “Existem apenas dois relógios deste autor. O outro está exposto no Palácio de Versailles, mas possui a metade do tamanho da peça que foi completamente destruída pelos invasores do Planalto. O valor desta peça é considerado fora de padrão”.

Ainda no Palácio do Planalto, também foram vandalizadas a obra “Bandeira do Brasil” (1995), de Jorge Eduardo (encontrada boiando no piso), a mesa de trabalho de Juscelino Kubitscheck , a mesa-vitrine do designer Sérgio Rodrigues e diversas fotografias que ainda precisam de identificação.

No Congresso Nacional, o vitral “Araguaia” (1977), de Marianne Peretti, foi apenas atingido por sujeira, mas prontamente limpo pela equipe de restauração. Segundo a Câmara dos Deputados, dos 46 presentes de outros países expostos no Salão Verde na casa, seis estão desaparecidos ou irrecuperáveis. A escultura “Maria, Maria” (1980), de Sônia Ebling, marcada com paulada e um painel de Athos Bulcão também sofreu avarias.

Relógio do século XVII destruído nos atos golpistas é o segundo do mundo (Foto: reprodução)

O Museu do Senado também foi invadido pelos criminosos, que riscaram outro painel do artista Athos Bulcão e destruíram – e, em alguns casos, furtaram – presentes de diversas nações ao Brasil. Há relatos de uma obra em formato de ovo de avestruz doada pelo Sudão quebrada em pedaços minúsculos, além de um objeto chinês. Além disso, uma tapeçaria de Burle Marx foi atingida por urina. Na área externa da Praça dos Três Poderes, a escultura “A Justiça” (1961), de Alfredo Ceschiatti, de 1961, pichada no domingo, já foi restaurada. O Senado calcula que o prejuízo foi de cerca de R$ 3 a R$ 4 milhões, mas ainda será feita uma perícia completa para dar continuidade ao trabalho de restauro.

O conjunto arquitetônico formado pelo Congresso Nacional, pelo Palácio do Planalto e pelo STF, idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, sofreu danos em sua estrutura, que teve vidros quebrados, além de piso e paredes atingidos por uma grande quantidade de água e até fezes. 

Brasília é até hoje a primeira e única cidade moderna considerada patrimônio mundial pela Unesco desde 1987.  Segundo o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), órgão assessor da Unesco, Brasília, “uma capital criada ex nihilo [a partir do nada] no centro do país em 1956, representa um marco na história do planejamento urbano, na qual o urbanista Lucio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer cuidaram para que cada elemento, da estrutura dos setores residencial e administrativo à própria simetria dos edifícios, estivesse em harmonia com o projeto geral da cidade. Grande destaque é dado ainda, pela Unesco, aos edifícios oficiais, reconhecidos como ‘inovadores e imaginativos’”. 

Congresso Nacional sofreu danos internos e externos na fachada (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)  oficializou o tombamento de Brasília como patrimônio brasileiro em 1990. O Iphan atua diretamente nos 88 conjuntos urbanos protegidos pelo órgão no Brasil, investindo recursos direta ou indiretamente através de parcerias com instituições ou por meio do Programa Cidades Históricas. Nesta segunda, o Instituto afirmou em nota que ainda precisa realizar uma perícia especializada para determinar a situação, o orçamento e as ações necessárias para restaurar o conjunto. 

Entidades da área do patrimônio pedem investigação dos criminosos

Obra O Flautista foi bastante depredada, segundo avaliação inicial do Planalto (Foto: reprodução)

Diversas instituições que atuam na área do patrimônio histórico e artístico se manifestaram alertando para a gravidade dos crimes cometidos contra a democracia e contra os bens culturais. Segundo o Icomos, os crimes são passíveis de julgamento no Tribunal Penal Internacional, já que a cidade de Brasília é patrimônio mundial da humanidade. 

“O ataque terrorista, hoje perpetrado pelas forças antidemocráticas contra o conjunto moderno de Brasília, inscrito pela Unesco, representa não só uma agressão ao povo e ao patrimônio cultural brasileiro, mas um crime contra a humanidade como um todo. O Icomos vem lembrar que os crimes contra o patrimônio cultural são considerados também graves crimes contra os direitos humanos”, afirmou o instituto em nota assinada por Leonardo Barci Castriota, Vice-Presidente do Icomos para as Américas, e Flávio de Lemos Carsalade, presidente do Icomos/Brasil.

.Já o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro afirmou em nota que  “nada justifica as atitudes de vandalismo às três instituições símbolos do Estado de Direito e da Democracia no Brasil, bem como ao patrimônio coletivo da nação destruído de forma torpe, sob a conivência de autoridades que têm a atribuição de zelar por eles”. O Fórum ressaltou que o repúdio se estende também a aqueles que financiaram e organizaram os atos,  “bem como a todos os agentes públicos que tenham sido omissos, coniventes e cúmplices desses atos”.

A Federação Nacional dos Arquitetos (FNA) também se manifestou: “a FNA entende que manifestações populares e motivadas por pautas fundamentadas nos direitos humanos fazem parte do estado democrático. Contudo, movimentos autoritários e ataques violentos como os vividos na Capital Federal são sinônimo de uma ofensiva fascista contra todos os cidadãos brasileiros.”

Compartilhe
Ler mais sobre
memória e patrimônio
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Memória e patrimônio Reportagem

Acervos da memória negra exaltam cultura afro-brasileira e resistem à invisibilização