Saúde para além do binômio saúde e doença. Saúde como cuidado ampliado, que envolve promoção de cultura, e por que não de literatura? A Periferia Brasileira de Letras (PBL), projeto vinculado à Fiocruz, surgiu com o propósito de interligar as produções em territórios periféricos de diferentes regiões do Brasil. A PBL nasceu em 2022 e já contribui com a realização de um mapeamento social desses territórios a partir de coletivos literários.
Mariane Martins e Felipe Eugênio, idealizadores do projeto, desejavam conectar não apenas autores periféricos, mas ampliar a ação de grupos que promovem a literatura nos seus mais variados desdobramentos, como Rap, Slam, Sarau, mutirões de cartonera e grupos de teatro de rua.
A primeira ação foi uma chamada aberta para selecionar coletivos de todo país, para uma formação de nomes de destaque da área, como o articulador José Castilho, e uma série de encontros virtuais entre os grupos. Inicialmente, 12 coletivos foram selecionados para compor o projeto. Porém, logo perceberam que para cumprir um dos objetivos da PBL, mapear a realidade e reivindicações dos coletivos literários do país, precisariam reunir mais experiências.
Fizeram, então, uma pesquisa ampliada com mais de 170 coletivos que responderam perguntas sobre os temas que norteiam os trabalhos dos coletivos, formas de financiamento, demandas urgentes e políticas públicas que gostariam de ver em ação. As respostas vieram de 8 estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Brasília/Goiânia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará e Pernambuco.
Segundo o estudo, entre os temas mais trabalhados pelos grupos, estão o incentivo à leitura, a criação literária e o antirracismo. Mais de 80% dos 169 coletivos atendem à população jovem e relatam, através da pesquisa, que entre os problemas que enfrentam para uma maior atuação estão o desemprego (63,8%), o racismo (48,1%) a falta de acesso à educação (47,5%) e a fome (46%).
Este último dado – que aponta que quase metade dos coletivos responde que a fome é uma realidade no território onde atuam – chamou a atenção da PBL, porque não há como pensar no fazer da cultura sem olhar para os direitos fundamentais e estruturais de uma comunidade. Eles pretendem apresentar essa espécie de ‘radar’ em forma de Carta para a próxima revisão periódica do PNLL, que deve acontecer esse ano.
“Os problemas com a fome e as violências seguem existindo à revelia do trabalho literário. O caso é que temos uma situação excepcional para qualquer territorialidade brasileira”, afirma Felipe. “Dos espaços mais privilegiados aos mais empobrecidos, nas experimentações que hoje se reúnem na PBL, de tantos coletivos literários, vemos um rico fluxo na produção de pensamento sobre Brasil, e esse pensamento podemos vê-lo sendo constituído por elementos de sofisticação estética e política.”
Outra pergunta feita pelos coletivos foi em relação a auxílio do Estado. Entre as respostas, 76,8% relatam precisar de recursos financeiros para dar continuidade às atividades. Quase 60% também pedem que haja uma distribuição mais equânime dos recursos da cultura. Outra demanda, apontada por 73.8% dos entrevistados, foi a necessidade de remunerar os agentes para que se dediquem ao trabalho dos coletivos.
“O fazer literário não está só nas bibliotecas e nas editoras”, diz Mariane. O próprio nome da PBL já uma certa provocação à ideia canônica do fazer literário, muito representada por entidades como a Academia Brasileira de Letras. Não são opostos, mas nascem de maneiras muito diferentes.
Uma das diferenças, refletidas tanto na pesquisa quanto nos encontros com os grupos, é que os coletivos não lidam apenas com ‘temas’ de suas produções. A relação com seus territórios, e demandas que extrapolam a cultura, caracterizam também essas atuações.
“A Fiocruz identificou que as experiências mais perenes de formação cidadã em territórios periféricos têm sido marcadas pela atuação cultural, em especial, das práticas literárias. Aí é onde moram as possibilidades de exercitar “leituras de Brasil”. É a literatura como “espaço de intersecção dos discursos sociais.”
Um dos coletivos que integra a rede PBL é a Pombagem, grupo de teatro de rua que atua desde 2009 em Salvador. “O que esse coletivo literário e performático traz é o teatro de rua que subverte o monumento público, apontando para um horizonte social mais justo, plural e democrático. E o faz relendo a história. Pois sim, com A Pombagem, acessamos um Brasil que lava a roupa suja de seus passados. E que depois estende os panos na praça pública”, reflete Felipe. Uma das principais ideias da PBL é que todas essas manifestações culturais sejam reconhecidas enquanto fazedores de literatura, ampliando esse conceito que costuma ser visto muito tradicionalmente.
Outro grupo que integra a PBL é a Kitembo, uma editora especializada em literatura fantástica, situada em Brasilândia, periferia paulistana. “Encontramos a proposição afrofuturista e as possibilidades de literatura de fantasia enegrecida. Os livros e autores que rodeiam a Kitembo oferecem aos leitores a especulação sobre o país que ainda poderemos ser”, conta Felipe.
Associando a literatura à garantia de direitos e a leitura aos princípios básicos dos direitos humanos, a PBL entende que os fazeres coletivos são também patrimônios que precisam de salvaguarda, acesso e políticas públicas. Não há literatura, sem promoção de saúde, sem direito à cidade, sem fomento.
Em 2023, o projeto vai visitar alguns dos coletivos integrantes da rede para produção de um documentário, que conte as experiências de se organizar em torno da literatura, dentro de territórios periféricos, e que também mostre as especificidades de cada região do país.