Quando o performer e artista Ian Habib teve seu espetáculo autobiográfico ‘Sebástian’ cancelado no dia da apresentação, o caso não foi repercutido na mídia. Era 2018, na cidade de Gaspar, em Santa Catarina. O pesquisador, mestre em Dança pela UFBA, recebeu uma ligação da prefeitura que impedia a apresentação, protagonizada por um artista trans, de acontecer. Ian já pesquisava as relações entre corpo, memória e experiências dissidentes de gênero, mas a partir dali começou a se questionar: “Como é arquivada a história de pessoas transgênero no Brasil? Como nos arquivamos na história?”
Os questionamentos o levaram a criar o Museu Transgênero de História e Arte (MUTHA). Em 2020, o Museu abriu suas portas, conta Ian, referindo-se à instituição, que atua no digital. O Museu funciona como um espaço expositivo na plataforma online e atualmente, está em cartaz a mostra imersiva TransJardinagem. “O jardim-paraíso é uma das paisagens radicais da transformação corporal que proponho com o intuito de romper o pacto colonial na escrita de memórias”, diz a proposta curatorial, que reúne 32 artistas e artistes de diferentes regiões do país.
O desejo do projeto, porém, é ir além: “Nossa ideia não é só expor obras de arte. O espaço expositivo já é uma obra. O MUTHA é uma obra de arte”, afirma Ian. Desde 2022, ele é também um acervo, o Arquivo Histórico do MUTHA, que busca arquivar e disponibilizar para pesquisa pública, as histórias das populações trans no Brasil. Qualquer pessoa pode contribuir para o arquivo, já que uma das ideias centrais do projeto é a de “Autonarrativa” e “Autoarquivamento”, ou seja, que a própria população trans possa contar sua história, decidir o que permanecerá ou não para o futuro.
Um pilar do Museu é, como conta Ian, a ideia de “Transtemporalidade”, que também integra sua pesquisa acadêmica e seu livro Corpos Transformacionais (Editora Hucitec). Ele explica que o Museu quer contar histórias vivas, mesmo que elas se localizem no passado, já que, apenas por conta da luta e da existência de pessoas que não estão mais aqui – “Transancestrais”, é possível realizar conquistas hoje. Ele também deseja que o arquivamento da memória seja diferente do que costuma ser feito pela cisgeneridade. “Nós temos tentado pensar em um arquivo para além da violência”, explica Ian.
Idealizado com recursos da Lei Aldir Blanc, o MUTHA coleta histórias reais e semi-ficcionais, reescreve fatos históricos contados anteriormente pela cisgeneridade, e busca histórias e produções de artistes, de documentos de movimentos sociais e de modos de vida comunitários transgêneros, registrados ou não academicamente. Também propõe debates sobre a história e arte transgênera brasileira, em perspectivas anti-coloniais, étnico-raciais e transfeministas. O acervo aborda vivências transgêneras, travestis, não-binárias, intersexo, indígenas LGBTQIAP+ e outras.
Além da arte
Os arquivos presentes no MUTHA extrapolam o conceito de obra de arte, ou de produção artística. Podem ser utilizados por pesquisadores da saúde, das ciências jurídicas e das ciências humanas. Porque ali estão registradas imagens e documentos, por exemplo, da primeira cirurgia de reafirmação de gênero feita no Brasil, em 1930. Também há arquivos históricos das lutas sociais, nos anos 80 e 90. “É um arquivo finito, com possibilidades infinitas”, afirma Ian.
Outra atuação do Museu é a criação de um banco de empregabilidade cultural. Já existem algumas iniciativas que promovem pontes com o mercado de trabalho para pessoas trans, como a plataforma Transempregos, mas o MUTHA percebeu a necessidade de haver uma específica para o setor da cultura e das artes.
“Sabe aquela pessoa que busca um homem trans artista da tatuagem em Salvador? Aquela produtora que busca uma atriz travesti em Belo Horizonte? Aquela organização que deseja ume designer trans para confeccionar camisetas em qualquer lugar do Brasil? Aquela busca difícil por uma pessoa maquiadora de gênero diversa no interior de São Paulo, que demora dias em mensagens de redes sociais?”. O cadastro no banco é feito pelo site do MUTHA, e busca tornar mais fácil o acesso da sociedade às produções de pessoas trans, em suas diferentes atuações na área da cultura.
O Museu está em processo de internacionalização. Desde 2020, já realizou exposições fora do país, como o London College, e nacionais como no Sesc Santo André e na Bahia. Artistas de outros países também têm procurado o MUTHA, relatando que em seus lugares de origem não há espaços como esse. É um dos únicos do mundo dedicado exclusivamente à memória trans, ao lado de outros como o Motha – Museum of Transgender History & Art, e o Museum of Transology, no Reino Unido.
Políticas para a museologia LGBTQIA+
No Brasil, diversas iniciativas também lutam pela memória LGBTQIA+ nos museus e instituições de arte. Fazem parte desse mosaico instituições como Museu Bajubá, um acervo sobre identidades históricas do movimento LGBTQIA+, o Arquivo Lésbico Brasileiro e o Museu da Diversidade Sexual, localizado em São Paulo,
Até 2022, não havia no governo órgãos políticos ou ações voltadas à memória LGBTQIA +. Como demonstravam manifestações públicas do ex-secretário Especial de Cultura, Mário Frias, o governo Bolsonaro desconsiderava a cultura LGBTQIA+ nas ações, além de censurar espetáculos e a linguagem neutra.
Durante o governo de Dilma Rousseff, o Ministério da Cultura chegou a promover ações pontuais que integram a secretaria de Diversidade Cultural e a área de patrimônio, incluindo eventos sobre memória LGBTQIA+ e editais para a área. As ações, no entanto, não se converteram em políticas de Estado e foram descontinuadas.
Em 2023, foi criada no Ministério dos Direitos Humanos do governo Lula 3, a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas, sob a coordenação da secretária Symmy Larrat. Uma das diretrizes da pasta é promover a cultura LGBTQIA+.