O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta sexta-feira (10) que o estado de Rondônia não pode proibir o uso e o ensino de linguagem neutra em escolas do estado, materiais didáticos ou concursos públicos. Segundo os ministros, a proibição é inconstitucional, na medida em que não cabe aos estados e aos municípios violar normas gerais do ensino estabelecidas pela União. Embora a decisão seja específica para Rondônia, o mesmo entendimento deve valer para outros estados e municípios que também proibiram a linguagem neutra em seus espaços de ensino.
A ação foi movida em 2021 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino e votada pelos ministros esta semana em plenário virtual. Conforme a Lei de Diretrizes e Bases, “compete à União estabelecer competência e diretrizes para a educação infantil, de modo a assegurar formação básica comum”. Até a manhã desta sexta, o STF já havia formado maioria a favor da ação de inconstitucionalidade, com os votos do relator, Edson Fachin, e de outros cinco ministros: Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandovski, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e Roberto Barroso.
Em 2021, Fachin, já havia suspendido a lei em caráter liminar. “Os graves vícios que maculam a norma impugnada tornam fortes os argumentos trazidos pela requerente para afastar a norma. O risco de sua imediata aplicação, calando professores, professoras, alunos e alunas, é imenso e, como tal, justifica a atuação excepcional deste Tribunal”, decidiu na ocasião.
Segundo um estudo da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), ao menos 45 projetos de lei que pretendiam proibir a linguagem neutra foram propostos por deputados estaduais no Brasil entre 2020 e 2022. No mesmo período, municípios como Chapecó (SC) e Porto Alegre (RS) aprovaram e sancionaram leis censórias à linguagem neutra em escolas municipais, incluindo espaços de ensino de arte. Na área da cultura, uma das marcas do governo Bolsonaro foi proibir a linguagem neutra em projetos aprovados pela Lei Rouanet, inviabilizando trabalhos sobre diversidade que abordassem pessoas não-binárias. A portaria da censura deve ser revogada pelo novo governo ainda este ano.
Artistas também sofreram outros casos de censura pelo uso dos pronomes neutros em apresentações. Em 2021, o grupo Cerco teve uma apresentação cancelada por falar “bem-vindes” em uma peça infantil dentro de uma escola privada de Porto Alegre. “Sentimos muito pelas crianças que não puderam brincar por causa desta decisão. Para nós, enquanto artistas, cidadãos e cidadãs, é grave que uma obra artística sofra esse tipo de ataque”, lamentou o grupo.
Linguagem neutra é uma variação natural na língua
A linguagem neutra desempenha um papel essencial na luta das pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros binários – o feminino e o masculino -, ou seja, as pessoas não-binárias (NB). O uso do pronome neutro aparece como uma terceira opção para os pronomes binários. Nas redes sociais, existe um grande movimento para a inclusão do pronome neutro, mas persistem impasses que dificultam o processo de uma aceitação mais institucional.
Ao longo dos séculos, a língua portuguesa falada no Brasil viveu longas mudanças, acompanhando as evoluções de cada era. Com as redes sociais, foi aberta mais uma aba de discussão sobre a introdução dos pronomes neutros como nova forma de se comunicar. Uma das primeiras tentativas dessa inclusão no cotidiano online foi a utilização da letra “X” e o “@” no lugar do “o” e do “a”. Entretanto, o método causou a exclusão de pessoas com deficiência visual ou dislexia, já que mecanismos de audiodescrição não conseguiam ler os caracteres, além da dificuldade em se pronunciar fora da internet.
Mais recentemente, outras formas passaram a ser usadas para incluir o pronome neutro, inserindo o “e” em final de palavras terminadas em “o” ou “a”, como por exemplo todes, amigue e diretore. São vários os sistemas dentro dessa linguagem, de acordo com os usos das pessoas não-binárias. Nos sistemas ILI, ELU e ELO, os mais usados atualmente, o que muda entre um e outro são os pronomes e suas contrações.
Gabriel Galli, integrante da ONG Somos, voltada aos direitos LGBTQIA+, avalia que o uso da linguagem neutra é uma luta em desenvolvimento, que muitos detalhes precisam ser aperfeiçoados e que as pessoas precisam se acostumar com a aplicação. “Muitas são as pessoas que sinalizam como gostariam de ser chamadas, em emails, apresentações ou até mesmo broches, deixando em evidência os seus pronomes de preferência. Acho que ajuda bastante a naturalizar que não se deve inferir o gênero de ninguém”, afirma.
Como explica o professor de linguística do Instituto de Letras da UFRGS, Cléo Altenhofen, toda língua é feita de variações e, no Brasil, as variações regionais são as mais marcantes. Segundo o professor, os dialetos são sistemas linguísticos que servem a uma comunicação mútua entre a língua escrita e falada. “Nós não falamos mais o português de Cabral. Na Sociolinguística, nós dizemos que todas as línguas mudam intermitentemente a partir de como nós entendemos. A coexistência de variantes é que garante a intercomunicação, nós estamos muito acostumados a variação”, explica.