"A queda do céu e a mãe de todas as lutas ", de Daiara Tukano (Foto: divulgação)

Conheça artistas que integram a mostra Brasil Futuro: as Formas da Democracia

“Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. Em fundo vermelho-vinho, essa frase é segurada como uma bandeira por três sujeitos que vestem roupas preto e branco. Símbolos de Exus e Pomba-giras e a palavra “Axé” estampam o centro da pintura. Trata-se da obra “Ele é dono do meu destino até o fim”, do artista Jaime Lauriano, um dos mais de cem artistas que integram a exposição Brasil Futuro: as Formas da Democracia, montada no Museu Nacional da República, em Brasília. Com curadoria da antropóloga Lilia Schwarcz, do arquiteto Rogério Carvalho, do secretário de Cultura do PT, Márcio Tavares, e do ator Paulo Vieira, a exposição abriu como parte da programação da posse de Lula, no dia 1 de janeiro. 

Desde o início, uma das preocupações da curadoria foi a de que o grupo de artistas escolhidos fosse plural e refletisse sobre um Brasil que não é único, assim como uma ideia de democracia que não é completa.  A exposição destaca, então, a produção contemporânea de artistas negros e negras, de mulheres, pessoas LGBTQIA+ e artistas indígenas. 

Brasil Futuro foi toda pensada após a eleição de Lula, ou seja, a concepção, produção e realização da exposição durou menos de um mês. A força-tarefa aconteceu depois de uma conversa de Lilia Schwarcz e Márcio Tavares, atual secretário de Cultura. Eles conversavam sobre a vitória do atual presidente e tiveram a ideia. 

“Tivemos a ideia da exposição para ser como uma espécie de braço da posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Logo pensamos que poderia ser sobre democracia, grande mote da campanha, mas também grande mote de nós, brasileiros e brasileiras, que passamos esses anos todos de assalto a nossa democracia”, explica Lilia Schwarcz, antropóloga, historiadora e professora da USP. 

“O mais importante é inventar o Brasil que nós queremos”, de Elian de Almeida (Foto: divulgação)

A mostra é dividida em três núcleos: Retomar Símbolos, que celebra a democracia soberana do Brasil, com um resgate vibrante dos símbolos nacionais; Decolonialidade, que fala sobre questões do feminismo, da negritude, dos povos originários, do movimento LGBTQIA+ e da diversidade de olhares; E Somos Nós, instiga o público a refletir sobre a riqueza étnica, de gênero, regional e de linguagens presentes na cultura do Brasil. “Criamos esses três eixos temáticos para refletir sobre a ideia de democracia, que é, por si, um regime incompleto. Sempre vão surgir novos direitos que precisam ser conquistados e o Estado sempre terá que lidar com isso”, explica a pesquisadora. 

Refletir sobre história da arte também é um dos fios condutores da mostra. “A história da arte é um braço da história colonial e imperial e, como tal, tem um papel muito grande no nosso imaginário. A história da arte no Brasil ainda é contada a partir de uma perspectiva muito europeia, branca, masculina e autoritária. É muito importante recontar essa história.” 

Orixás Presentes 

Visitante observa a obra “Os orixás”, de Djanira da Motta e Silva (Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília)

A localização do Museu Nacional é relevante para se pensar a importância do que ele abriga. Desde 2006, no Eixo Monumental, na reta dos poderes, ele abre as portas para a Esplanada. O prédio branco, de formato arredondado, faz parte do chamado “setor cultural”, projetado por Lúcio Costa para que a cultura ocupasse um lugar de destaque na disposição arquitetônica-política de Brasília. 

Para Sara Seilert, diretora do Museu, o fato de a exposição Brasil Futuro integrar a programação da posse e do início do governo Lula é uma sinalização de um novo tempo, com novos olhares para o setor cultural e das artes visuais. “A política é sempre pensada ali. O Museu é um lugar de disputas de visibilidades, de disputas políticas e também de diversidades”, comenta. “É muito legal que uma gestão presidencial venha junto com uma exposição, porque significa que as artes visuais estão integradas nessa proposta de agenda de Estado”. A sede da exposição também foi o lugar escolhido para a posse da Ministra Margareth Menezes, no dia 2 de janeiro.  

As quase 200 obras que integram a exposição vieram do acervo do Museu da República, do MAB (Museu de Arte de Brasília), de galerias e de comissões a artistas. Um dos destaques é a exibição da obra Os Orixás, de Djanira da Motta e Silva (1962). Sara esteve pessoalmente na remoção da obra de Djanira do Almoxarifado do Palácio. A pintura a óleo, de 3,7 metros de largura e 1,2 metro de altura, foi retirada do Salão Nobre do Palácio do Planalto em dezembro de 2019, por ordem dos então ocupantes.

“Essa obra tem um peso simbólico, porque ela pertence a um acervo público. Por escolha de uma das habitantes temporárias, foi decidida sua remoção. Com a exposição, essa obra foi reintegrada à sua função social, porque, a gente sempre tem que lembrar, que ela é um patrimônio público. Não pode ficar no almoxarifado”, pontua. No Museu, a obra está sendo exibida com os danos que sofreu durante a última gestão. A primeira-dama Janja já garantiu que, depois do fim da mostra, os Orixás voltam ao seu lugar de origem, no Salão Nobre.

Na expografia da exposição, a obra de Djanira está diametralmente oposta a uma obra comissionada por Daiara Tukano, artista plástica, indígena e um dos principais nomes da Arte Contemporânea e da chamada Arte Indigena Cosmopolítica.   

Museu de pé

No dia 8 de janeiro, marcado pela invasão golpista aos Três Poderes, o prédio do Museu foi um dos únicos que ficou ileso. A Democracia apresentada ali permaneceu firme, graças à atuação da equipe educativa e de vigilância que, rapidamente optou por fechar as portas, após a entrada de grupos bolsonaristas na Exposição. “Foi o que salvou o museu nesse dia”, avalia Sara. Um vídeo circulou no dia, com grupos atacando verbalmente as obras que estavam expostas. 

Para Lilia, há uma grande relação simbólica entre entre o Museu estar debatendo democracia, símbolos, e uma invasão acontecendo do lado de fora. “Os estragos seriam imensos, e seriam comparáveis ao que aconteceu nos Três Palácios. É impressionante pensar que as obras de artes são as primeiras a sofrer com estados autoritários”, reflete a curadora. 

Para ela, é justamente o perfil de artistas que integram a mostra – críticos e reflexivos, que são perseguidos pelos extremistas. “Eu considero que os artistas foram muito censurados nesse período e, não à toa, a arte traz essa potência. Essa projeção, essa capacidade de imaginar novos futuros. Os artistas lá chamados fizeram muita oposição, nesses quatro anos, cada um à sua maneira, cada um com seus marcadores sociais. São artistas que têm muita a dizer para a sociedade como um todo”, conclui.

11 artistas da mostra para conhecer

Allan Weber (1992), com a série “Traficando Arte

Foto: reprodução/ Galatea

“Traficando Arte” é a mais recente série de Allan Weber, artista e fotógrafo de 30 anos. Sua poética se debruça nas visualidades e símbolos de favelas – dando sentido de alteridade, subjetividade e produção estética a partir de elementos ordinários do cotidiano.

Em plena pandemia, o fotógrafo carioca fez um diário visual da sua atividade como entregador de app, um livro intitulado “Existe uma vida inteira que tu não conhece”. Sobre seu trabalho, Allan diz: “Através do meu olhar revelo a luz dos invisíveis, dos ignorados, dos periféricos, dos que não são valorizados, que é de onde eu venho, e busco mostrar uma realidade para ser vista de outra forma por quem não consegue enxergar (ou não quer)”. Allan também criou a galeria 5 bocas, nome da favela onde vive no Rio de Janeiro. 

Antônio Obá (1983), com “Iconografia para uma missa preta” 

Foto: reprodução

Natural de Ceilândia, Antônio Obá trabalha com diferentes linguagens (performance, instalação, pintura). O Universo religioso brasileiro é central em suas obras, pois ele reflete criticamente sobre a ideia do sincretismo e de situações históricas ligadas ao preconceito étnico-racial. Traz em seu trabalho uma memória afetiva das comunidades afro diaspóricas, e propõe uma reflexão íntima sobre a história brasileira. Suas imagens evocam cura e afeto, trazem cores, crianças, mitos e cenas oníricas. 

Arissana Pataxó (1983), com “Dxahá patxitxá kuyuna” 

Foto: divulgação

Arissana Pataxó foi a primeira artista indígena a concorrer ao Prêmio PIPA, em 2014. Arissana cresceu nas margens dos rios da Bahia, e este lugar de origem aparece em suas pinturas, fotografias e esculturas. Ela mostra pessoas e coletivos indígenas como sujeitos autônomos, responsáveis por signos, práticas e valores presentes na sua obra. Ela retrata a pluralidade dos povos indígenas, assim como momentos de luta e manifestação. 

Daiara Tukano (1982), com “A queda do céu e a mãe de todas as lutas”  

Foto: divulgação

A queda do céu e a mãe de todas as lutas (2022) foi criada por Daiara Tukano especialmente para a exposição. A artista, curadora e educadora pintou a tela de 4 metros (m) por 2m no próprio MUN, alguns dias antes da abertura da Mostra. A artista defende que a obra, que integra o Núcleo Somos Nós, é uma provocação ao público sobre suas próprias referências. 

“Quem sabe ler o nome da obra, A Queda do Céu e a Mãe de Todas as Lutas, entende que a referência central não é a Pietà, não é o cristianismo. Trata do pensamento, porque é baseada no livro A queda do Céu, do Davi Kopenawa Yanomami. A mãe de todas as lutas é o mote da Marcha das mulheres Indígenas no Brasil. Então existe uma provocação de se tecer outras relações de leituras para essa obra”, reflete a artista em entrevista à Amazônia Real

Daiara também é, nesse momento, curadora da mostra Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação, em curso no Museu da Língua Portuguesa, e foi uma entre os cinco artistas indígenas brasileiros (ao lado de Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uýra e Gustavo Caboco) a integrarem a 34ª Bienal de São Paulo.

Jaime Lauriano (1985), com “Ele é dono do meu destino até o fim” 

Foto: reprodução

É com Exu que Jaime Lauriano integra o Brasil Futuro. Suas peças audiovisuais, seus objetos e seus textos críticos evidenciam os processos de subjetivação da sociedade por meio das violentas relações de poder entre instituições e sujeitos. A produção do artista busca realizar uma revisão e reelaboração coletiva histórica. Seus trabalhos também são atravessados por afrorreligiosidade, como no mais recente “Iluminai os terreiros” (2022), exibido em São Paulo. “O Brasil é uma espécie de obsessão para Lauriano. O artista desenvolve uma relação complexa, crítica e afetiva com o País, tendo demarcado o contorno de seu território (e do continente africano) sobre a própria pele negra”, disse Hélio Menezes, em um texto que escreveu sobre o artista.  

Rivane Neuenschwander (1967), com “Trópicos malditos, gozosos e devotos

Foto: reprodução

A série de gravuras Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos de Rivane Neuenschwander faz referência à obra de Hilda Hilst. Ela trata da colonização como um “violência” em série, que precisa ser encarada. Evidencia as referências, sexuais, simbólicas e históricas predatórias e questiona o início violento da sociedade brasileira após a invasão dos portugueses. A artista, natural de Minas Gerais, tem uma extensa pesquisa sobre o medo, abordando o tema a partir da relação das artes visuais com outras áreas do como a literatura e a psicanálise. Em suas obras, utiliza-se de materiais banais para captar o cotidiano. 

Davi de Jesus do Nascimento (1997), com “Corpo-embarcação”

Foto: reprodução/ JA.CA

Artista plástico, performer e poeta barranqueiro, Davi de Jesus Nascimento cresceu nas margens do São Francisco, rio que dá contorno a sua pesquisa e existência. Ele parte de uma investigação autobiográfica, de seu “corpo-embarcação” e de memórias familiares, como o falecimento da própria mãe, para criação de suas imagens. O adoecimento do rio e a transformação da água em árido também guiam seu trabalho.

Sonia Gomes (1948), com “Sinfonia para Democracia” 

Foto: Thiele Elissa/Fundação Bienal do Mercosul

Os materiais têxteis, cordas, fios e madeiras são preciosidades nas mãos da artista de Sonia Gomes. Com ela, ganham cor e plasticidade e suas peças, no espaço, parecem flutuar.“Meu trabalho é como o Brasil: tem um lado popular e outro erudito. Transitamos muito bem entre esses dois aspectos”, disse uma vez em entrevista. Os tecidos que pendem em Sinfonia para Democracia também remetem às festas populares de matrizes afro-brasileira como a folia de reis, congo, reisado e ao catolicismo mágico, nos quais os materiais se acumulam e se sobrepõem. 

Wagner Barja, com “Deitado eternamente

Foto: reprodução

Artista plástico, Wagner Barja sempre esteve envolvido com investigação e pesquisa da arte. O artista busca “desconstruir com humor e ironia o linear e o estabelecido”. Ele tem trabalhos experimentais em diversas linguagens, entre elas a videoarte e a instalação. É Curador Independente e Mestre em Arte e Tecnologia das Imagem pela UnB.

Luana Vitra (1995), com “Americano Cru” e “Bandeira nacional atualizada” 

Foto: reprodução/MAM

Luana Vitra Contagem (MG), é artista plástica, dançarina e performer. Cresceu em Contagem, cidade industrial que fez seu corpo experimentar o ferro e a fuligem. Gestada entre a marcenaria (pai) e a palavra (mãe), se movimenta como reza em busca da sobrevivência e da cura das paisagens que habita. Entende o próprio corpo como armadilha, e sua ação como micropolítica na lida com a espacialidade que seu trabalho evoca, confronta e confunde. Sua ressignificação da bandeira é calcada em lama e cimento, motivação que vem da preocupação com o meio ambiente.

Yacunã Tuxá (1993), com “A Guerreira do Sol” 

Foto: divulgação

Yacunã é artista indígena da etnia Tuxá de Rodelas, na Bahia. É graduanda em Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e atua como ativista e artista visual. Suas obras são influenciadas pela espiritualidade, memória e sabedoria das anciãs de seu povo. Leva para suas obras e ensinamentos que recebeu desde menina, aprendizados necessários para seguir no caminho da resistência e da ancestralidade. É ilustradora, desenhista, pintora, colagista e também escritora. “Entretanto, apesar de transitar entre as linguagens, todas as minhas produções artísticas mergulham na memória da minha gente e revelam o nosso movimento para existir”, afirma a artista.

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Coordenadora de jornalismo do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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