Pelotas (RS) — No canto esquerdo do palco, ao lado de caixas de som, está a imagem do orixá Bará, vestido com suas chaves. Do lado direito, Ogum, posicionado em seu cavalo. No centro, telões exibem em letras garrafais: CA-BO-BU. A festa dos tambores aconteceu dos dias 21 a 23 de abril, em Pelotas (RS), e reviveu uma semente plantada 20 anos atrás pelo Mestre Giba Giba. O músico e percussionista é considerado o guardião do sopapo, tambor de grandes dimensões criado no século 18.
O cortejo de abertura do festival teve cheiro de alecrim, alfazema, manjericão e guiné. Na primeira fila, de um conjunto de grupos, estava uma frente religiosa que cantava em Iorubá para Exú, pedindo licença, e abrindo os trabalhos da Festa dos Tambores. “Como o sopapo faz o elo com a ancestralidade, precisávamos pedir licença e rezar aos Orixás”, explica o Babalorixá Juliano de Oxum, coordenador espiritual do evento.
“Quando a gente fala que ‘o sopapo é rei’, lembremos que existe uma orixalidade que o rege. Quando batemos o sopapo, e ele faz o som do estrondor, referendamos também o grande rei de Iorubá, que é Xangô”, explica. Quarta geração de uma família de terreiro, o jovem Babalorixá tinha apenas 10 anos na primeira edição do Cabobu, nomeado por Giba Giba em homenagem aos tamboreiros Cacaio, Boto e Bucha.
Ao convidar grupos estudantis para o cortejo de abertura e as escolas de carnaval, o coordenador acredita que o Cabobu faz o seu movimento completo: da raiz, da origem, até as folhas, que são os mais novos. Logo após a frente religiosa, vinham os mestres e mestres, como Mestre Chico, Mestre Romeu e Mestre Paula.
O Cabobu também mostrou, de início, que memória não é apenas reprodução, mas também renovação. Na cerimônia de abertura, quem ocupou o lugar central do palco foi Maria Batista, considerada a mãe do Sopapo. O chamamento e centralidade das presenças negras femininas também apareceu na nomeação dos espaços onde as atividades aconteceram. A Biblioteca Pública de Pelotas virou Espaço Mestra Griô Sirley Amaro e a Praça Coronel Osório tornou-se Helena do Sul, reconhecido nome da literatura pelotense.
A volta do atabaque-rei
Desde os anos 1980, Giba Giba já pensava em fazer uma grande festividade que celebrasse a cultura negra no estado. Mas o que o impulsionou a criar o Cabobu foi um momento, no fim dos anos 90, quando ouviu de pessoas jovens a pergunta “Que instrumento é esse?”, referindo-se ao sopapo. O desconhecimento da tradição e das raízes do tambor reconhecidamente gaúcho fez com que Giba organizasse as duas primeiras edições do Cabobu, em 1999 e 2000, tendo o instrumento, o ‘atabaque-rei’ como protagonista.
Giba construiu 40 sopapos para serem usados no festival que, depois, foram doados a escolas de samba e blocos pelotenses, uma vez que o cantor esperava que o Carnaval voltasse a contar com a presença do tambor. O griô e luthier Mestre Batista e seu filho, Zé Batista, foram os responsáveis pela construção dos sopapos. Duas décadas depois da primeira edição, agora são os filhos dos mestres, Edu do Nascimento e Zé que abrem os trabalhos da terceira edição do Cabobu.
“É tambor para cá, tambor para lá, mas, na verdade, o tambor é o veículo. O pai queria trazer a cultura local, dentro de cada região que fosse participar do projeto Cabobu. O tambor funciona como um comunicador dessas vertentes todas”, anuncia Edu do Nascimento, percussionista. “Meu pai pensava fora da caixinha, e estava sempre a uns 10, 20 anos na tua frente”, reflete. “Eu posso dizer que estou aprendendo mais com meu pai agora, do que quando ele estava vivo. Às vezes, estou dobrando a esquina e me dou conta de coisas que ele queria dizer para mim.”
Zé Batista, coordenador da programação formativa do evento, lembra que o sopapo é uma cultura pelotense, local. “Ele sai daqui para o mundo, mas o nascedouro dele é nessa cidade. Hoje para mim deveria ser um dia de pura alegria, mas não é só isso que estou sentindo. Estou sentindo na pele lembranças. Eu tenho visto esperança no olhar das pessoas e enxergo nisso a responsabilidade que Giba e Mestre Batista nos deixaram, que é cuidar do nosso bem maior: a nossa cultura”, disse Zé, autor do livro ‘O Sopapo Contemporâneo, na abertura.
A festa dos tambores
Na primeira fila do palco principal do evento, Maria Angélica Soares garantiu uma vista privilegiada, sentada em uma cadeira de praia que trouxe de casa. Vestindo um casaco de lã para atravessar a noite fria de Pelotas, ela não se acanhou em ir sozinha e olhava para o palco com apreensão para saber quem ouviria desta vez. Viu nos anúncios que teria o Cabobu e lembrou que, na festa de 20 anos atrás, ela estava lá com amigas. “Tudo que tem música é comigo. Vim arejar a cabeça, porque a gente já vê tanta coisa ruim”, diz.
As irmãs Mariluz Araújo e Lia Araújo também estavam ansiosas para as atrações musicais, que contaram com grupos como Ialodê, Paulo Dionísio, 50 tons de Pretas e o Grupo Afroentes. “Eu lembro de ver o Giba Giba e como o som dos tambores chegava a arrepiar”, conta Mariluz. “A primeira vez foi muito impactante.” Elas moram em Pelotas e foram também assistir a neta de Mariluz que é uma das dançarinas do Odora, grupo de ação social, cultural e educacional da cidade que participou da programação.
O brilho saltava dos olhos de quem circulava na cidade, e era como se ali se formasse uma enorme colcha de retalhos de memórias entre gerações. As pessoas pareciam articular suas lembranças pessoais com as coletivas, deste acontecimento para a cidade de Pelotas.
Sandra Narcizo, produtora e amiga de Giba em vida, e produtora executiva do Cabobu, diz que a impressão é de que não havia passado muito tempo. “O evento dos anos 2000 se manteve, porque todas as ideias do Giba para compor esse grande encontro foram preservadas. As pessoas estão se sentindo no Cabobu delas. A gente percebe que os filhos daqueles que estavam lá naquela época hoje estão aqui para vivenciar o festival.”
“As pessoas dizem muito ‘eu estava lá’ e agora ‘eu estou aqui’. Isso é emocionante, porque elas não dizem que estão em um evento novo do Cabobu. Dizem apenas que estão no Cabobu, porque o cerne foi mantido. Em uma nova roupagem, em uma passada para o futuro, que as pessoas estavam buscando”, explica Sandra.
Uma dessas pessoas que se orgulha em dizer ‘eu estava lá’ é Sandro Mesquita, coordenador da Central Única das Favelas (Cufa) de Pelotas. Produtor cultural na cidade, ele relembra que o Cabobu significa a dissolução de fronteiras para o tambor. “Já naquela época, a gente conseguiu mesclar o rap com o tambor, no mesmo palco, e isso é muito importante.”
Desde 1994, Sandro realiza o projeto ‘Arquivo Negro’, uma coleção de recortes de jornais com notícias importantes para comunidade negra pelotense. E lá estava, em 2000, uma manchete que dizia: “Chico César fecha a primeira noite da festa dos tambores”. Outros nomes que passaram pelas primeiras edições do festival foram Naná Vasconcelos e Djalma Correa.
Sandro diz que se sente como uma ‘testemunha ocular’, e que em sua memória Mestre Baptista e todos os puxadores estão muito vivos. “Quando eu ouvi o sopapo, no primeiro Cabobu, eu senti como se fosse uma memória afetiva, como se eu já tivesse ouvido aquele som antes”, relembra.
Para ele, o ressurgimento do festival é também um indicativo de que muitas pautas avançaram, mas que outras ainda precisam seguir vivas. “Ainda queremos tudo aquilo que reivindicávamos há duas décadas.” Na nova edição, o festival abrigou, além da programação artística, uma série de debates sobre temas históricos e sociais, como as Charqueadas Pelotenses, a Lei 10.639 e o Batuque Gaúcho.
O pesquisador Mário Maia, autor da tese “O Sopapo e o Cabobu: etnografia de uma prática percussiva no extremo sul do Brasil” conta que tinha a sensação de que, passado tanto tempo, o festival não voltaria a acontecer. Porém, entre 2000 e agora, ele percebe que as sementes que Giba plantou deram frutos. “Foi interessante, porque apesar de não ter sido imediato, hoje a gente vê muita gente na cidade fazendo sopapo, tocando, e não só em relação à música e aos luthier, mas também a uma apropriação do sopapo como um ícone de identidade local”, avalia.
Para ele, a valorização das presenças das mulheres é uma atualização de destaque em relação às edições passadas. “Acho maravilhoso que tudo seja agenciado por um tambor. Claro que tem alguém por trás, como o Giba, o Mestre Batista, e a Dona Maria. Ela foi tão importante quanto eles”, reforça o pesquisador. “Ela teve uma participação super ativa, definidora do processo de reconstrução do instrumento. O Cabobu faz o reconhecimento disso agora.”
Afropresentismo
Fitas coloridas. Mãos desenhadas. Lua e sol grafados. Não existe sopapo neutro, ou que não seja vibrante em suas estampas. “Nenhum sopapo que fazemos é igual ao outro”, diz Maurício Polidori, um dos professores da oficina de fabricação de sopapo. Com todas as cadeiras ocupadas, a aula foi uma das mais procuradas do Cabobu.
Ao lado de Rogério Gutierrez, os professores aproximaram os participantes da manufatura do grande tambor, desde o uso do couro, dos pregos, até o revelar de técnicas para gravar o som. “As pessoas se transformam quando tocam sopapo. É um instrumento em que se pode fazer infinitos sons”, diz Maurício. “Esse som passa pela ossada da gente e trepida. O sopapo faz um grave em nosso peito.”
Se o desejo de Giba Giba era a continuidade da tradição, a oficina parecia ser uma dessas materializações do sonho. Os tamboreiros explicaram razões físicas para se tocar o sopapo sentado, ao invés de em pé, e esmiuçaram sua confecção. Durante a oficina, o artista pelotense Kako Xavier também falou da importância histórica daquele momento: “O Rio Grande do Sul é um estado em que a gaita é conhecida como instrumento, mas o tambor estava muito antes aqui”, disse o músico, que se apresentou no primeiro dia do evento.
Para Giba, o tambor era o veículo. E seu som foi capaz de agregar diferentes manifestações artísticas além da música. Duas exposições integraram a programação, uma em memória do Guardião do sopapo, com a exibição de seus objetos pessoais, e outra, exibindo os trabalhos de Zé Darci e Luis Ferreirah. As obras do pintor e do fotógrafo não poderiam dialogar mais com o Cabobu. Zé traz as cosmologias africanas e religiosas, como Mãe Iemanjá, e Luis fala em “afropresentismo”, um termo que parece nomear também o que acontece no festival. Um chamado entre tempos que se concretiza no presente.
Tambor no calendário
“Quando ele pensou o Cabobu, ele imaginou que, assim como todo ano tem festa do vinho, Oktoberfest, que também pudesse ter esse encontro negro”, conta Edu do Nascimento. O desejo é que a partir de agora o festival volte a ter uma periodicidade. “A primeira coisa que a gente quer fazer, quando terminar o Cabobu, é sentar com todo mundo e planejar o próximo.”
Para Sandra, o significado de reinserir o Cabobu no imaginário de Pelotas é reescrever uma história antes escrita pelo colonizador. “O Brasil é cheio de partes. Vou repetir o que o Giba sempre dizia: o jeito de ser de cada lugar deve ser preservado”, relembra a produtora. “Pelotas tem um jeito de ser que é particular quando falamos de negritude, de pretitude. Nós orbitamos o sopapo e precisamos preservar as estradas que foram abertas por eles. A gente gostaria que o Brasil conhecesse o jeito de ser do povo negro no Rio Grande do Sul, em especial de Pelotas.”
O tempo de amadurecimento fez com que o festival voltasse com força, acredita Mário Maia. “Aquilo que acontece muito de repente, também morre muito de repente. E esse processo, de mais de 20 anos, está sendo um momento de reconhecimento da cidade”, afirma o pesquisador.
O último dia do festival aconteceu em 23 de abril, dia de São Jorge e Ogum, de quem Giba Giba era filho na religião. A data, escolhida mais na casualidade do que na intencionalidade, revelou que Giba se presentificava ali integralmente. Sandra levou para a sala de trabalho da equipe uma estátua de Ogum, que pertencia ao amigo e que ela guarda até hoje.
Junto a outras imagens, como a de Oxum Pandá, e o gorro que ele utilizava, um altar foi montado para abençoar o Cabobu. Sandra lembra o que Giba sempre dizia: “Nós estamos na rota dos Orixás.”
Entrevista com Edu do Nascimento, músico e filho de Giba Giba:
Nonada Jornalismo – Como você está se sentindo agora vivendo o festival Cabobu?
Edu Nascimento – Percebo que tudo é um processo ancestral e a gente vai se flagrando disso quando vai ficando mais velho. Eu sou o produto dos meus tataravós, dos meus bisavós, minha vó – que tava grande influência em mim, meus tios, primos.
Nonada – Como era o nome da sua vó?
Edu – Maria Lucidia. O apelido dela era Mindoca. Ninguém sabe por que era Mindoca, nem ela sabe. Ela era analfabeta, mas todo mundo pensava que ela era professora. Ela tinha um tom de voz baixinho, nunca vi ela gritar. E ela só falava uma vez. Eu levo as frases dela comigo. Ela era de religião, mas também de igreja, tinha todos os santos. Uma vez perguntei para ela por que rezava tanto e ela disse ‘Eu agradeço a Deus por estar todo dia viva e a vida é a coisa mais bela do mundo’. Às vezes eu chegava, pedia para deitar com ela, ficar conversando.
Ele era minha melhor amiga. Conversava de tudo. Ela chegou aos 101 anos. Por que eu estou te falando tudo isso? Memória, afetividade, ancestralidade. Em pequenas frases, ela me dava lições de vida, sobre não ficar adormecido. Tua cabeça vai para lugares que, muitas vezes, tu nem pensava. E o tambor te faz isso. Eu não gosto da palavra resgate, prefiro memorização.
Nonada – E você sente que todos eles estão, de alguma forma, com você?
Edu – Sim, eu falo isso porque, quando eu andava com meu pai, desde pequeno, sempre tiveram muitos músicos e artistas em volta. E eu posso dizer que estou aprendendo mais com meu pai agora, do que quando ele estava vivo. Meu pai, para mim, era uma entidade. Ele pensava fora da caixinha, e estava sempre a uns 10, 20 anos na tua frente. Às vezes, estou dobrando a esquina e me dou conta de coisas que ele queria dizer para mim.
Não foi de um dia para outro que aprendi a tocar com o pai. Eu já tocava há muitos anos e pensava ‘quando será que o pai vai me chamar para tocar?’. A Sandra perguntava para ele e ele não respondia muito. Foi um dia que a gente colocou um “set de percussão”, a única coisa que o pai me dizia para aprender a tocar era “olha as minhas mãos”. [Edu faz o som na mesa, batucando com as mãos]. A genialidade dele pode ser percebida na atemporalidade das músicas dele. Parece um livro de cabeceira que tu sempre tem que ter do lado.
Nonada – Quais memórias mais antigas você tem em relação ao Cabobu?
Edu – O Cabobu é um projeto que ele já vinha pensado desde os anos 80, nessa ideia de fazer uma grande festividade para as pessoas. Ele pensava em como beneficiar as pessoas. Um belo dia, estávamos fazendo show aqui em Pelotas, nos anos 90, tocando sopapo, quando terminou perguntaram para o pai ‘que instrumento é esse?’.
O pai, pelotense, ficou preocupado, pensando que as pessoas não sabiam que o sopapo era da nossa matriz cultural. Se essa geração que está vindo agora, não sabe que instrumento eu estou tocando, alguma coisa estranha está acontecendo. E se tu perde uma parte da história, tu perde uma parte de si. Quando eu vi, o pai já estava bolando. Ele quis homenagear os três percussionistas daqui, o Cacá, o Boto e o Buxa (O Cabobu). Um dele nem era tocador de sopapo, mas era um músico importante de ser homenageado.
Então, ele veio aqui na Fragatta, falar com a dona Irani, na época, para perguntar quem poderia fazer os sopapos, quem seria o luthier. Ela disse que tinha uma pessoa que poderia ser e apresentou o Mestre Baptista. O grande desenhista foi o filho dele, que fez o grande protótipo a partir do Sopapo do pai. Eles fizeram 40 tambores. Convidaram vários artistas, como Paulo Moura e Naná Vasconcelos.
É tambor para cá, tambor para lá, mas, na verdade, o tambor é o veículo. O pai queria trazer a cultura local, dentro de cada região que fosse participar do projeto Cabobu. Por exemplo, Caçapava, tem dança. Tem a culinária, a medicina. O tambor é o comunicador dessas vertentes todas.
Nonada – O tambor como aquele que chama pro encontro, isso?
Edu – Muitas vezes, o tambor fica como o principal, porque ele é o veículo transmissor do pensamento de todas essas histórias. Quando ele pensou o Cabobu, ele imaginou que, assim como todo ano tem festa do vinho, Oktoberfest, que também pudesse ter esse encontro negro. Tiveram as duas edições, em 1999 e 2000, e agora essa lacuna.
Mas nunca pensamos que nunca mais iríamos fazer. Quando o pai distribui 40 tambores para as pessoas, ele não morre. Escutando as músicas do Giba, você sabe que é uma coisa única. No show da Lugarejo, você percebe que é uma mistura, tem uma coisa de rock, de samba, de jazz, tem uma musicalidade em torno do sopapo. Não ficou restrito às escolas de samba. O que o pai fez foi dizer que todo mundo poderia ter essa possibilidade. Teve o bata club, ou serrote preto, que a gente tocava. No momento de distribuir, tu quer que a coisa se espalhe. Nesses 23 anos, o pai deixou vários sinais para a gente, eu brinco que são ‘migalhas culturais’, que fomos nos apropriando.
Nonada – Que sinais, Edu?
Edu – Sinais de multiplicação do amor, do saber, do estar bem. Sinais que nos dizem que a percussão continua tão importante e que não estamos deixando morrer a nossa matriz, porque o sopapo agora foi tombado como bem imaterial da cidade de Pelotas. Deixar que a história seja contada verdadeira, e não deixar que a branquitude tome conta, porque senão, mais uma vez, daqui 10 anos, a gente não sabe dos nossos mestres e dos nossos griôs. O tambor é nosso. É o único instrumento que está no livro Bantu brasileiro. O Carnaval de Pelotas já foi considerado o segundo melhor do Brasil. As pessoas vinham de fora para vir para cá.
Quando tu vai trilhando esse caminho, tu vai aprendendo e reaprendendo essas coisas. Nesse caminho, muitas pessoas começaram a tocar sopapo, a estudar sopapo, a fazer história no sopapo. Mas a gente precisa lembrar do Giba, do Zé Batista, porque tinha uma época que as pessoas estavam fazendo um sopapo pequeninho, parecia umas cubaninhas, que não eram mais sopapo.
Faz nove anos que o pai faleceu, e eu vinha pensando nessa vontade de fazer o Cabobu, e algumas vezes tentaram se apropriar. Quando entrou a Sandra Narcizo, que já tinha sido produtora do pai, a gente começou a produzir, junto ao Zé Batista. Fazer um projeto é uma coisa séria e foi todo um pensamento de a que mãos entregar uma história tão bonita. Se eu tivesse falando contigo, 10 anos atrás me tirariam de louco, como se fosse sonho. Não, a gente é feito de sonhos.
Nonada – Imagino como vocês durante muito tempo sonharam com estar aqui e agora
Edu – A estrutura desse sonho começou a se concretizar quando um dia me chamaram para fazer uma reunião para fazer o tombamento imaterial do sopapo [patrimônio cultural de Pelotas]. Foi virtual, durante a pandemia, mas percebi que de pessoas negras, só tinha eu e o Zé Batista. Aí, eu pensei: ‘tem alguma coisa muito errada aí’. Eu fiquei pensando, como que eu, filho do Giba, vou assinar e falar por vários negros. Já falou com pessoal de terreiro? Já falou com a Restinga? Já falou com os grupos? Eu brincava até ‘como que o meu povo negro não sabe disso?’, ‘como que só eu vou fazer?’.
Nesse momento, eu criei um grupo que em dois dias tinha 800 pessoas. Eu nunca pensei que ia ter tantas pessoas negras juntas. Eu expliquei tudo que estava acontecendo e a tentativa de apropriação do sopapo. Porque daí isso vai para as escolas, para todos os lugares. Porque a gente sabe a história da Alemanha no Rio Grande do Sul, da Itália, da Polônia, e a história do povo negro é só a da corrente nos livros de história. Agora nos últimos anos, está sendo revisto. E se daqui uns anos forem ver a história do sopapo, não pode ser só um nome.
A história do Cabobu é da diversidade, é de quem está por trás. A nossa história foi contada pelos brancos, mas quando os negros começam a contar sua própria história, na sua oralidade, fica diferente. A gente tira esse espaço branco, para se tornar protagonista da nossa própria história. O homem branco, no geral, não sabe ter esse espaço que não seja do domínio. E para não ter esse espaço, a gente tem que estar guerreando.
E o tambor, é um instrumento de fala, de luta, de resistência. Pelo sopapo, sabendo que é negro, é nosso, podendo contar nossa história, a gente sabe que é verdadeira. E o Cabobu foi pensado nessas ‘migalhas’ para chegar nessa conclusão. A história vai ser contada pela gente, mas com espaço para todo mundo, porque tu não vai me ver fazendo uma Oktoberfest. Não vai rolar. Mas nas festas religiosas, nas festas negras, tem todos os tipos de pessoas.
Quando pensamos o Cabobu, pensamos, principalmente, nessa diversidade das pessoas. Quando tocamos com a [banda] Lugarejo, no palco ontem, lembramos que muitos músicos ali tocaram com o pai 25 anos. Eu também tentei me empoderar disso, porque não é fácil. Todo mundo interpreta seus ídolos, mas meu pai é meu ídolo maior.
Nonada – E como foi pensar a programação que estaria no palco principal?
Edu – Eu não me lembro de um palco com tanta diversidade negra fazendo um trabalho dentro de um festival, com tanta qualidade. Tem samba, reggae, vários gêneros e artistas com um talento infinito. Tudo foi escolhido com muito carinho e amorosidade. As pessoas estão ávidas, todo mundo com brilho nos olhos. Vi as pessoas, do palco, chorando e fiquei feliz que as pessoas estão dentro do show, tão emocionadas como a gente. A plateia estava no palco e os músicos na plateia. Eu me sinto muito honrado, porque não fiz sozinho. O pai não fez sozinho.
O Cabobu é isso, é te tirar fora da caixinha, te fazer olhar para o que estamos fazendo na coletividade. Olha quantas pessoas bonitas estão fazendo, assistindo, querendo, tudo em volta do sopapo. O que o tambor faz? O que o sopapo fez? Giba, sopapo, cabobu. Cabobu, giba, sopapo. Para mim, é uma coisa só.
Nonada – Edu, o sonho é que o Cabobu se torne anual?
Edu – A primeira coisa que a gente quer fazer, quando terminar o Cabobu, é sentar com todo mundo e planejar o próximo. Quero que fique na cidade. A gente lutou muito para o sopapo se tornar patrimônio, neste grupo Porto Alegre-Pelotas, não só eu e o Zé, mas um coletivo. Então, é nosso. O Cabobu é multiplicação.