Nesta terça-feira (23), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Ministério da Cultura anunciaram a retomada do acordo de cooperação técnica entre os órgãos. A parceria havia sido interrompida nos últimos anos e deve possibilitar uma atuação conjunta em ações como a criação do Museu da Democracia e a implementação da gestão do sítio arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, reconhecido como patrimônio mundial da Unesco.
No evento, realizado em Brasília, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, e a diretora e representante da Unesco no Brasil, Marlova Noleto, receberam fazedores de cultura e gestores públicos ligados à cultura e à diversidade para celebrar o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, comemorado no dia 21 de maio.
“É uma alegria celebrar a volta do Ministério da Cultura”, destacou Marlova. “Nesse Dia Mundial da Diversidade Cultural , vamos celebrar não apenas a riqueza de manifestações culturais potentes, mas também o papel que desempenham os diferentes grupos sociais. Não podemos esquecer que o Brasil está cheio de ódio, e precisamos estimular uma cultura de paz, o fim do preconceito, da intolerância religiosa, do racismo, e continuarmos juntos trabalhando para reafirmarmos o compromisso com os direitos humanos”.
Marlova também relembrou o Mondiacult, encontro de ministros da Cultura realizado em 2022 que estabeleceu a cultura como “um bem público global” e ratificou a diversidade cultural como central na formulação de políticas públicas e o papel da cultura na Agenda 2030.
A ministra da Cultura contou que todo o sistema do Ministério da Cultura está voltado a implementar ações que promovam a diversidade cultural. Margareth destacou que o governo está construindo a 4ª Conferência Nacional de Cultura, que será realizada no final do ano, além de uma conferência temática sobre diversidade.
“O Brasil é um país que se reinventa a todo momento na sua força cultural. O MinC está buscando construir a interface da matriz da diversidade cultural na política pública, [entendida como] a variedade de culturas, tradições, crenças, valores, línguas, formas de expressão presentes da sociedade”, lembrou. “Entretanto, a diversidade cultural também pode ser fonte de conflito e discrimição e é importante trabalhar pela inclusão. A sociedade precisa se aceitar e se compreender”, disse.
Desde 2007, o Brasil é signatário da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada pela Convenção Geral da Unesco em 2005. O documento estabelece orientações para a construção de políticas públicas dos países signatários visando a promoção da diversidade cultural. A proteção das expressões culturais de grupos como os povos indígenas e outras minorias foi um marco estabelecido pela Unesco, que vem incentivando ações voltadas para igualdade de gênero, protagonismo indígena, antirracismo, direitos LGBTQIA+s, entre outras temáticas.
O Brasil já conta com mecanismos como a Política Nacional Cultura Viva, de 2010, e a Secretaria de Diversidade Cultural, criada na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Com a retomada do MinC, ações afirmativas estão sendo criadas junto às ações lançadas este ano pelas secretarias e entidades do MinC, como o edital Ruth de Souza e o Prêmio Carolina Maria de Jesus.
A Lei Paulo Gustavo também vem sendo trabalhada de forma a incentivar que municípios e estados adotem ações de diversidade na distribuição dos recursos, informou a assessora de diversidade e participação social do MinC, Mariana Braga. “Celebrar a diversidade cultural é também elaborar políticas públicas sem esquecer das violências sofridas pelos indivíduos e grupos ao longo da nossa história, compostas por períodos de tentativas de apagamento com graves consequências”, destacou.
Falas representativas de grupos sociais marcaram o encontro
Fazedores de cultura representantes de grupos sociais diversos lembraram as violências que vivenciam e reafirmaram a importância da cultura como ferramenta de transformação social. Pautas LGBTQIA+, periféricas, indígenas, quilombolas e das pessoas com deficiências foram contempladas pelo conjunto de representantes convidados pelo Ministério da Cultura.
“Qual é o projeto pensado pras periferias?”, refletiu a produtora cultural Meimei Bastos, contando que no território periférico onde nasceu não há cinemas, nem museus ou teatros. “Quando a gente nasce em uma quebrada sem acesso à cultura isso não significa que a gente não produz cultura. Estou falando sobre hip hop, grafite, cultura popular, quadrilhas juninas”.
Já o rapper Mano Dáblio defendeu o protagonismo dos artistas com deficiência no fazer cultural. “Nos procuram só para fazer uma ficha técnica, pontuar no projeto. Nós queremos protagonizar, precisamos ocupar e liderar os espaços. O movimento cultural é plural, então é importante afirmar que somos importantes, que existimos e resistimos todos os dias”.
Confira trechos de cada fala:
Mãe Baiana de Oyá, comendadora da Rede de Religiões de Matriz Africana
“Que os nossos ancestrais nesse momento possam estar conosco, porque aqui nós viemos para afirmar que a cultura desse país precisa ser valorizada. O Brasil precisa da nossa cultura, que atravessou o oceano dentro de um porão de um navio negreiro, precisa das nossas comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, ciganos, povos de terreiro”.
Ruth Venceremos, artista drag queen
“Estamos lutando contra a cor cinza, estamos ocupando um espaço que nos últimos quatro anos foi a cor cinza, que aniquilou qualquer possibilidade de discutir o que é o povo brasileiro em sua essência. E o povo brasileiro é diversidade. Direitos culturais têm que se constituir como política de Estado para que não aconteça de novo o que aconteceu no governo passado. Hoje é um momento histórico, porque para existirem direitos culturais nós precisamos existir. Nós, que somos o país campeão de assassinatos de LGBTQIA+, precisamos mudar essa realidade. E essa realidade só vai mudar com a cultura e a arte. Reafirmo a importância de ter fomento sim para os segmentos que aqui estão, porque nós somos produtores e produtoras de cultura. A cultura em sua multiplicidade é o alimento da nossa alma.”
Mano Dáblio, poeta, rapper e ativista da acessibilidade cultural
“Nasci na periferia, passei pela rua, passei pelo abrigo. Resisti e acredito que faz parte da nossa vida. E nessa resistência e nesses espaços eu entendi que a diversidade também é oriunda de periferia e muitas vezes a diversidade não tem um núcleo familiar de acolhimento, de apoio. O movimento cultural é plural, então é importante afirmar que somos importantes, que existimos e resistimos todos os dias.
Convive com muitas pessoas que dependem da mudança de companheiros que às vezes criam barreiras pra gente, com suas atitudes, seus comportamentos e às vezes não olham pra gente da mesma forma. São editais, tantas coisas que acontecem e aí quando precisam da gente nos procuram só pra fazer uma ficha técnica, pontuar no projeto. Nós queremos protagonizar, precisamos ocupar e liderar os espaços. Todo dia o sistema quer nos eliminar. Mas eu gosto de pensar o seguinte, independente de quem queira tirar nossa vida, ‘nós morre, nossa obra fica. Resista’.”
Meimei Bastos, professora e produtora cultural
“Eu cresci num lugar onde não existem museus, não há cinema, teatro e essa falta de acesso diz muito sobre o projeto que se pensa para essas pessoas que vivem nesses territórios. Qual é o projeto pensado pras periferias? Eu faço parte do slam, faço parte de um ponto de cultura que tem a ideia de descentralizar a cultura. Nós não temos espaços públicos para realizar nossas atividades e essa luta tem que ser de todes. Quando a gente nasce em uma quebrada sem acesso à cultura isso, não significa que a gente não produz cultura. Estou falando sobre hip hop, grafite, cultura popular, quadrilhas juninas. A cultura é um espaço importante para que a gente possa sonhar.”
Selma Dealdina, da coordenação da articulação das comunidades negras rurais quilombolas
“Nos quilombos, vocês vão encontrar o congo, a marejada, maçambique, jongo, tambor de crioula, vão encontrar também os terreiros de umbanda, candomblé ou de cabula. Vão encontrar templos católicos ou evangélicos, que fazem suas respectivas festas. Nesse fazer, o mais importante é que a gente contribui diretamente, porque acham que nós não fazemos parte do PIB desse país. Mas muitos fazedores de cultura colocam sua aposentadoria mensal para garantir a fita de cetim para que seu grupo [de cultura popular] saia bonito. Dentro das comunidades quilombolas, a gente parte do princípio de que contribuímos significativamente para manter a cultura funcionando e, muitas vezes, na base da teimosia.”
Larissa Pankararu, integrante do Ministério dos Povos Indígenas
“Foram 6 anos muito difíceis. Foram 522 anos também muito difíceis, e hoje a gente ocupa lugares que tantos nos negaram para dizer que estamos vivos e que apesar de quererem nos matar, estamos vivos. Vamos continuar e não aceitaremos nada além do que é nosso por direito. Não aceitaremos o marco temporal, não aceitaremos que passem por cima da gente, das nossas terras. Não aceitaremos perder os mais jovens, os mais velhos, nossas parteiras, nossos caciques. Vamos ocupar e demarcar esse território que chamam de Brasil.”