Arte: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo

MinC vai recriar Comitê de Cultura LGBTQIA+ e destinar R$ 600 milhões aos pontos de cultura em 2023

A diversidade cultural voltou a ser um eixo das políticas públicas do Ministério da Cultura (MinC). Após quatro anos em que as expressões culturais LGBTQIA+ foram silenciadas ou mesmo censuradas, artistas foram perseguidos e comunidades indígenas e quilombolas sofreram tentativas de aculturação, o novo MinC prepara ações concretas de fomento a culturas diversas já em 2023.

O Nonada Jornalismo conversou por e-mail com a secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Márcia Rollemberg, que coordena uma pasta composta por três diretorias: Culturas Populares, Diversidade Cultural e Cultura Viva, voltada aos pontos de cultura. 

“A Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural desempenha um papel estratégico na transformação social alinhada à política cultural de base comunitária ao reconhecer estruturas de poder desiguais, desafiar os padrões dominantes e criar espaços alternativos de pensamento e ação para a cultura”, avalia Márcia.

Uma das principais ações previstas para este ano é a retomada da Política Cultura Viva, com o investimento de R$ 600 milhões oriundos da Lei Aldir Blanc 2, além de outros R$ 100 milhões de emendas parlamentares. A previsão é que os recursos fomentem cerca de 5 mil pontos de cultura em todo o Brasil, com a meta de chegar em todos os municípios do país. Outra novidade é o programa Agente Cultura Viva, “que terá como objetivo formar e qualificar anualmente pelo menos 1.000 agentes culturais”.

As culturas LGBTQIA+, que foram escanteadas no último governo, também terão lugar dentro da estrutura da secretaria. Além da recriação do Comitê Técnico de Cultura LGBTQIA+, instância de controle social LGBTQIA+ dentro do Ministério da Cultura, o governo deve lançar uma instrução normativa para garantir ações afirmativas nos editais. No edital dos Pontos de Cultura, haverá uma linha específica para iniciativas que trabalham com direitos humanos. Outra premiação vai destinar recursos a cerca de 1000 iniciativas que trabalham com diversidade.

Já o edital Sérgio Mamberti – nomeado em homenagem ao ator e primeiro secretário de Diversidade Cultural do MinC, durante o governo Lula 1 – deve premiar iniciativas de diversidade cultural, incluindo uma linha específica para culturas indígenas.  A secretaria também promete atuar para superar um dos principais obstáculos para a criação de políticas perenes para as culturas populares: a falta de indicadores sobre os agentes que atuam nesta área, já que faltam pesquisas que incluam o setor no âmbito das economias criativas e culturais. Nesse sentido, a secretária revela que o primeiro passo será a “digitalização do acervo oriundo das inscrições enviadas aos Editais de Culturas Populares, contemplando mestres e mestras, instituições, grupos e coletivos culturais.” 

Confira a entrevista na íntegra:

Nonada – A senhora participou das primeiras ações de diversidade cultural na gestão do Ministro Gilberto Gil, correto? Passados todos esses anos, qual é o objetivo da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural atualmente? 

Márcia Rollemberg – Assumi a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural de outubro de 2011 a janeiro de 2015, na gestão da Ministra Ana de Hollanda e, posteriormente, com a Ministra Marta Suplicy. De 2009 a 2011, estive como Diretora no IPHAN, uma experiência que foi essencial para depois fazermos a gestão e o redesenho do Programa Cultura Viva e conquistarmos a Lei º 13.018/2014, que instituiu a Política Nacional Cultura Viva. Nos últimos anos, a política de cultura sofreu retrocessos e paralisações que prejudicaram a implementação e ampliação do Sistema Nacional de Cultura. Lembrando que a Política Nacional Cultura Viva é a primeira política de Base comunitária do país, e traz a diversidade em seu DNA, tendo como beneficiários prioritários os povos, grupos, comunidades e populações em situação de vulnerabilidade social. O objetivo da Secretaria é retomar o ritmo da pactuação federativa e municipalizar. 

Ponto de Cultura Menino de Ceilândia (DF) (Foto: MinC/reprodução)

Nonada – Como a senhora e sua equipe pretendem consolidar de fato a diversidade cultural como eixo da política pública de cultura? 

Márcia Rollemberg – Consolidar a diversidade cultural como eixo da política pública de cultura é reativar a rede de Pontos e Pontões de Cultura. Para isso, temos a nosso favor o fato de que a LOA destina 70 milhões à Política Nacional Cultura Viva (PNCV), e que tanto a Lei Paulo Gustavo quanto a Lei Aldir Blanc também vão contribuir, sendo que a Lei Aldir Blanc 2 destina cerca de 600 milhões anuais à PNCV.  Além de mais de 100 milhões em emendas parlamentares que fomentam esse campo.

Com isto, pretendemos georreferenciar os mais de 4.355 Pontos de Cultura, bem como garantir que os Pontos e Pontões tenham acesso às políticas de fomento, para que possamos alcançar a meta de chegar a todos os 5.568 municípios do país. 

Outra questão importante é a estruturação da nossa Secretaria, pois, além da Diretoria encarregada da gestão da Política Cultura Viva, temos mais duas diretorias, uma da diversidade cultural e outra para as culturas populares, o que nos permite trabalhar com a complexidade e a amplitude da diversidade cultural brasileira, explorando interfaces da sua matriz no conjunto das políticas públicas. Portanto, o campo da diversidade estará focado na construção e integração de marcos legais e programáticos, na construção e aplicação de indicadores de avaliação, na internalização dessa matriz no Ministério da Cultura, na interface com os demais ministérios – lembrando das especificidades dos segmentos da diversidade presentes nos campos da educação, do meio ambiente, dos direitos humanos e da saúde, dentre outras políticas setoriais –, na participação em colegiados e conselhos e, finalmente, no cumprimento dos preceitos internacionais das Convenções, das quais o Brasil é signatário. 

A Diretoria de Promoção das Culturas Populares terá os desafios de realizar o Seminário Nacional das Culturas Populares, retomando debates que dialoguem com a IV Conferência Nacional de Cultura e contribuindo na elaboração do novo Plano Nacional de Cultura, além de promover a reformulação do Plano Setorial de Culturas Populares que teve edição única publicada em 2012. O objetivo é atualizar as ações e as diretrizes específicas para o segmento e reorganizar as propostas para o planejamento atual e futuro da área. Com destaque para aprovação do PL 1176/2011, dos Mestres e Mestras, e o reconhecimento e valorização dos seus notórios saberes.

Vamos lançar o Edital para termos de compromisso cultural com Pontões de Cultura, visando a atender as principais demandas da rede e favorecer o acesso aos recursos de fomento para a Rede do Cultura Viva e as comunidades culturais. Também é meta a revisão, atualização e complementação da Instrução Normativa nº 8, de 11 de maio de 2016, que regulamenta a Política Nacional Cultura Viva, com o objetivo de fortalecer os mecanismos de descentralização orçamentária para os estados e municípios. Articular os gestores e a Comissão Nacional de Pontos de Cultura, com o mesmo objetivo de ampliação desse acesso, com circulação de modelos básicos de editais para facilitar a aplicação dos recursos da Lei Paulo Gustavo e da Lei Aldir Blanc II, pelos entes federados, nas áreas de competência da Secretaria. 

Lançaremos o Edital de Premiação Sérgio Mamberti, mais informações em breve. É importante destacar também a criação do programa Agente Cultura Viva, que terá como objetivo formar e qualificar anualmente pelo menos 1.000 agentes culturais. Esses agentes receberão bolsas mensais e desempenharão um papel fundamental como promotores da Política Cultura Viva e da diversidade cultural nos territórios, contribuindo para fortalecer e expandir a rede de Pontos e Pontões de Cultura.

É preciso ressaltar, também, que até 2016, o Brasil desempenhou um papel importante no cenário das Convenções da Unesco, em especial, da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Esse protagonismo agora é retomado, a partir das parcerias que estamos iniciando com organismos internacionais, com destaque para a Unesco, no sentido de fortalecer a efetividade das Convenções da área da cultura e da própria Constituição Federal, na operação da política pública de cultura. Nesse sentido, o investimento realizado hoje na cultura é um indicador da prioridade da política cultural, o que já impacta no nível local, regional e nacional e, certamente, irá impactar também nas relações internacionais e no posicionamento do Brasil para um nível mais estratégico e indutor. A implementação efetiva dessas diretrizes requer o compromisso contínuo dos governos, o engajamento da sociedade civil e a sensibilização da população em geral para a importância da diversidade cultural como um valor fundamental a ser preservado e promovido.

A Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural desempenha um papel estratégico na transformação social alinhada à política cultural de base comunitária ao reconhecer estruturas de poder desiguais, desafiar os padrões dominantes e criar espaços alternativos de pensamento e ação para a cultura. É por meio da arte, da expressão cultural e do engajamento social, que a cultura inspira tais mudanças, constrói consciência coletiva e promove a busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

Nonada – O país passou por anos bastante difíceis, em que culturas LGBTQIA+ por exemplo, sofreram apagamento no âmbito das políticas públicas. No passado, o MinC chegou a fazer ações pontuais especificamente no âmbito das culturas LGBTQIA+, com seminários e eventos. Está entre os objetivos do MinC pensar em políticas culturais mais perenes para esse grupo?  E há possibilidade de ser feito de forma transversal com outros ministérios? 

Márcia Rollemberg – Sim, para além do Ministério da Cultura, o Governo Federal criou em todas as pastas do Executivo as Assessorias de Participação Social e Diversidade, chefiadas por uma Secretaria própria na Casa Civil. Essas assessorias garantem a transversalidade das pautas da diversidade, entre outras. O Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, garante o desenvolvimento, aplicação e fomento de políticas públicas para as Culturas LGBTQIA+. 

Neste sentido, compõe o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania; retomará o Comitê Técnico de Cultura LGBTQIA+, instituído em 2015 como instância permanente de controle social LGBTQIA+ dentro do Ministério da Cultura; e ainda está desenvolvendo uma Instrução Normativa de ações afirmativas e acessibilidade que vai incluir a cultura LGBTQIA+. 

Pontualmente e a título de ação mais direta, o segmento é público alvo dos dois Editais de Premiação: o Edital para Pontos e Pontões de Cultura no âmbito da Política Nacional de Cultura Viva, no qual temos um Pontão de Cultura e Direitos Humanos, e a premiação de mais de mil iniciativas de/e para pessoas físicas, entidades e coletivos, de setores que compõem a diversidade, sendo que a comunidade LGBTQIA+ estará presente, permeando todas essas manifestações.

Ponto de Cultura Arte em Movimento, no município de Pão de Açúcar, Alagoas (Foto: MInC/reprodução)

Nonada – Replico a pergunta com relação às culturas de comunidades tradicionais, como povos indígenas e quilombolas. Como elas serão contempladas pelos projetos da secretaria?

Márcia Rollemberg – As três diretorias da SCDC trabalham em harmonia com as políticas públicas de cultura desenvolvidas pelo Ministério da Cultura. Neste ano, voltamos a participar do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocupando junto com a Fundação Cultural Palmares, a responsabilidade de acompanhar e aprimorar as políticas públicas para os povos e comunidades tradicionais. Na gestão da Secretaria, transversalmente todas as Diretorias atendem essas populações e formalizam, monitoram e avaliam projetos e ações que as beneficiam, reconhecendo sua produção cultural, os saberes e os fazeres de mestres e mestras desses territórios tradicionais. Manifestações culturais como o Jongo, a Congada, o Maculelê, o Lundum, as Pinturas Corporais, a Arte Indígena, entre outras, são expressões que, ao integrarem essas comunidades, valorizam as identidades e fortalecem a cidadania cultural de todos os envolvidos.

No Edital de Premiação Sérgio Mamberti teremos, ainda, um Eixo específico para atender as Culturas Indígenas, voltado para a promoção e a valorização das práticas e os conhecimentos deste segmento na diversidade cultural do Brasil. Ao reconhecer e premiar expressões artísticas, conhecimentos tradicionais e práticas culturais indígenas, o prêmio contribui para preservar os saberes ancestrais e tradicionais, promovendo a inclusão e visibilidade dos povos indígenas na sociedade, combatendo estereótipos e fortalecendo sua autonomia cultural.

Nonada –  As culturas populares ainda carecem bastante de políticas públicas. Prova disso é que esse grupo de fazedores não é levado em conta, por exemplo, quando se fala em mercado na cultura, não há números que mapeiem esses fazedores. Esse mapeamento e outras ações no campo da formulação de indicadores das culturas populares é algo possível dentro da secretaria?

Márcia Rollemberg – A reestruturação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC) é um dos grandes desafios da atual gestão do Ministério da Cultura. Uma das urgências, é a integração de cadastros. No âmbito da Política Nacional de Cultura (instituída pela Lei nº 13.018/2014), o Cadastro Nacional de Pontos e Pontões de Cultura é a principal estratégias de mapeamento, em plataforma digital, livre e colaborativa, hoje com mais de 4.300 cadastros certificados – com diferentes atuações no âmbito das culturas populares, a principal expressão de base comunitária. 

Acreditamos ser fundamental registrar e disponibilizar informações acerca das iniciativas culturais mantidas e realizadas pelos fazedores das culturas populares, destacando seu protagonismo e importância histórica e identitária para a cultura brasileira. Por isto, estamos providenciando a digitalização do acervo oriundo das inscrições enviadas aos Editais de Culturas Populares, contemplando mestres e mestras, instituições, grupos e coletivos culturais. 

Nonada – Outra questão, ainda sobre esse tema é a valorização dos mestres da cultura popular. Sabemos, por exemplo, que existe um projeto de lei tramitando desde 2011. Por que se levou tanto tempo para que esse assunto voltasse à pauta pública e como é possível avançar?

Márcia Rollemberg – O PL nº 1176/2011, apresentado pelo Deputado Edson Santos, em 27/04/2011, à Comissão de Cultura – CCULT da Câmara dos Deputados, “Institui o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e Mestras dos saberes e fazeres das culturas populares”. Ele foi apensado ao PL nº 1.786/2011, de autoria da Deputada Jandira Feghali, que “Institui a Política Nacional Griô, para proteção e fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral”.

O Ministério da Cultura, por meio de suas secretarias finalísticas e vinculadas, já se manifestou sobre esses projetos de lei, compondo um entendimento pacificado de aprovação. Nestes termos, podemos afirmar que o tempo de tramitação no Congresso Nacional não depende das decisões do Ministério da Cultura, pois há a independência dos poderes constituídos. Por outro lado, é bom frisar que esse PL nº 1176/2011 passou por várias discussões junto aos mestres e mestras, pesquisadores, ativistas, entidades e movimentos culturais de todo o Brasil, incluindo debates presenciais e de forma online pela Comissão de Cultura da Câmara Federal, universidades e outras instâncias federativas. 

Passaram-se alguns anos, é verdade. Estes últimos quatro anos foram de estagnação e supressão dos debates e da participação popular nas políticas do Ministério, mas o momento atual é de renovação de lutas, dos diálogos e de retomada de muitos projetos e iniciativas públicas. Estamos acompanhando de perto a tramitação desse projeto de lei na Câmara Federal, promovendo esta discussão e trabalhando junto com a sociedade civil para que a Política Nacional de reconhecimento de mestres e mestras das culturas populares seja uma realidade – mesmo porque esta é uma das competências da Diretoria de Promoção das Culturas Populares desta Secretaria – e esteja integrada, em sua criação, com a Política Nacional Cultura Viva, na qual eles são reconhecidos como agentes Cultura Viva e seus coletivos e organizações como Pontos de Cultura.

Nonada – O retorno dos pontos de cultura está sendo bastante aguardado pelos fazedores de cultura. Em sabatina na Câmara dos Deputados, a ministra Margareth Menezes revelou que serão R$ 600 milhões por ano para o programa, correto? Esse retorno ocorrerá ainda este ano?

Márcia Rollemberg – A retomada da Política Nacional de Cultura Viva (instituída pela Lei nº 13.018/2014) e dos Pontos de Cultura é um dos principais compromissos do Presidente Lula e da Ministra Margareth Menezes, sendo a única política cultural finalística citada especificamente no Programa de Governo e nas falas do Presidente. Em 2023, serão destinados mais de R$700 milhões para a política Cultura Viva, seja por meio de editais próprios, de emendas parlamentares, da destinação de recursos da Lei Paulo Gustavo por parte de Entes Federados, e por meio da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento. 

A Ministra assumiu o compromisso de destinar, na regulamentação própria, 20% dos recursos provenientes da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento para a Cultura Viva neste ano, o que significa R$600 milhões para a política de base comunitária do Sistema Nacional de Cultura. Em estudos preliminares, a estimativa é de que o conjunto dos recursos previstos para 2023 possibilitem o fomento de cerca de 5 mil Pontos e Pontões de Cultura – um investimento, no mínimo, 10 vezes maior do que o melhor momento da Cultura Viva, ao longo dos seus quase 20 anos.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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