Ellen Alves, especial para o Nonada Jornalismo*
O apagamento histórico da presença do negro e sua participação na formação do país vem sendo revisto a partir do trabalho de pesquisadores e pesquisadoras que produzem conhecimento nas universidades. Com o aumento do número de estudantes negros no meio acadêmico, a perspectiva afro-brasileira vem sendo incorporada nos currículos, pesquisas e trabalhos de extensão.
Para além do espaço senzala e casagrande, homens e mulheres atuaram como agentes históricos de relevância em variadas áreas de atuação. A narrativa oficial sobre a presença dos africanos e seus descendentes no país negligencia aspectos dolorosos e complexos dessa experiência e influencia no reconhecimento e importância dos personagens negros – do passado e do presente.
Esse apagamento não fica restrito a personagens do passado. Acontece em diversos formatos, e por vezes, de forma velada. Uma pesquisa acadêmica recente revela como um expoente da cultura nacional – nesse caso da cultura queer – sofreu, literalmente, os efeitos do apagamento ao ter sua história contada para o cinema. João Francisco dos Santos, popularmente conhecido como Madame Satã, foi tema de filme homônimo em 2002, protagonizado por Lázaro Ramos e dirigido por Karim Aïnouz.
A biografia chamou a atenção das alunas do curso de graduação de Midialogia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Luiza de Moura e Milena Santa Cruz para um detalhe importante que influencia diretamente na história do filme e na qualidade da experiência do espectador, a iluminação.
“Nos incomodou a falta de iluminação correta para o corpo negro, no caso do Lázaro Ramos. A partir disso, pensamos em analisar se esse era um fato que influenciava na história e refletia as escolhas da equipe de produção – majoritariamente branca – do filme.” A fala de Luiza e Milena remete automaticamente ao questionamento: A “falha” cometida pela direção de fotografia do longa metragem seria percebida caso as autoras do artigo não fossem negras? Neste caso, o incômodo inicial devido à baixa iluminação causaria desconforto a qualquer um que se dispunha a assistir o filme, mas o recorte racial seria percebido a ponto de virar um artigo acadêmico?
Quando apresentada a possibilidade da produção do artigo a partir dessa percepção, a opinião do professor branco que orientava o trabalho chamou a atenção das alunas. “Quando compartilhamos com o professor responsável pela matéria, ele sugeriu que assistíssemos novamente para confirmar se era realmente uma questão pertinente ou se era defeito do projetor da sala.”
E não parou por aí. O ineditismo do tema proposto expôs as dificuldades de encontrar estudos com embasamento teórico focado no estudo de cores sobre o panorama racial no cinema brasileiro. Foi preciso criar um modelo de comparação com o cinema internacional para chegar ao resultado do recorte proposto pelas alunas.
“O processo [de pesquisa] foi bastante trabalhoso… precisamos ir atrás de bibliografias já conhecidas sobre os estereótipos de personagens negros no cinema e buscar comparativos entre os estereótipos norte-americanos e brasileiros, buscar autores e autoras que explicitassem como os movimentos de câmera refletiam escolhas colonialistas e por consequência, racistas. A parte mais difícil, com certeza, foi o estudo de cores devido à escassez de bibliografias sobre estudo de cores considerando as peles negras, principalmente no cinema brasileiro.”
A reconstrução da história anti-oficial
A presença de pesquisadores negros e negras no meio acadêmico brasileiro é um fenômeno recente e tem sido objeto de algumas reflexões. Em “O confinamento racial no mundo acadêmico” (2005), o pesquisador José Jorge Carvalho já apontava a raridade de encontrar pares negros pelos corredores acadêmicos. No artigo “Intelectualidade negra e produção do conhecimento na Educação Brasileira” (2016), o pesquisador Otair Fernandes de Oliveira reflete sobre as mudanças do cenário intelectual brasileiro com o aumento do número de pessoas negras na academia nas décadas de 1980 e 1990.
“A partir dos anos 80 com a democratização do país e o revigoramento do movimento social negro brasileiro a entrada de negro(as) nas universidades como parte da luta pela superação do racismo, em prol do direito à educação e do conhecimento passou a ser reinvindicada. Nos anos de 1990 a presença, ainda tímida, de pesquisadores negros(as) nas universidades, sobretudo, nas públicas, já se fazia sentir nos círculos intelectuais brasileiros”, explica. Sinais das mudanças que estavam por vir nas décadas seguintes.
A inserção de negros e negras no meio acadêmico “que tem proporcionado a produção de um tipo de conhecimento diferente do então produzido nas universidades brasileiras”, diz Carvalho. Esse novo conhecimento científico passa, por exemplo, pela compreensão histórica e contemporânea centrada na racialidade. Embora previsto no artigo 216 da Constituição Federal, o direito à memória de pessoas negras que aqui foram escravizadas e de seus descendentes sofrem constantemente com o descaso e desinteresse das instituições brasileiras, inclusive, na percepção de negritude de jovens e crianças quanto a sua relevância na sociedade.
Wellyson Aguiar, mestrando em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), é exemplo disso. Morador da comunidade Coqueiral, em Maracanaú, região metropolitana de Fortaleza, o jovem se entendeu como pessoa negra, após o ingresso na Universidade em 2015, através dos espaços de formação política. “Através dos espaços de formação política e muitos papos trocados com pessoas negras orgulhosas de quem eram, foi onde fui me percebendo no mundo que me rodeava. Me percebi negro só na Universidade por conta do racismo.”
Foi na disciplina de Geografia Agrária e a partir da iniciação científica que Aguiar teve contato com o tema de sua pesquisa, Quilombos do Ceará. A postura questionadora fez de Wellyson um aluno visado e tachado de “militante” por parte da academia. Influenciou, até mesmo, no processo de seleção para o mestrado. “Na etapa da entrevista, fui questionado sobre o tom ‘militante’ do que eu escrevia, mas argumentei através dos fatos e da minha trajetória dentro da academia que isso não tinha surgido do nada.”
Ao longo da pesquisa, casos de racismo científico foram vivenciados. De professores chamando o renomado intelectual Milton Santos de ‘preto metido’ ao silenciamento dentro da Geografia, Wellyson resiste e se inspira nos quilombolas ao se deparar com o reconhecimento dos moradores das comunidades que pesquisa. “Há uma identificação sem igual conosco pesquisadores negros quando chegamos nas comunidades. Conseguimos acessar informações, pessoas e temos conversas extremamente profundas e abertas.”
Wellyson reflete sobre como a consciência dos feitos e trajetória do negro no Brasil influencia na luta por direitos e reconhecimento relacionados à população negra e também sobre as diferentes perspectivas do “ser negro” em um país de dimensões continentais como o Brasil. “ A apropriação da nossa história e o incorporar no nosso dia a dia é apenas o primeiro passo na retomada e luta por direitos. Acredito que o conhecimento deve ser compartilhado, os grupos negros ao longo da história do Brasil têm nos mostrado que a nossa saída é a criação de pontes entre nós mesmo, mas que não podemos cair também no isolamento”, comenta Wellyson. “O negro do Rio de Janeiro não é o mesmo negro no Ceará, bem como o negro de Santa Catarina não é o mesmo negro no Pará”, pontua.
O pesquisador comenta também o mito da insuficiência de provas sobre a contribuição negra na formação do seu estado Ceará e como discursos que relativizam a escravidão são combatidos pela população do Quilombo do Cumbe território e objeto de sua pesquisa. “Os quilombos têm se organizado a níveis nacionais e locais pela luta por direitos, tanto que pela primeira vez o IBGE tem produzido dados sobre esta população que resiste a tanto tempo. É uma violência e irresponsabilidade racista com os fatos históricos e geográficos da nossa formação, como se a escravidão fosse algo menos ruim para população negra no Ceará.”
Aguiar completa: “De acordo com o próprio IBGE, nosso povo marca mais de 70% do total da população, mas ainda somos sub representados nas esferas públicas da educação, política, cultura e etc.. e isso não quer dizer que não há resistência por nossa parte.” Para o pesquisador, as comunidades quilombolas ganham visibilidade e saem fortalecidas quando são protagonistas de suas próprias histórias. “No caso do Quilombo do Cumbe, na qual construo minha pesquisa em conjunto com o território e não são simples objetos, sua formação se confunde com a de Aracati, uma das vilas mais antigas do Estado, mas isso pouco aparece na historiografia oficial dos documentos! O movimento Quilombola e Indígena têm sido essenciais nos rompimentos desses paradigmas presentes nos discursos”, finaliza.
Apagamento histórico
O historiador, professor e mestrando da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Diego Rogério, chegou ao recorte de sua pesquisa de mestrado justamente ao questionar o apagamento histórico de João Cândido, o Almirante Negro, importante personagem de um capítulo da história do Brasil, a Revolta da Chibata.
O movimento, ocorrido na Marinha brasileira em novembro de 1910, foi organizado em protesto contra os castigos físicos que os militares de baixa patente recebiam, negros em sua maioria. Os tratamentos abusivos recebidos dos oficiais, que não raro recorriam à chibata como forma de punição, teve como um de seus líderes João Cândido Felisberto, filho de ex-escravizados.
A Revolta da Chibata expõe a origem violenta da República brasileira, que já naquele momento demonstrava ignorar as questões raciais e sociais. Segundo o historiador, o fato de João Cândido ser negro contribui para a invisibilização de sua memória além de contribuir para marginalização da história do negro no Brasil.
“Para entender o processo de apagamento da história afro-brasileira, é preciso considerar que a marginalização da população negra consiste em tirar dela a autoestima e a capacidade de se enxergar em outra condição que não seja inferiorizada pelo branco. A desumanização é efeito e intenção do racismo, e apagar a história de um povo é uma das formas de desumanizar esse povo.”
De acordo o historiador, fortalecer a memória de personagens importantes para a história negra, passa, necessariamente, por trazê-los sob um ponto de vista popular. Antes de chegar ao Almirante Negro como objeto de pesquisa para o mestrado, ele já havia pesquisado durante a licenciatura em História, sobre as origens do Pantera Negra nos quadrinhos e sua relação com os negros e os Direitos Civis nos EUA da década de 1960. Com João Cândido, além da continuidade ao recorte de sua pesquisa, ele pode unir um herói nacional invisibilizado com um gênero de literatura popular.
“Após formado, me aprofundei nos estudos sobre Raça e Primeira República no Brasil, o que me aproximou da história da Revolta da Chibata e me gerou fascínio pela figura do João Cândido, mas quanto mais pesquisava e aprendia sobre ele, mais chamava minha atenção o apagamento histórico que sofreu. Sendo assim, no mestrado, resolvi conectar as duas coisas: elaborar um projeto de quadrinhos sobre João Cândido enfatizando seu heroísmo e criticando o apagamento histórico que sofreu.”
Ao lançar luz sobre a história de João Cândido, por meio de uma pesquisa acadêmica, Rogério propõe um novo olhar as questões como memória e pertencimento do povo preto no país, além de contestar narrativas históricas disseminadas por veículos de comunicação que relacionam ao negro uma realidade limitada à escravidão e pobreza.
“Faço questão de destacar que João Cândido, embora gaúcho, construiu sua história como um marinheiro negro com forte ligação com o Centro do Rio e nunca afastado de sua origem humilde, vivendo seus últimos anos em São João de Meriti (Município localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro), em uma casa que ainda hoje é habitada por sua família e seu último filho vivo, Candinho”, diz.
Para o pesquisador, “as narrativas históricas tradicionais e propagadas pelos principais veículos de mídia, como cinema e TV, sempre fizeram questão de abordar a corte, a burguesia e a elite branca, resumindo a vida negra à escravidão e pobreza. Esses aspectos, de fato, estão presentes na história da população negra, mas não como essência de seu povo, mas como marcas de um racismo imposto. Pesquisar um personagem negro que teve como ato heróico causar medo no governo federal e forçá-lo a dar fim a um castigo físico de origem escravocrata, sendo esse personagem uma pessoa de áreas periféricas, como nós, é uma forma de dizer que nossa história não se resume apenas a opressões”.
Ellen Alves
Ellen Alves é jornalista, redatora, apaixonada por carnaval e fã da cultura popular. Carrega consigo o interesse em descobrir diferentes formatos e narrativas. Escreve sobre raça, gênero, cultura, meio ambiente e educação.