Ballet Paraisópolis, em São Paulo (Foto: divulgação)

Audiência pública debate estratégias para promover os direitos culturais das periferias

“Favela não é problema. Favela é cidade e solução”. A fala de Marielle Franco ressoou em um telão no Plenário 10 da Câmara dos Deputados, abrindo a audiência pública da Comissão de Cultura na semana passada. Convocada pela deputada Benedita da Silva (PT), a mesa “As periferias no centro das políticas culturais do Brasil” debateu as condições históricas e estruturais das comunidades periféricas brasileiras, entendendo que a valorização sociocultural ocorre por meio da ação e resultado de políticas públicas. Segundo os convidados, as periferias, ocupadas historicamente pelas populações negras, devem ser colocadas ao centro como local social de destaque. 

Iamara da Silva Viana, doutora em História, com ênfase em História do Brasil e História da Escravidão no Brasil, descreveu que “a questão da cultura brasileira não pode deixar de ser pensada como resistência”. A pesquisadora comentou sobre as diversas formas de luta do povo negro. “Foram quase 100 anos de existência, de resistência, mas existem outras formas de resistência, não por acaso nós estamos aqui”. 

“Quando falamos de cultura afro-brasileira, estamos falando de saberes e fazeres envoltos em uma rede de valores que dão sentido à nossa vida como pessoa, como brasileiros e como seres humanos”, explicou Cristóvão Luiz, representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conaq). 

Para comunidades tradicionais, a ideia do tempo, por exemplo, é diferente da visão tradicional ocidental. “Nas sociedades tradicionais, o tempo é orientado para o passado, dando-se mais ênfase ao passado que ao futuro, quando se trata da concepção do tempo na cosmovisão africana, que tem como referência o passado como resposta para os mistérios do tempo presente”, enfatizou. Esta compreensão, segundo Cristóvão, tem aumentado por conta de pesquisas sobre o tema. Assim, a cultura permanece valorizada. 

Iamara Viana (Foto: Mario Agra/Câmara dos Deputados)

A audiência abordou também o fato de que os produtores culturais e agentes da cultura periféricos sobrevivem praticando sua arte. “Cultura no Brasil hoje significa também existência, subsistência. Muitos dos nossos sobrevivem por meio daquilo que produzem a partir da sua cultura”, explica Iamara. Ela discorreu sobre a educação brasileira – e como as oportunidades de qualificação e aprendizagem são completamente desiguais entre pessoas negras e brancas desde a institucionalização da educação escolar. O acesso aos direitos básicos, como saúde, moradia e direito à cidade são diferentes, portanto. 

Para Lamartine Silva, que integra a Constituição Nacional de Hip-Hop, há falhas na distribuição do financiamento público à cultura. “Ainda que esses editais sejam importantes, em alguns lugares, onde os governos não são progressistas, os movimentos de periferia ficam de fora destes processos, seja da Lei Aldir Blanc, seja da Lei Paulo Gustavo”. 

Na prática, a falta de condições de acesso, a burocracia e linguagem difícil dos editais acaba afastando as pessoas periféricas deles. Isso é o que contou Nlaisa, artista e bolsista do projeto Tecendo Diálogos, do Rio de Janeiro. “Nas nossas favelas e periferias há muitos grupos e coletivos extremamente potentes, mas que às vezes não têm uma oportunidade de ter esse letramento de editais”, comentou.

Para Nlaisa, a leitura e a escrita são habilidades essenciais para conseguir aplicar nestes espaços de financiamento. No entanto, o acesso é negado historicamente à população negra. “O edital acaba excluindo muitas pessoas pela forma de linguagem empregada. Se você precisa de um incentivo financeiro para poder proporcionar cada vez mais qualidade do seu fazer artístico, e a circulação do seu fazer artístico na cidade ser bem constituída, às vezes a língua já é um impeditivo, a forma como os editais se constroem dentro da sua estrutura já lhes impede também de às vezes ganhar, de ser apta para receber esses fomentos”, diz.

Foto: Mario Agra/Câmara dos Deputados

André de Jesus, da TV Restinga, falou sobre o programa Cultura Viva, estratégia de fomento do governo federal a pontos de cultura, que descentralizam o fazer cultural. Isso, segundo ele, é uma forma de justiça social. No entanto, para o agente cultura, “o Brasil é um apartheid de exclusão, um apartheid de injustiça social, de racismo estruturante e ambiental”. A cultura, então, é prejudicada quando não há condições nem ao menos materiais para mantê-la, avalia. 

Acesso à cultura passa pelo acesso à cidade 

A cultura também afeta outros indicadores sociais que não ela própria. Ela faz parte, por exemplo, da saúde, como comentou Nlaisa.  Seu acesso dá condições de dignidade para o sujeito. “A cultura também faz parte da saúde, embora não seja terapia, nem tenha função, tem processo terapêutico, mas, quando você acessa esses lugares da arte, da literatura, da música, você entende que existem outras lutas para se avançar enquanto sociedade”, explicou.

A cidade, espaço de disputa, é também um lugar para ser ocupado. Lamartine, que é membro do movimento hip hop Favelafro, falou sobre “ a possibilidade de a gente ter direito a essas cidades e não somente a ser morto nessas cidades”.  

“Nas cidades, as pessoas que têm acesso ao mercado imobiliário privado são uma pequena parte da população. Já as pessoas que têm acesso a um financiamento para comprar moradia, não têm, evidentemente, herança, não conseguem pagar aluguel são a maioria da população”, discorreu Ermínia Maricato, arquiteta e urbanista. 

Segundo ela, as pessoas que estão nas periferias não têm recursos financeiros ou financiamento para planejar o seu local de moradia com dignidade, o que acaba, invariavelmente, gerando construções irregulares e propiciando riscos à moradia e ao meio ambiente do local onde estão situadas as moradias. No caso do Rio de Janeiro, ela cita, a urbanização desenfreada por falta de políticas públicas acaba afetando a saúde da população, o meio ambiente e também a rede hídrica. “É uma tragédia invisível”, desabafou a arquiteta.

A conclusão é que há a necessidade de investimentos nas redondezas dos ditos centros urbanos. “Nós temos todos os problemas, como saúde precária, esgoto precário, atingindo as crianças das periferia, especialmente de seis a dez anos.  Assim, é necessário “dar às crianças e adolescentes das periferias a oportunidade de se alimentar, de estudar, de desenvolver talentos por meio das artes, do esporte e da cultura. Dar às suas mães a tranquilidade enquanto trabalham, que seus filhos estão em segurança e alimentando-se, além de se dedicarem a construir um futuro melhor para si e para o país”, complementou. O objetivo, então, enquanto cidadãos comprometidos com um projeto democrático de país, é romper com o exílio da periferia e auxiliar as próximas gerações. 

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Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
Políticas culturais Reportagem

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