Ana Maria Amorim, especial para o Nonada Jornalismo*
Olhar para o passado e não se ver diz muita coisa. Nas pesquisas pelo arquivo Wanda Svevo [repositório documental sobre a Bienal de São Paulo], a convite da Fundação, o artista wapichana Gustavo Caboco e a pesquisadora e cineasta Tipuici Manoki entraram em páginas turvas. Nos catálogos e jornais, a presença indígena é brevidade, não raro delimitada como exótica e primitiva, ou sob a tutela branca. Em um daqueles papéis, uma matéria destacava uma frase do cacique Aritana, tomada como título da obra de Caboco e Manoki. Ecoada no pavilhão da 13ª Bienal de São Paulo, de 1975, o primeiro artista indígena em bienais sintetizava: “Isso tudo não me diz nada”.
Sintaxe à parte, o sujeito da frase é Aritana. É ele quem despacha a pretensão universal daquele cânone supostamente indiscutível: a Arte, essa unidade, que pode até “retroceder às fontes do primitivismo para de lá extrair alguma coisa”. Tais palavras extrativistas e monolíticas estão no texto de abertura do catálogo da 1ª Bienal de São Paulo, de 1951, assinado por Simões Filho, o então Ministro da Educação e Saúde. Elas estão grifadas na publicação de Caboco e Manoki, que traz alguns recortes do também maiúsculo e singular Arquivo. Para além de pensar, portanto, as artes indígenas e/ou as artes feitas por indígenas através dos índices de catálogos, os autores se depararam com o que o Arquivo, em si, pode dizer.
“A morada do arquivo nasce desse lugar privado, sob guarda, representação e regência de alguns poucos sujeitos que habitam o arkhêion”, escreve Caboco ao atravessar a etimologia da palavra. Mas, visto em plural, não cabe ao Brasil pagar tributo aos gregos. São “ao menos 305 povos originários com archés diferentes, com histórias de origem, subjetividades e modos de nos relacionar distintos, com práticas diversas do ‘fazer memória’ e de diferentes formas de acessar os saberes”, escreve. Assim, funcionando somente por um ângulo, o Arquivo conta uma única história. Contando uma única história, trata-se não apenas de uma tentativa de memória, mas sobretudo da prática de esquecimento.
Esquecer é um ato nacional: “a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham esquecido coisas”, diz o historiador francês Ernest Renan na famosa conferência “O que é uma nação”, de 1882. Ele vai além, afirmando que o erro histórico é essencial, pois investigar demais o passado de uma pátria seria inevitavelmente trazer violências à luz, algo nada desejado para formar almas ufanistas.
Assim, as instituições de memória seriam, por vezes, máquinas de deslembranças e cúmplices de apagamentos. No Brasil, oras, é durante o Império que surgem instituições de arquivo, museus e institutos históricos ávidos em preencher lacunas – o mesmo Império que sublima a categoria “indígena” do primeiro censo brasileiro. A ausência indígena, que Caboco e Manoki encontram, se apresenta como um projeto antigo, o desejado “erro histórico”, que envolve, claro, a noção de Arquivo.
Uma inflexão de tempos está posta: para as ausências do passado, arquivos do presente. Provoca as formas rígidas da memória: “e se um de nossos arquivos-indígenas se iniciar por um fio de algodão?”, pergunta. Pelas imagens do Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, duas mulheres indígenas trançam uma rede. Nos desenhos vermelhos de Gustavo Caboco, um pé é tão nosso quanto de uma flor de algodão. Formam um fiar-arquivo, no qual “uma rede de dormir ou uma rede de pesca é um banco de dados para um povo que vai muito além dos saberes técnicos ou práticos”. Devolvem ao leitor perguntas, sem demandar respostas imperativas, pensando sobre acervos possíveis: “e se nosso fio-arquivo se organiza no tempo das relações semente-floresta?”. Por que não?
Pensam, assim, em seres-arquivos, que também se querem verbos: ouvir-arquivo, plantar-arquivo, soprar-arquivo. São ações em infinitivo, que suspendem o tempo. Este outro olhar suscitaria um arquivo pós-colonial, que “não pode ser meramente uma coleção de ‘novos artefatos’, nem pode ser reduzido à coleta de histórias ainda ‘não ouvidas’, mesmo que isso seja importante”, como citam Elizabeth Povinelli. A prática é pós-colonial (ou decolonial/descolonial, a que o maître servir) desde que a ação não seja mera perfumaria.
Na pesquisa do livro, Caboco reitera que as ações e as presenças precisam existir para além dos pavilhões: “uma edição da Bienal, um convite, ou convites, um trabalho artístico ou uma publicação isolada não dão conta de resolver os ruídos que se estabelecem desde o ‘isso tudo não me diz nada’”. Por fim, cabe às memórias um movimento contínuo, visto que são mais presente do que passado: “precisamos de espaço, de abertura na instituição – rodas de ação – para criar de modo autônomo os contextos para a ‘presença indígena’ aqui na Bienal”.
*Ana Maria Amorim é mestre em Cultura e Sociedade (UFBA) e doutora em Literatura Comparada (UFF).
“Isso tudo não me diz nada”, de Gustavo Caboco e Tipuici Manoki (2023)
Fundação Bienal de São Paulo
Editora PICADA,54 p.
Disponível em https://issuu.com/bienal/docs/isso-tudo-nao-me-diz-nada