Júlia Beatriz de Freitas, especial para o Nonada Jornalismo
Paranaíta (MT) — Era uma tarde quente do mês de abril de 2021. O calor é comum no município de Paranaíta, Mato Grosso, região amazônica. A mãe de Roseli notou uma diferença no pé de mamão, que murchara rapidamente naquele dia. Horas antes, naquela tarde e antes do comunicado da mãe sobre a planta, Roseli ouviu e viu um avião rondando a fazenda ao lado da pequena chácara que herdou de seu pai.
O efeito no pé de mamão dava a impressão de que alguém jogou água quente na planta. “Ah mãe, mas o Val não ia fazer isso”, respondeu Rose à mãe, referindo-se ao marido, Osvaldo Brito. As lágrimas vêm fácil pra Rose, como também vêm pra Val quando relembra o caso. “Eu achei que ele tava semeando pé de capim”, comentou a agricultora sobre o avião avistado naquela tarde, há dois anos.
Bastaram algumas horas para as frutas do sistema agroflorestal (SAF) do casal, iniciado dois anos antes do ocorrido, demonstrarem o contato com o químico expelido pelo vizinho. Banana “virou o olho”, refere-se aos efeitos no broto da planta, o “margaridão” ficou feio, como classificou, e o pé de mamão enrolou a folha. Os sistemas agroflorestais são um modelo de produção que associa árvores com culturas agrícolas de forma agroecológica, ou seja, sem o uso de pesticidas e outros agroquímicos. Imitam floresta, em algum nível.
O insumo despejado foi o 2,4-D, classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês) como possivelmente cancerígeno, associado a problemas hormonais e reprodutivos e objeto de campanhas de entidades da sociedade civil que atuam na mobilização contra o uso de agrotóxicos no país.
A ação representou desrespeito ao decreto estadual 1.651, de 2013, que determina a distância mínima de 90 metros de casas, fontes d’água e estradas para pulverização aérea de insumos no estado. O caso que tramita na Justiça segue, três anos depois, sem resolução. Em 2024, os responsáveis ainda não foram responsabilizados.
Mais de vinte propriedades da comunidade Vila Rural Boa Esperança, onde fica o terreno da família, foram atingidas. Alguns cachos de banana, perto da época de colheita, apresentaram caroços nos frutos. Plantações de pés de maracujá, café, abobrinha, abóbora e outras dezenas de variedades foram totalmente perdidas.
Alguns dos atingidos relataram coceiras na pele, mal-estar, ânsia de vômito e dores de cabeça após a pulverização. Val precisou ir ao hospital buscar atendimento médico duas vezes. Val também quis desistir da plantação, uma ideia que achara animadora pela qualidade dos alimentos produzidos no sistema alguns anos antes. Mas sua companheira há 13 anos, não deixou.
Roseli, conhecida como Rose, nasceu no Paraná. Seu pai era trabalhador de máquina de arroz. “Sempre ensinou a gente a plantar”, comenta ela. Tinha uma feirinha e começamos a vender nessa feira. “Aqui cortaram uma fazenda e tiraram um pedaço de terra para cada família. Ele fez a inscrição e ganhou essa chácara”, conta.
Chegaram no Mato Grosso com pouco: só com a malinha de roupa, diz ela, adolescente à época. Nove dias dormindo em cima de piso forrado com coberta. A mãe esperava, ainda, um filho. Para alimentar a família, o pai caçava. Cotia marcava presença nos almoços. Duas vezes por semana, Rose ia numa lanchonete da rodoviária do município onde se vendia frango frito e pegava os miúdos como doação.
Antes da terra conquistada, Rose, assim como seus irmãos, parou de estudar para ajudar nas vendas dos frutos da horta que seu pai conseguia plantar na terra de um vizinho. Melancia, laranja – lembra ainda das frutas vendidas para sustento da família.
Depois que conseguiu, começar a tratar a terra e plantar no terreno próprio, um sonho realizado. A família de Rose seguiu o caminho das tantas famílias da região. “A gente plantou, mas as terras vão ficando mais velhas. Aí ainda foi proibido de queimar”, relembra Jonas Dobrovoski, agricultor de Alta Floresta. Hoje referência na produção de bananas, escoadas para hospitais, escolas e mercados da cidade.
Com números recordes de incêndio e a atenção ao desmatamento desenfreado na região amazônica que se transformara no que até hoje é conhecido como “arco do desmatamento”. Em 2004, diante dos números alarmantes de degradação ambiental na Amazônia, o governo federal lançou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O plano resultou na diminuição do desmatamento na região por meio do aumento da fiscalização da derrubada de mata e das queimadas, usada como forma de “limpeza” dos terrenos.
O uso do fogo, uma prática tradicional na agricultura familiar em todo território brasileiro como uma técnica que permite a eliminação de restos vegetais e a preparação do solo, entrava na lista de atos condenáveis, mesmo que a responsabilidade dos pequenos lotes fosse mínima.
Jonas credita a mudança também ao período em que agroquímicos começavam a ser apresentados por técnicos como soluções para os problemas que surgiam aos poucos. O veneno era incorporado pela agricultura familiar aos poucos, à medida que a terra “empobrecia” de nutrientes e vitaminas pelo uso excessivo.“Então quem fazia a cultura plantava, queimava o roçado e derrubava. Ah não podia mais queimar. Vai fazer o que agora? Adubo”, lembra Jonas.
“Foi gradativo. Junto com adubo, começaram as pragas, doenças, e aí foi entrando devagarzinho os venenos”, diz. Anos depois, ficava mais clara a diferença entre produção orgânica e a chamada convencional, com uso de agrotóxicos.
“Tinha vezes que vinha um aqui e passava cinco tipos de veneno. Você tem que passar isso e isso, e isso. Nesse dia você passa esse, nesse dia você passa esse, no outro dia você passa esse. Esse aqui você passa cedo e a tarde. Falei, aí vai virar só veneno. Não precisa nem aguar, é só meter veneno e pronto”, lembra Val.
O agricultor explica que, como ele, os que não tinham conhecimento iam sendo levados pelo convencimento dos ditos técnicos. “Eu não tenho muito conhecimento e aí chega alguém que estudou e tem conhecimento e diz o que você precisa, você vai”, diz.
Assim, alimenta-se uma cadeia: para você conseguir produzir, precisa gastar dinheiro com o uso de químicos. Quem vende é o maior interessado nessa dependência onde uma necessidade leva à outra. “Seu dinheiro fica todo na loja”, conta ele.
Uma relação de dependência. A segunda de Val.
Envenenamento
Anos antes disso, Val olhava para a garrafa de pinga no final e pensava: como vou conseguir mais? Então trabalhava mais um dia – o suficiente para comprar outra. Mais uma. Já morava na rua – resultado da decisão tomada após se envergonhar de ser um pai de família a morar na casa do próprio pai.
Bebeu por toda a noite daquela sexta-feira e acordou ruim no sábado. Pegou sua bicicleta e encostou perto do hospital. Depois não viu mais nada até acordar na cama do pequeno hospital de Paranaíta, norte de Mato Grosso. Val já tinha perdido as contas de quantas cidades onde morou em variados estados: Nasceu no Paraná, depois foi pra Rondônia, São Paulo, Mato Grosso do Sul e, finalmente, Mato Grosso.
Jovem, quando ouviu o nome Mato Grosso, pensou: “Lá deve ser tudo grosso, completo, né?”, conta. “Eu me empolgava com aquele negócio. Quando cheguei aqui pensei: isso é coisa de outro mundo”, comparava com o Paraná, no Sul, onde nascera. “No Paraná não tinha quase nada de mata, era tudo derrubado”, comenta.
No estado sulista, crescera perto da terra e com poucas condições. Do sítio até a escola, lembra, dava oito quilômetros. Era criado com a avó, mãe do pai. Para levar os cadernos e livros até o local de estudo, usava uma sacola de plástico grossa. A única coisa que era comprada em casa era o açúcar, talvez um tecido para comprar roupa: a comida vinha da horta aos fundos.
Cafezais na “terra dos outros”, era onde a família trabalhava. “Entrávamos [eu e os outros meninos] embaixo do pé de café, raspava o tronco, deixava limpinho pro outro vir rastelar. Era esse o serviço da molecada”, relembra. Era todo dia até acabar a colheita. Com o fim dela, voltava para escola.
Anos depois, seu pai trocara um carro Opala por um caminhão quando decidira ir atrás de melhores oportunidades – uma vida melhor. Sua mãe abandonara a família e ele seguia o pai – aprendendo a fazer o que ele fazia. Um pouco de tudo.
Em Rondônia, já teve uma prévia da floresta amazônica – um dos três biomas que compõem Mato Grosso, junto do Cerrado e Pantanal. “Podia juntar oito homens que não abraçavam a árvore”, refere-se a uma castanheira localizada no terreno do avô paterno, onde morou por um período. A migração de famílias do Paraná, como a de Val e de Roseli, foi intensificada nas décadas de 1960 e 1970 para a Amazônia, impulsionada pela expansão da fronteira agrícola em estados amazônidas com produção agropecuária proeminente, como é o caso dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
A Amazônia, à época, era “desbravada” com incentivos e propagandas aos estados do Sul que prometiam uma nova vida de fartura e abundância para quem lá pouco tinha. “Corretor levou revista: tinha plantio de arroz, milho, guaraná, tudo. Muito comovente as paisagens das matas”, comenta Marina Aparecida, agricultora de Nova Bandeirantes, norte do estado. O medo de onça, cujo esturro ecoava pelas terras ao norte, era acompanhado de vários outros: medo da malária, do clima desconhecido.
Ana Barbosa demorou um pouco mais a vir para o município de Nova Monte Verde, também na região. Quando chegou, não gostou. “Nós nem sabia pra lado que era Mato Grosso, pegamo o ônibus e viemo”, disse. “Pensei: se um dia eu morrer e minha alma vier aqui é porque ela não tem vergonha. Nunca mais piso os pé nesse lugar”, comenta hoje rindo sobre a terra onde mora e onde depois pegou gosto.
A família de Rodrigo Alves veio em busca de adquirir um pedaço de chão. “A terra subia [em valor] e o dinheiro não dava pra comprar lá embaixo”, comenta o morador da comunidade Nossa Senhora de Guadalupe, município de Alta Floresta, uma das maiores cidades da região.
Val chegou ao estado jovem e achou oportunidade de trabalho na indústria madeireira, que à época, com poucas legislações ambientais no país e na floresta amazônica, ganhava força. Trabalhava numa serraria. Num dia de sábado, o maquinista responsável por descarregar as toras de caminhões, numerosos à época, faltou o trabalho.
Val foi chamado pelo chefe. “Pega aquela máquina. Você vai descarregar aquele caminhão para mim”, ordenou. O paranaense respondeu: mas eu não sei. “Vai e se vira”, disse o patrão. Val lembra do momento: pegava a tora na concha dela e botava no lugar. Assim encheu dois caminhões. Depois disso, trabalhou nove anos e cinco meses nessa função.
Após um acidente de carro que levou à morte do filho do chefe, a depressão do fundador da serraria começou a levar a empresa à falência. E aí a bebida começou a chegar mais perto. “Ia trabalhar na máquina e trabalhava com um litro de pinga do lado”, diz. Era ainda a década de 1980 e a indústria madeireira era pouco fiscalizada e controlada, o que levou a região a rankings de níveis de desmatamento no bioma.
O encanto com o tamanho das árvores da Amazônia, antes símbolo de fartura e surpresa, virava mais trabalho. A castanheira, mesma espécie da árvore “inabraçável” por oito homens em Rondônia, agora era derrubada. “O pé dela tinha que dobrar em quatro pra poder jogar em cima do caminhão, chegava a ter tora de quatro metros”, comenta.
Madeira, pecuária e garimpo marcaram a história e o presente da região norte de Mato Grosso, cuja associação, para o restante do país, à Amazônia, parece estranha para boa parte do país, mesmo que o bioma tenha mais de 500 mil km² no estado.
Em 2022, um projeto de lei tramitava no Congresso Nacional e tentava retirar o estado de Mato Grosso da Amazônia Legal. Mais uma tentativa de grupos ligados ao agronegócio para diminuir a proteção ambiental do estado conhecido como “motor” do setor no país.
Nas últimas décadas, “tapetões” de soja, como são chamadas as plantações monocromáticas na paisagem da região, passaram a se tornar uma referência mais comum a Mato Grosso do que as densas matas de verdes exuberantes e variados. A soja é uma das principais commodities agrícolas de exportação do país, que se estima, em pesquisas científicas, que representa mais de 76% de todo o uso de agrotóxicos do país.
Com um casamento perdido pelo álcool e duas filhas distantes pelo abuso do álcool anos antes dessa abordagem dos técnicos na horta que plantava, Val saiu daquele hospital incentivado pelo amor e apoio da irmã e sobrinha e com uma decisão tomada: de buscar ajuda. Conta isso com lágrimas nos olhos diante da lembrança.
Depois de retomar o contato com a terra num retiro de reabilitação, onde ficou por nove meses, voltou para a cidade para trabalhar. Ajudava sua irmã, que calhou de ser uma amiga que Rose conheceu em um curso de confeitaria, onde a agricultora aprendera a fazer bolos e buscava formas de incrementar a renda.
Também era a amiga que a incentivou a se juntar a ela na venda de salgadinhos e pastéis em uma festa da cidade, onde apresentou seu irmão. No primeiro ano foi só troca de olhares. Na edição seguinte, ele foi trabalhar junto e então o flerte evoluiu para um namoro. Ele perguntou a ela: você tá mexendo com horta? E ela respondeu: “tô!”
“Aí ele veio um dia e começou a molhar a horta pra mim. E eu falei assim: sabe do quê? Pega suas coisas e vêm morar aqui pra me ajudar”, relembra, rindo do início da história do casal.
Dia após dia na lida da horta. Voltava para a terra – agora junto de Rose.
Floresta pressionada: a rede como força
Enquanto isso, a centenas de quilômetros de distância dali, a permanência na terra se mostrava incerta. “O agronegócio nos afeta por estar em torno da nossa terra”, comenta Raimundo Iamonxi, indígena do povo Rikbatska, no noroeste do estado, ao se referir ao seu território.
A Terra Indígena (TI) Escondido está localizada no município de Cotriguaçu, cerca de cinco horas de distância de carro de Paranaíta. Faz parte da bacia do rio Juruena, conhecido pela formação das vistas de águas com pedras lisas e os numerosos “piuns”, um tipo de mosquito cuja picada é demasiada incômoda.
Conhecido como aguerrido, o povo Rikbatska teve cerca de 75% da sua população dizimada pela pressão de madeireiros, mineradores e fazendeiros na região com os incentivos governamentais voltados ao “desbravamento” da floresta amazônica.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje cerca de 80 famílias vivem na terra indígena de Raimundo. Uma das formas encontradas para valorização do território e para permanência em suas terras é por meio da árvore que tanto impressionara Val – a mesma depois tombada e levantada pela máquina: a castanheira-do-Pará, também chamada de castanheira-do-Brasil.
A região é conhecida pelos abundantes cascos carregados das amêndoas cada dia mais valorizadas nacional e internacionalmente. Ainda assim, Raimundo diz que seu povo, cuja sobrevivência e vida está entrelaçada à vida da floresta e da castanha, acaba refém de atravessadores do produto que poderia ser uma fonte de renda significativa para o povo pela dificultosa distância do local dos grandes centros. A distância da cidade de Cotriguaçu até Cuiabá, por exemplo, é de mais de 800 quilômetros. A chegada às aldeias, então, ainda mais dificultadas.
Para os Rikbatska, o termo “produção orgânica” é uma concepção nova trazida de fora, assim como os latifúndios monocromáticos e os agrotóxicos. A fim de valorizar o produto historicamente retirado da floresta pelo povo, passaram a aventar a certificação do orgânico – uma estratégia possível. “Tem sido difícil comercializar a castanha pelo preço justo porque não tem certificado”, relata.
Para o analista socioambiental do Programa de Economias Sociais, Rodrigo Marcelino, a área ocupada pelo povo Rikbatska são de suma importância de proteção principalmente no contexto de crise climática. “Os povos indígenas são os grandes guardiões desse carbono acumulado pela floresta em pé nessa região. Eles sofrem a pressão para gerar recurso a partir de um uso de solo completamente diferente do que fazem pelo agronegócio, que gera desmatamento. Então fortalecer as cadeias da sociobiodiversidade e agregar esse valor aos produtos por meio da certificação orgânica é uma das soluções”, avalia.
Algumas lideranças do povo ouviram falar pela primeira vez da Rede de Produção Orgânica da Amazônia Mato-Grossense (Repoama) no Festival Juruena Vivo. A Repoama é a concretização de uma ideia surgida há anos. Hoje tem cerca de 50 famílias.
Diante do entendimento de que era imprescindível apoiar a agricultura familiar para o estabelecimento de cadeias produtivas sustentáveis numa das regiões mais pressionadas pelo desmatamento no país, a organização não governamental Instituto Centro de Vida (ICV) se comprometeu com grupos das famílias agricultoras apoiadas pela instituição a apoiar a busca da certificação orgânica e incentivou a formação da Rede.
Existem três métodos de obter o selo de orgânico atualmente no país. O mais comum, e geralmente o utilizado pelas grandes empresas, é por auditoria. O selo que estampa as embalagens de multinacionais nos mercados em produtos orgânicos é possível por custos altíssimos, inacessíveis para as famílias que produzem os alimentos.
Um outro jeito permite que famílias agricultoras façam a venda direta do produto orgânico, sem necessidade de certificação formal. Mas assim, as associações e cooperativas ficam impedidas de vender a produção como orgânica para mercados institucionais, como órgãos públicos, seja por meio de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), escolas, creches e hospitais.
Por fim, há o sistema participativo de garantia (SPG). Nessa modalidade, as próprias famílias dos grupos envolvidos – sejam associações ou cooperativas – são responsáveis pela fiscalização da produção umas das outras. “O SPG gera soluções”, comenta Eduardo Darvin, coordenador do programa de Economias Sociais do Instituto Centro de Vida.
Para receber e garantir o selo de orgânico, é necessário seguir uma série de regras nas propriedades, todas dispostas na Lei de Orgânicos (Lei 10.831/2003). E o sistema funciona por meio de três etapas: visitas entre pares, onde as propriedades são averiguadas pelas próprias famílias da rede, visitas do comitê de ética; por fim, a autorização para uso do selo.
Cada grupo tem um comitê de ética formado por um dos integrantes de cada um dos grupos do núcleo e responsáveis por visitar uma amostra das propriedades já aprovadas na etapa anterior de cada uma das organizações. Para Eduardo, a fiscalização é uma espécie de fase de aconselhamento, processo responsável pelo fortalecimento da agricultura familiar de todo território. “Se precisa de tratamento de água negra, de afluente, por exemplo, a visita irá apoiar e entender quais são as possibilidades para aquela propriedade: seja uma fossa séptica, um silvo de bananeira, por exemplo. O grupo orienta e dá um prazo para que a propriedade se adeque. Se teve alguma coisa que o grupo não orientou, a comissão dá esse segundo apoio”, explica o especialista.
A certificação atua como gancho para a troca de conhecimento que cria resistência.A experiência prática da modalidade da rede foi testemunhada por representantes da agricultura familiar em uma visita ao Rio Grande do Sul em 2019, experiência que mostrou o caminho como possibilidade real.
A rede foi formalizada em 2019 e é composta por 13 organizações comunitárias dos municípios de Alta Floresta, Paranaíta, Nova Monte Verde, Nova Bandeirantes, Cotriguaçu e Colniza, todos municípios localizados nas regiões norte e noroeste de Mato Grosso.
Com atraso decorrente da pandemia da Covid-19 em 2020, a rede só foi credenciada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no início de 2023, quando iniciou a certificação das famílias. E não só: a Repoama ainda criou o fundo rotativo solidário (FRS), um mecanismo financeiro comunitário para promover a produção orgânica e o desenvolvimento socioeconômico das famílias.
No sistema, as famílias podem fazer empréstimos financeiros de um fundo mantido por todas. É uma alternativa ao crédito rural baseada na economia solidária: a rede é quem decide as próprias normas e regras para obtenção do crédito, como tempo de carência, valores limites para financiamento, taxa de juros e prazos de pagamento.
Um pouco dos sonhos quase realizados
Uma dessas famílias certificadas e já com os documentos em mãos é a de Val e Rose. Repetem uma palavra com frequência: sonho. “Foi Rose que não me deixou desistir. E hoje dou graças a Deus”, comenta Val, que afirma se sentir melhor do que nunca. Também fisicamente.
Foi mais um caso de alguém que não deixa o outro desistir: como uma vez fora sua sobrinha. Como agora é para as famílias agricultoras ao redor, ainda não certificadas. “A certificação mudou nossa vida, nossa história, mudou tudo”, comenta Rose. “Estamos finalmente felizes agora. Tudo mudou.”
A banana é o carro chefe da produção, seguida do limão taiti. Frutas que abastecem as merendas escolares e as casas de pessoas que vão até a propriedade só para comprar do casal. A demanda é tão alta que o casal não dá conta de atender tudo.
Enquanto celebram o novo momento, constroem sua nova casa na chácara. Irão deixar a herdada do pai de Rose para o restante da família e conseguiram iniciar a construção graças aos dez mil reais emprestados do fundo solidário, empréstimo já pago.
Idosos, turmas de estudantes de municípios vizinhos, grupos de turistas e entusiastas da produção orgânica visitam a pequena chácara do casal para absorver o conhecimento desenvolvido pelo trabalho diário dos dois. “Eles tinham o conhecimento mas ainda não aplicavam na realidade. Ele foi vendo que a eficiência da propriedade foi se resolvendo mudando a prática e os custos foram sendo diminuídos também”, comenta Luan Cândido, técnico do ICV que assessora o casal na propriedade.
Para os dois, a compra frequente de uma médica de Alta Floresta é motivo de orgulho – atesta a qualidade da produção. Boa parte começou a ser documentado no perfil do Instagram do casal, onde um gif do selo de orgânico é inserido em frente às fotos e vídeos produzidos cotidianamente por Rose.
“Produzimos alimentos com saúde para alimentar a população da nossa cidade”, comenta. “As pessoas vêm e querem sempre comprar mais. Porque sabem que é bom.” A cada corte de banana realizado de forma mensal, mais de 400 quilos da fruta abastecem o mercado de Paranaíta e região. Como fornecem a produção em parte pela Coopervila, a cooperativa dos agricultores da região ainda em transição para o orgânico, o selo ainda só é usado na venda direta. “Mas já fez efeito nas contas”, diz Val.
O segredo da produção agroecológico, para Val, está no solo. “A castanha precisa do adubo químico pra produzir?”, pergunta ele de forma retórica. “Ela precisa da própria folhagem dela. A folha dela vai fazer a compostagem dela. Vai manter ela, a comida dela tá ali. Vai decompondo e ela vai comendo. Vai se alimentando. O que ela precisa né. O solo que ela precisa? Eu chego num solo desse daqui que é raspado tudo. O cara só química, química, química. Chega um coitado aí num pedaço de terra desse aqui. Igual era aqui. Aqui era só pasto. Acontece o que? Não tem nada tem nada. Você vai fazer uma análise de solo, o que que tem aqui de compostagem? Matéria orgânica? Nada! Zero! Como você vai plantar um pé de coisa e vai produzir? Então química”, resume Val.
Usa como exemplo a árvore que o encantou ao saber de Mato Grosso, a espécie de flora cuja tora ajudou a subir no caminhão antes de ser, ele mesmo, intoxicado pelo álcool. Conhecimento aprendido – o mesmo saber da floresta originária – inato às populações indígenas da região. O ingresso do povo Rikbatska em 2024 inaugurou uma nova etapa da rede, que agora conta com saberes e participação dos povos originários da região. A formalização do povo indígena na rede foi dada pela inserção da Associação Indígena Abanatsa, composta por doze famílias da aldeia Babaçuzal da TI Escondido.
Depois dos Rikbatska, surgiu interesse e aproximação dos povos Apiaká, Kayabi e Munduruku. Pelo interesse e nova associação integrante, a Repoama entrou nesse ano com o pedido para o Mapa para obter a permissão de certificação de produtos extrativistas como a castanha, coletada milenarmente pelos povos envolvidos nessa cadeia produtiva.
Mas as aldeias também não pensam em apenas um produto, como em geral acontece com fazendeiros e commodities. A busca é pela valorização do que eles melhor fazem: de toda a diversidade. “Nós também temos interesse em certificar outros produtos tradicionais da roça”, comenta Raimundo. Banana, milho, cará, batata iami, amendoim, açaí, patuá e buriti são alguns dos citados pelo indígena.
“Fazem roças de coivara, de forma arredondada, de meio a dois hectares cada, com várias espécies consorciadas de acordo com sua compatibilidade, expressas muitas vezes na linguagem de parentesco. A cada dois ou três anos abrem novas roças, abandonando a anterior ao trabalho de reconstituição espontânea da floresta. Às vezes, além dos roçados perto da aldeia, possuem outros mais ou menos distantes que, juntamente com as roças abandonadas, constituem reservas alimentares, de onde colhem esporadicamente os tubérculos e bananas que continuam a produzir por vários anos. Plantam milho “mole” de dois tipos (um deles preto), batata-doce, cará, mandioca “mansa”, inhame, arroz, feijão, fava, algodão, urucu, bananas de diversos tipos, cana-de-açúcar, amendoim e abóbora. Plantam também abacaxi, cítricos (limão, laranja, tangerina), manga e outras frutas, embora de forma mais irregular. Dizem que antigamente plantavam tabaco para fins medicinais”, discorre documento elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) sobre o povo.
Os conhecimentos da roça foram repassados num intercâmbio na propriedade de Val e Roseli nesse ano. “Podemos ensinar o que sabemos e também aprender muito”, comentou Rose, que sempre registra os encontros para falar de produção orgânica.
Além do encontro entre os grupos, a Repoama também promoveu um encontro de mulheres entre as mulheres da agricultura familiar e as mulheres indígenas. “A troca de experiência foi importante porque muitas coisas que a gente sabe elas [mulheres indígenas] não sabiam. E o contrário também. Muitas coisas que a gente não sabia elas sabiam. Então, por meio do diálogo, da conversa, a gente aprendeu como fazer e ensinou também”, comentou Rosângela Santos, da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Artesãs de Nova Monte Verde (Amuverde), uma das organizações da rede, para uma reportagem local.
Forma-se, assim, um intercâmbio cuja temática – a produção agroecológica – é apenas um gancho que aponta dores semelhantes de pessoas bem diferentes. Vítimas de um mesmo processo. Mas capazes de se fortalecerem. A expansão da soja segue em curso. De acordo com dados do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea), a área plantada de soja deve aumentar em 1,5%, alcançando quase 13 milhões de hectares na safra de 2024/2025. O risco ainda existe e aumenta. “Aviões ilegais são cada vez mais vistos, os silos de sojas viram paisagens”, comenta Eduardo.
“Mas a rede mostra que esses grupos estão organizados e formam uma barreira”, diz ele. É uma força que, em meio às intoxicações da terra e do corpo, insistem na realização de sonhos – de Val, Rose, Raimundo e tantos mais.
“Muito obrigado”, escreveu Raimundo com uma caneta num papel nas respostas para a entrevista sobre o ingresso na rede. “Esses são um pouco de nossos sonhos quase realizados.”
Júlia Beatriz
Júlia Beatriz é jornalista socioambiental. Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), trabalha com comunicação socioambiental em organizações não governamentais com foco na Amazônia desde 2019. É autora dos livro-reportagens “Doce Sobrevida: a apicultura como alternativa no assentamento Taquaral” e ‘Norte de Mato Grosso, sul da Amazônia: sonhos e resistências da agricultura familiar no arco do desmatamento’. Busca, em seu trabalho, fortalecer palavras e histórias pela desconstrução da falsa dicotomia entre humanidade e natureza, tarefa urgente em tempos de crise climática.