A solidão de Noll

Por Edgar Aristimunho*

Entre os escritores brasileiros consagrados e ainda em atividade – entendendo “atividade” como a capacidade de provocar e inquietar o leitor numa panaceia de obras sem sentido ou profundidade – João Gilberto Noll continua produzindo da mesma forma límpida, aparentemente rasa e ao mesmo tempo perturbadora como fez em Hotel Atlântico, O quieto animal da esquina e Harmada sua mais conhecida e consagrada sequência de textos. O lançamento de seu mais novo romance segue a perdição do personagem em um mundo desterritorializado, onde os contatos humanos são intensos e vazios, onde não há espaço para elucubrações e muito menos para conclusões definitivas sobre nada, uma literatura que nos induz para uma solidão. A de Noll, a nossa.

Desde 2008, o escritor não lançava um romance adulto (Crédito: Divulgação)

Solidão continental  narra a viagem de um homem, sem nome, de Chicago ao Sul do Brasil, passando pela Cidade do México. Ao longo da narração, não se sabe ao certo o que o protagonista busca ou do que ele foge durante essa peregrinação. A tal ponto que podemos nos perguntar por que o personagem central  sempre parece ser o outro. A única certeza no enredo? A de que quando chega em Porto Alegre o personagem continua vagando, agora na companhia de um jovem que parece ser italiano – na literatura de Noll aquilo que “parece” de fato não vem exatamente ao caso ser. Há outros eventos, disperso, encadeados: um rapaz misteriosamente desfalece no meio da jornada e depois é carregado no ombro pelo interior do Rio Grande como se tudo não passasse de uma louca via crúcis, até que finalmente, num hospital, irrompe uma libertação mais que surpreendente. Como em outros romances de Noll, o livro apresenta mais outro viajante perdido em si mesmo, este sempre um homem, mais ou menos na passagem da maturidade para a velhice, dividido entre aquietar ou consumir o que lhe resta da virilidade, entre o continuar só ou encontrar alguém para os tempos que virão, alguém que busca a redenção (mas qual?) alguém que procura (mas procura o quê?). Não há respostas prontas em João Gilberto Noll. Foi o próprio escritor, em entrevista, que disse gostar de “compor cenas imprecisas, difusas (…) como se fosse uma reação a um mundo exacerbado de assertivas definidoras e definitivas”, disse. Tanto que em Solidão continental estamos diante da mesma impressão deixada pelos romances anteriores que o consagraram, obras literárias de forte conteúdo sensual e de alta qualidade literária, nos quais o leitor, atento e perplexo, acompanha o protagonista em seu mundo de dúvidas e incertezas, e nisso também vai com ele. E pouco importa a cena – vale a explosão. Isto: a leitura como forma de indução – e eis aqui o central para a compreensão do infinito em Noll.

O escritor é um dos autores mais prestigiados do Brasil (Crédito: Divulgação/Arquivo próprio)

O lançamento de Solidão continental traz de volta ao público o escritor João Gilberto Noll, que desde 2008 não lançava um romance adulto – dá calafrios ter de explicar esta palavra –, o perturbador Acenos e afagos que dava prosseguimento ao ritmo de perdição dos protagonistas anteriores de Berkeley em Bellagio e A máquina de ser. Mas convenhamos: Noll dispensa apresentações. Autor consagrado, premiado inúmeras vezes, incluindo o Prêmio Jabuti em cinco ocasiões (1981, 1994, 1997, 2004 e 2005), João Gilberto Noll teve seu romance Harmada (Prêmio Jabuti/1994, categoria romance) incluído na lista dos 100 livros essenciais brasileiros em qualquer gênero e em todas as épocas em eleição pela Revista Bravo. Objeto de inúmeros dissertações e teses acadêmicas que se dispuseram a explicar (sic) o funcionamento sua escrita – algo inalcançável, creio –, Noll mantém seu lugar na literatura brasileira contemporânea como autor único. Tudo porque ao mesmo tempo em que expõe suas criaturas a situações cotidianas até certo ponto bizarras emocionalmente, o autor desenvolve uma escrita simples, sem rodeio, floreios e barroquismos, mas que apesar disso aprofunda o drama existencial, o vazio, a incomunicabilidade, a falta de sentido de tudo que envolve, abarca e massacra o homem contemporâneo. A máquina de ser de Noll é de uma solidão continental ímpar – e aí foram jogados ao léu dois títulos chaves. Como outros narradores de João Gilberto Noll, o protagonista de Solidão continental se apresenta como alguém exposto a flutuações que não podem se localizar a si mesmo nem ao mundo – e assim foi desde o primeiro romance A fúria do corpo. Em síntese, os contos, novelas e romances de Noll são de um escritor que concebe a literatura como artefato de indução a certos êxtases, ora como um culto narcisista ao corpo, ora através da despersonalização do sujeito, de aparições vacilantes ou de figurações abolidas.

Se os personagens de João Gilberto Noll vagam em busca de respostas a perguntas que não fizeram, Solidão continental dá o tamanho de uma literatura de caráter universal, dado que abrange a extensão existencial do mundo sem fronteiras ao mesmo tempo em que revela o isolamento deste ser humano que vaga, seja ele em Chicago ou Porto Alegre, perdido numa estrada ou masturbando-se num campinho de futebol. Única receita para o leitor? Deixe fluir a leitura. Vá. Apanha estas página, leia com força, porque em outro lugar sempre sangra. Isto. A arte narrativa de Noll convoca o leitor a perceber o isolamento de seus personagens e a sentir, ele próprio, o leitor, a sua própria dissolução.

*É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela editoria Dom Quixote o livro de contos O Homem perplexo (2008) e participou da antologia Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com)

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