Melissa Sayuri, especial para o Nonada Jornalismo
O Mapeamento Acessa Mais, fruto de uma parceria entre a Universidade Federal da Bahia e o Ministério da Cultura, via Fundo Nacional da Cultura, está mapeando artistas e agentes culturais com deficiência do Brasil. Profissionais com ou sem deficiência que trabalham com acessibilidade cultural também podem se cadastrar no mapeamento. O formulário está disponível na plataforma oficial do projeto (para acessar, clique aqui). O relatório final do projeto está previsto para ser lançado no primeiro semestre de 2025.
A iniciativa levanta questões sobre os desafios enfrentados por esses artistas. Como o mercado cultural tem lidado com a acessibilidade? Os editais de fomento à cultura realmente contemplam as necessidades de artistas com deficiência? E, afinal, quão receptivo o setor é para quem, há muito tempo, tem buscado um lugar de reconhecimento e visibilidade?
A realidade enfrentada pelos artistas com deficiência no Brasil pode ser dura, muitas vezes contando com uma série de obstáculos para conseguir se inserir no cenário cultural de forma digna e justa. A falta de acessibilidade não se resume às limitações arquitetônicas, mas também envolve a recepção de seus trabalhos por parte de profissionais e instituições culturais que, muitas vezes, não estão preparadas ou dispostas a integrar esses artistas de maneira equânime.
O cenário atual: conquistas e lacunas
Segundo dados do censo de 2010 do IBGE, 18,6 milhões de pessoas com deficiência vivem no Brasil, o que corresponde a cerca de 8,9% da população. No entanto, a participação dessas pessoas no cenário cultural ainda ocorre nas margens, com pouco reconhecimento de suas produções. A visibilidade desses profissionais permanece limitada, apesar de seus talentos. Estela Lapponi, uma das pesquisadoras do Mapeamento Acessa Mais, destaca que um dos principais desafios é fazer “as instituições entenderem que somos produtores de conhecimento e arte e que, portanto, não precisamos só trabalhar em setembro e dezembro, que são as datas comemorativas relativas à pessoa com deficiência”.
Nos últimos anos, algumas iniciativas têm tentado reverter esse cenário de exclusão. Um exemplo é o projeto “Arte e Acesso”, do Itaú Cultural, que em 2021 lançou um portfólio destacando o trabalho de 50 artistas com deficiência de diferentes regiões do país. Paralelamente, algumas políticas públicas começaram a incorporar, ainda que de forma tímida, questões relacionadas à acessibilidade. A Lei Aldir Blanc, aprovada em 2020 para socorrer o setor cultural durante a pandemia, contemplou, em algumas de suas edições, mecanismos específicos de apoio a artistas com deficiência, mas ainda de forma limitada.
Contudo, iniciativas como essas ainda são exceções em um setor que historicamente exclui esses profissionais. As dificuldades surgem já nas etapas iniciais, como a assinatura de contratos. “Já aconteceu de amigas minhas que são cegas terem dificuldade de assinar o contrato porque a plataforma não oferecia essa acessibilidade”, comenta Estela. “A instituição não tem isso preparado, não tem isso pronto. E acaba que a pessoa tem que tercerizar para pedir ajuda para assinar um simples contrato. E com isso expor a sua própria vida, expor o valor de cachê, tudo isso que qualquer produção tem isso reservado”, explica.
Outro obstáculo enfrentado pelos artistas com deficiência no Brasil é o acesso aos editais culturais. Embora os editais estejam começando a incluir exigências de acessibilidade, ainda há um extenso caminho para que essa questão seja plenamente incorporada. Estela Lapponi observa que, embora exista uma preocupação crescente em contabilizar quantos membros das equipes são pessoas com deficiência, negras, indígenas ou LGBTQIA+, isso não significa que os processos sejam acessíveis de forma plena. “Os produtores, de forma geral, não têm total conhecimento sobre acessibilidade”, afirma.
Ela explica que, durante os períodos de editais, tanto ela como outros profissionais especializados em acessibilidade são constantemente acionados por artistas e produtores que desconhecem o tema. “É um corre. É preciso de gente para a acessibilidade, as pessoas ficam todas perdidas, os produtores, os artistas, que não conhecem nada disso, não sabem como faz, não entendem e, às vezes, quando vem consultar, é muito complexo, eu não consigo, mas aí é muito dinheiro”, explica.
O Estado e as Secretarias de Cultura, embora exijam acessibilidade por ser uma obrigação legal, nem sempre fornecem o suporte necessário para a formação e informação dos envolvidos, avalia a artista. Assim, a responsabilidade recai sobre os próprios profissionais com deficiência, que são sobrecarregados com a tarefa de educar e orientar os demais. “Existe essa exigência de acessibilidade, porque é lei, afinal de contas, é uma questão que já está dada no sentido de legalidade dela”, diz. “As políticas públicas ainda não estão voltadas para a acessibilidade, elas ainda encaram como um elemento, às vezes até de contrapartida, o que não deveria ser”, conclui.
Frente à diversidade: como o setor cultural está respondendo
Além da questão estrutural e das políticas de fomento, existe um desafio mais sutil, mas não menos importante: a receptividade do setor cultural. Estela Lapponi comenta que, embora o discurso da diversidade e da inclusão esteja cada vez mais presente nas falas de gestores culturais e produtores de eventos, na prática, muitos artistas com deficiência ainda enfrentam o capacitismo estrutural. “O que eu percebo é a dificuldade que as pessoas sem deficiência têm de entender, compreender essas questões de acessibilidade”, diz a artista.
A falta de uma cultura de acessibilidade nos espaços culturais reflete essa resistência. É comum encontrar teatros e museus sem rampas de acesso, sem intérpretes de Libras ou qualquer adaptação que permita a participação plena de pessoas com deficiência. Quando essas adaptações são feitas, muitas vezes elas ocorrem de forma improvisada, sem garantir a autonomia dos artistas e do público com deficiência.
Essa falta de preparo não é apenas uma falha técnica, mas um reflexo da forma como a sociedade, de modo geral, enxerga a pessoa com deficiência. “Tem lugares que acham que é frescura, que acham que a gente tem que se adaptar. Não é que é dito, mas a maneira como a coisa vai acontecendo, o tempo todo a gente tem que afirmar e reafirmar as questões de acessibilidade”, desabafa Lapponi.
Estela enfatiza que, embora existam algumas conquistas, como as cotas nos editais, ainda há falhas e faltas nos espaços. “Se tem uma pessoa com deficiência que tem noção da sua representatividade, não como única, mas o que ela pode fazer pela comunidade como um todo, pensando em todas as questões, todas as culturas DEF, a cultura surda, a cultura cega, a cultura neurodiversa ou neurotípica, tem algumas conquistas, como as cotas dos digitais, mas ainda falta muito, ter curadoria deaf, ocupar esses lugares e não só no lugar de cota”, explica.
Planejando políticas culturais
O Mapeamento Acessa Mais pretende colaborar na formulação de futuras políticas públicas voltadas para a acessibilidade cultural. “A gente sabe que é a partir de dados estatísticos que a gente vai conseguir ter noção do que tá acontecendo para poder elaborar política pública, cobrar política pública”, explica Lapponi.
Essa luta pela acessibilidade é, essencialmente, uma busca por reconhecimento e igualdade de condições. Falta uma legislação específica que garanta a acessibilidade em todas as etapas da produção cultural, desde a criação dos editais até a exibição das obras. Falta também uma maior conscientização dos profissionais do setor sobre a importância de criar espaços realmente acessíveis, onde artistas e público com deficiência possam circular com autonomia, avalia a artista.
Lapponi destaca a dificuldade em se avançar nesse sentido, mencionando que, durante uma reunião com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, a secretária Maria Marton se recusou a discutir o aumento das cotas de 5% para artistas com deficiência na Lei Aldir Blanc. “Aqui em São Paulo a gente tem, com certeza, um número muito maior que esse 5% não dá conta. Mas ainda recai sobre nós ter que lutar sobre isso, mesmo a lei tendo uma normativa de que, dependendo da região, essa porcentagem pode aumentar sim”, explica Estela.
Com o novo mapeamento, a artista ressalta a intenção de criar ações concretas a partir dos resultados obtidos. “A gente quer fazer um mapeamento para ter alguma, a partir do resultado, ter alguma ação”, diz. Lapponi enfatiza a importância de incluir essas vozes no debate cultural e utilizar dados estatísticos para evidenciar a presença e a atuação desses artistas. “Eu acho que a partir dos números, dos dados estatísticos, o mercado cultural não vai mais poder falar que a gente não existe”, comenta a artista.
Melissa Sayuri
Melissa Sayuri é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Fascinada pela comunicação e interessada nos estudos sobre o leste-asiático e a migração. Busca ouvir o que uma vez foi silêncio.