Kenay Salvador (Foto: Anna Ortega/Nonada)

“Os adultos precisam melhorar”: o que crianças Kaingang pensam sobre o futuro do planeta

Porto Alegre (RS) — Quando Maurício Ribeiro Mineiro, 10 anos, escala uma árvore na aldeia onde mora, ele se sente feliz. De cima, consegue ver as casas, as árvores, os pássaros. Ele pode estimar também a previsão do tempo. “Vai chover, porque as nuvens estão bem escuras”, analisa. A brincadeira, que aprendeu com amigos da escola, proporciona uma vista única: “É um paraíso grande, posso ver tudo”, conta. 

Maurício acenava lá de cima, enquanto perguntávamos a ele o que pensa sobre o futuro do planeta. Seu corpo logo dizia da relação de afeto com todo o entorno da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Fag Nhin, onde estuda, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre (RS). O Nonada Jornalismo perguntou a sete crianças e adolescentes da etnia Kaingang o que pensam e sentem sobre as mudanças climáticas do mundo. 

O povo Kaingang está presente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, e tem maior concentração no RS. A partir de uma cosmologia que divide o povo em duas metades, Kamé, ligados ao oeste e ao sol, e Kairu, ao solo úmido e à noite, os Kaingang cultivam a complementaridade da natureza.

Quando escutam a palavra “futuro”, as crianças logo falam de suas preocupações com a destruição do planeta. Beatriz Gomis Dhil Metej, 13 anos, cresceu na aldeia Fàg Nhin, na Lomba do Pinheiro, e diz ser impossível não falar dos últimos eventos climáticos, como as queimadas que atingiram todo o Brasil, e as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul. “Eu, como uma jovem, pretendo cuidar da natureza aqui na aldeia. O que eu penso no futuro, é que o Amazonas está pegando fogo, as árvores sendo derrubadas”, reflete. “Eu penso em mudar isso, mas não tem como, porque nós temos que mudar.” O “nós” a que Beatriz se refere são “os que moram fora. Os brancos.” 

Beatriz a Kenay (Foto: Anna Ortega/Nonada)

A rotina de Beatriz é, como ela diz, “no ritmo da aldeia”. Ela acorda às seis da manhã todos os dias e vai à escola. Suas matérias preferidas são as aulas de kaingang e de espanhol, onde ela escuta histórias que lhe inspiram. À tarde, volta para casa e ajuda a mãe com os artesanatos, mexe no celular, brinca no campo, joga vôlei e futebol e também ajuda a cozinhar o Fuá, sua comida tradicional Kaingang favorita. 

Beatriz fica em silêncio quando escuta a pergunta: “as mudanças climáticas afetam as crianças?”. Olha para o lado por alguns segundos e diz: “afetam porque eles estão destruindo a natureza, e a natureza é onde as crianças mais gostam de brincar.” Ela, mesma, ainda considera-se criança e escuta as sabedorias da avó Ilda Gomes, sobre estar perto da natureza para preservar a própria infância. “Minha vó me ensinou a respeitar outros seres, vegetais e animais”, conta. “No nosso ritmo da aldeia, quando a gente brinca, não pode pisar nas plantinhas, porque pode acabar destruindo.” 

Lohana Kafej de Carvalho Ribeiro (Foto: Anna Ortega/Nonada)
Notícias do mundo

Lohana Kafej de Carvalho Ribeiro, 10 anos, vive na Aldeia Ore Kupri, em Viamão, região metropolitana de Porto Alegre. Ela diz que já perdeu as contas de quantas vezes ligou a televisão nos últimos tempos e viu notícias sobre as queimadas. A preocupação que fica é com a vida dos animais. “Eu não sei se vai melhorar ou se vai piorar.” Ela conta que foi com a mãe ao centro da cidade de Porto Alegre, em maio, e pode ver as lojas cobertas de um marrom barroso deixado pela água das enchentes que atingiram a cidade. “Eu fico com dó porque muitas pessoas e animais morreram com as enchentes e com as queimadas. Eu tenho dó porque vários bichinhos estão sendo extintos por causa dos humanos.” 

Quando não está na escola, Lohana estende um pano sobre a grama e observa o entorno. “Gosto de brincar, e às vezes eu gosto de colocar um paninho e ficar fazendo assim [coloca a mão no queixo para mostrar]. Às vezes eu fico olhando o céu e ele está tão bonitinho.” A contemplação, porém, muitas vezes dá lugar a um receio de como o clima está, cada vez mais, imprevisível. “Uma vez eu estava na rua e a minha mãe disse ‘sai da chuva, menina’, porque tava uma mistura de chuva e fumaça”, conta. “Uma hora tá calor, eu vou dormir, e já está chovendo”, percebe. 

Beatriz conta que também notou mudanças nos últimos anos. Em setembro, quando nuvens de fumaça cobriram cidades brasileiras, a menina foi aconselhada pelas tias a não brincar ao ar livre. “A gente não conseguia ver o azul. O cheiro da chuva estava estranho. Quando choveu lá na aldeia, inventamos de nos molhar, mas todo mundo parou porque o cheiro da chuva estava ruim. Era por conta das queimadas, da fumaça que ficou no céu”. Foi também através da televisão que a Beatriz soube que as enchentes estavam acontecendo no estado. Ela conta que, antes desse momento, não sabia que enchentes existiam. 

Sabedoria das avós 

Quando era pequeno, os avós de Kenay Salvador, 14 anos, ensinaram uma sabedoria que até hoje ele exercita: conversar com a mata e com os animais. Na Aldeia Ore Kupri, ele caminha por uma estrada de terra, cercada de araucárias, pinheiros, e guajuviras. Esse é um de seus momentos preferidos do dia, quando ele sai para caminhar, ouvir o som da aldeia, que é bem diferente dos barulhos da cidade. “Me faz bem vir aqui sozinho. Nossos velhos do passado nos ensinaram a conversar com a mata. Às vezes eu falo com os animais, com os macacos, os peixes.” 

Além de jogar futebol e jogar Roblox no celular, Kenay leva gosto por ensinar a cultura Kaingang, não para qualquer pessoa, mas para amigos e colegas da escola. Na Escola Fag Nhin, ele é conhecido como aquele que tem conhecimento sobre a ancestralidade do povo e suas histórias. “Eu cresci falando Kaingang com a minha mãe, meu pai e meus avós”, conta. “Minha vó me ensinou a cuidar das plantas e da mata, e também a não derrubar muitas árvores, porque elas dão oxigênio.”

Kenay deseja que, no futuro, a mata continue como está hoje. “O problema de derrubar as árvores e desmatar é que tem pessoas que pegam as árvores para fazer casas, essas coisas…”, diz. “Só não quero que tirem essa mata aqui. Ela é a única que eu tenho.”

Indianara Vãn Kafej, 15 anos, também aprendeu com a avó que o desmatamento muda a qualidade do ar. “Ela me ensinou que a natureza dá esse ar que a gente está respirando agora. Quando a gente está em um lugar com muitos prédios, a gente não consegue respirar o mesmo ar. Parece que o ar é mais seco”, reflete. 

Ideias para adiar o fim do mundo

Como diz o escritor Ailton Krenak, o futuro não existe. Só podemos imaginá-lo. Para Lohana, o futuro só será melhor se a humanidade cooperar. “Eu acho que os adultos têm que melhorar para dar um futuro para as crianças”, opina.

Rhannah Kokoj Crespo, Indianara Vãn Kafej, Mauricio Ribeiro e Beatriz Gomis Dhil Metej (Fotos: Anna Ortega/Nonada)

Indianara enfatiza que não podemos responsabilizar a natureza sobre os eventos climáticos extremos que têm acontecido. “O rio não tem culpa de nada. Porque ele só tá retomando o lugar que era dele. As queimadas já tem outro motivo, porque são as pessoas que causam”, explica. Ela dá o exemplo do Lago Guaíba, em Porto Alegre, que inundou áreas aterradas, e que antes eram território do rio. 

Rhannah Kokoj Crespo da Silva, 10 anos,  pensa que as novas gerações podem ajudar. Ela tem ideias de como isso pode acontecer:  “Eles podem plantar uma árvore de laranja, bergamota.” No presente, Hannah já tem uma relação de cuidado e carinho com os outros seres. “Eu gosto de conversar com meus animais”. A menina tem um cachorro, um ring neck (periquito-de-colar), uma gata e uma galinha. “Eu falo com eles para eles aprenderem algumas coisas, como o que é e o que não é para fazer.” 

Ela se preocupa em como será a alimentação no futuro. “Eles estão poluindo todos os lugares, e aí vem uma chuva preta, e polui muitas as terras. Assim, as árvores vão parar de crescer”, explica. “A minha ideia é plantar mais coisas e ajudar a mãe natureza por causa da poluição.” 

Sophia Padilha Trindade, 10 anos, também tem ideias para adiar o fim do mundo. Ela acredita que plantar árvores, milho e alface podem ser bons começos. “Eu queria que acabasse a poluição, para o mundo se manter mais bonito, para as matas não serem derrubadas e para ter mais árvores no futuro”, diz.  Se pudesse dizer algo para as pessoas não-indígenas, Maurício diria para que lembrem que não existimos sem as florestas. “A gente precisa da natureza e das matas para sobreviver”, enfatiza. 

Sophia Padilha Trindade (Foto: Anna Ortega/Nonada)
“Ser criança é ter tempo” 

Na percepção das crianças entrevistadas, ser criança é ter a possibilidade de desfrutar da natureza e do tempo. Perguntamos às 7 crianças e adolescentes o que significa ser criança para eles. Veja as respostas: 

“Ser criança é aproveitar. Enquanto eu sou criança, eu estou aproveitando, porque quando eu crescer eu não vou mais ter tempo para isso” – Beatriz Gomis Dhil Metej

“Ser criança é bom. Pode brincar, pode correr, pode subir nas árvores, pode fazer várias coisas” – Sophia Padilha Trindade

“Ser criança é brincar, correr, pular, andar por aí, subir nas coisas, trepar nas árvores, falar” – Indianara Vãn Kafej Nascimento Fortes Padilha

“Ser criança é brincar, se divertir por aí com meus amigos com meu irmão” – Maurício Ribeiro Mineiro

“Ser criança é uma coisa muito legal. Ser criança é tu ter muito tempo na tua vida. Tu só chega em casa, ajuda a tua mãe ou a tua mãe manda tu ir brincar lá para fora. Eu tenho tempo na minha vida, sabia?” – Lohana Kafej de Carvalho Ribeiro

*Pedro Tubiana colaborou com esta reportagem

Compartilhe
Ler mais sobre
comunidades tradicionais
Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Ler mais sobre
Comunidades tradicionais Memória e patrimônio Notícias

Indígenas lançam manifesto pedindo retorno do Manto Tupinambá à aldeia em cerimônia oficial