Foto: Rian Souza/divulgação

Poeira Pura rompe com a “imagem cordial” do samba e tensiona o debate racial por meio da cultura

Gabrielle de Paula, especial para o Nonada Jornalismo*

Não é novidade que o samba também é um movimento político. Dessa forma, o que contribuiu para que os músicos cariocas Rogério Família e Mateus Professor criassem o Poeira Pura, foi a realidade de um país onde a lógica mercadológica aponta como a cultura deve ser consumida.  Desde 2021, o projeto tem o objetivo de transformar o perfil das rodas de samba tradicionais, com uma nova estética visual e sonora.

Nascida em Madureira, coração da Zona Norte do Rio de Janeiro, a roda ficou conhecida por seu formato intimista, sem microfones, através da proximidade com o público, semelhante à energia dos terreiros de religiões de matriz africana. Com um público majoritariamente negro e com a presença da comunidade LGBTQIA+, o grupo demonstra como o samba pode ter um papel civilizatório, tensionando questões sociais que também se manifestam no samba, como o racismo, o machismo e a lgbtfobia.

Se ainda hoje as desigualdades entre brancos e negros são maquiadas por uma suposta democracia racial, o Poeira Pura faz questão de provocar: “Se uma fala antirracista não incomoda uma pessoa branca em algum nível, é porque ela não foi bem feita”, diz Mateus Professor.

Em 2024, o grupo também formado por Simone Gonçalves, Jessica Souza, Lucas Badeco, Halux e João Paulo, lançou o single Suor e Febre e tem se apresentado em outras capitais, como Belo Horizonte e Salvador. Foi na passagem por Porto Alegre (RS), em novembro, que  tivemos um bate-papo em roda com o grupo. Confira:

Nonada — Como foi o encontro de vocês para a concepção do Poeira Pura no formato em que se apresentam hoje?

Mateus Professor — Na verdade, o projeto surgiu em 2019, quando fizemos um piloto, eu e o Rogério.  Algumas coisas não deram muito certo e aí veio a pandemia. O Rogério é meu mestre, ele fazia parte de duas rodas de samba emblemáticas no Rio, que é o Terreiro de Crioula e a Pedra do Sal, e ele saiu. Na época, eu também fazia parte de um samba que tava estourado, que era o Samba da Serrinha, e eu também saí. Aí a gente começou a conversar sobre as coisas que não nos deixavam feliz no samba, que nos deixavam insatisfeito. Aí o Poeira nasce e a gente começa a modelar o projeto pra entender quais as mudanças que a gente queria proporcionar. Foram meses trocando ideia, conversando sobre o que a gente errou na nossa caminhada. O Poeira tem pouco tempo, mas ninguém aqui tem pouco tempo na música. A  gente montou um trampo pra ser a mudança que a gente queria ver no samba. O projeto está como foi concebido desde o início, a gente tem sonhos maiores que também já foram concebidos desde o início, a gente tá seguindo o planejado e também deixando a vida nos levar pelos caminhos que ela quiser nos levar.

Rogério Família — O bom que a gente ficou meses conversando, trocando nossas experiências. Principalmente em organização de eventos, na organização de roda de samba. Isso foi fundamental para o Poeira ter um arranque inicial, alguns percalços, mas esse encontro foi interessante por isso, a gente teve um encontro de experiências, sabe. A gente organiza o máximo pra poder dar conta daquilo que vai acontecer.

Foto: Alisson Batista

Nonada — Qual o significado que tem para vocês integrar um projeto novo e poder se dedicar exclusivamente para a música?

Mateus Professor — É o básico, né, que bom. Deveria ser o mínimo. Não é uma crítica à pergunta, mas só desse tipo de pergunta  existir, já demonstra quem tem um problema.

Lucas Badeco — É. A gente às vezes se olha e diz ‘pô, a gente tem o maior privilégio de viver de música’, temos noção disso, sabe. É ruim que isso seja um privilégio, mas a gente tá ligado que isso não é comum.

Rogério Família — Tem toda uma geração que não teve essa possibilidade. Eu sou militar da reserva, na época que iniciou o Poeira eu tava na ativa, terminando a faculdade também, tava tudo meio embolado e minha vida sempre foi essa. Era só depois do expediente que eu ia trabalhar com samba, só que o samba sempre foi a minha vida. Eu com 14 anos já tocava por aí.

Nonada — Como vocês avaliam o crescimento e a visibilidade do projeto?

Rogério Família — A nossa comunicação é um diferencial. Uma comunicação muito pujante, muito sensual, quente, noturna e dialoga com uma galera que a gente quer que esteja no samba. Essas ideias saem da cabeça dele [Mateus], sempre trouxe esse tipo de coisa. A gente tem que chocar, a gente sabe que tem uma galera mais nova, que gosta de samba, mas não tem uma comunicação que atrai. Então, a gente conseguiu com o Poeira fazer isso.

Mateus Professor — Existe uma construção e uma percepção do que é, de qual o lugar e onde pode chegar o samba para as pessoas. Em geral, para as pessoas que não têm intimidade com o samba, o que chega não é uma construção feita pelos sambistas e sim pelas marcas de cerveja, usando o samba como um vetor para vender cerveja. Você nunca viu uma propaganda de cerveja falando de Jovelina, de Candeia, falando da luta do povo preto, porque o samba é um caminho de luta também. Aí eles vendem cerveja em cima de ‘democracia racial’, da objetificação da mulher preta, ‘o samba tá no bar que é o lugar onde todo mundo se encontra’. As diferenças de classe e de raça são pulverizadas e a gente não acredita nisso. A gente veio para romper com isso mesmo. A gente sabe que o samba é algo familiar, mas no samba também tem putaria, pegação, a gente não romantiza o samba. Romantizar é ruim, porque se não você coloca a coisa num pedestal, nesse modelo de divindade branca, num patamar quase de pureza. Aqui todo mundo é macumbeiro e isso não condiz com a maneira que a gente vê o mundo. A gente vem pra mostrar como vemos o samba e como a gente quer que ele seja. A gente é sensualidade, militante da cannabis, acreditamos na ancestralidade, uma roda majoritariamente preta. As pessoas queriam ver algo assim. Qualquer rolê cultural precisa ser relevante e precisa ter coragem para falar. Mas, às vezes, até  poder falar é um privilégio, né.

Nonada — A partir da trajetória de vocês, quais eram os motivos que deixavam vocês insatisfeitos no samba?

Mateus Professor — Ahh! Pergunta pra alguém aqui se gostam de tocar em aniversário? Para um público que não é do samba?! Alguém gosta de tocar em festa de bacana, casamento? Porque o samba é tratado como algo menor. Ele tá na cultura do boteco e o boteco é lugar de coisas baratas. Na festa de bacana, você não tem acesso à comida, tem que tocar a música que o cara quer, é um serviçal, você não é artista, não tem troca. A gente fala muito de Exu, Exu é troca, as relações precisam ter troca e ser boa para os dois lados. É uma dinâmica, uma dança. Muitos casos também a gente vai tocar num festival, nosso som é o último a passar, com menos tempo, as pessoas têm uma má vontade, ah toca aí. Isso afeta na maneira que tratam a gente, na falta de grana. As pessoas confundem fundamento com precariedade, como se pra ser de verdade precisasse ser embaixo de uma lona feia, com banheiro químico. A gente vem de uma escassez de recursos, mas não pode se acostumar com isso. O grande lance do Poeira é que a equipe tem essa vontade de fazer o samba prosperar, colocando pessoas semelhantes a nós em um lugar maneiro. Meu sonho é que as pessoas olhem pro Poeira e pensem ‘caraca, dá pra ser diferente’.

Rogério Família — Sobre esse lance da precariedade, aconteceu uma vez comigo algo que reflete bem isso de o samba ser visto como algo menor, como só divertimento. Não que diversão seja ruim, mas isso reduz muito a complexidade do que é o samba. O samba é complexo, é uma forma de enxergar a vida, é o modo de viver de uma comunidade, ele formatou uma comunidade. Não é à toa que ele é patrimônio. Uma vez eu  fui fazer um samba em um bairro chamado Paciência, no Rio de Janeiro, tinha uma galera, o samba comendo quente no domingo. Segunda-feira voltei pro quartel, eu e o meu primo, aí tinha uma menina que coincidentemente trabalhava no mesmo quartel que a gente e ela ‘ué, vocês não tavam tocando ontem lá? Eu pensei que vocês fossem sambistas, vagabundo, vocês trabalham, né’. E até hoje quando falo que faço samba, perguntam ‘e trabalha com o quê?!’. E é uma profissão, o samba gera valor, família, por isso a gente bate de frente, até com gente nossa, galera mais tradicional da minha geração, mas faz parte também, um dia bate de frente, no outro estamos juntos.

Nonada — O Poeira tem posicionamento político e faz um tensionamento sobre a presença do público branco nas rodas de samba. Como é para vocês essa questão?

Rogério Família — O tensionamento é proposital e planejado previamente. A gente conversa, ‘oh fala isso, fala aquilo’, porque isso é uma briga que a gente quer comprar, não só como samba, mas como sociedade, né. A gente tem que tensionar, porque não é normal ser oprimido. O espaço do povo preto deve ser ampliado, em todos os aspectos, mas o samba é uma ferramenta muito forte. Talvez o samba seja a música que mais gera valor para o país, com desfile de Carnaval, e é uma tecnologia do povo preto. Em contrapartida, a gente continua nesse espaço menor, de não decisão, de periferia, de suburbanização. Então, o tensionamento vai incomodar mesmo a galera branca, não tem jeito.  A pessoa branca que vai no nosso samba, ela pode chegar, mas ela tem que se ligar, tem que saber chegar. Porque se o curso da sociedade continuar assim, a gente vai seguir sendo racista, machista, lgbtfóbico.

Mateus Professor — Não existe Poeira Pura sem suor e febre. Tem uma parada que a gente acredita que a questão racial é primordial para o país. Se todas as questões do país fossem racializadas, a gente teria um país melhor. Por exemplo, sobre meio ambiente, o modelo que a gente vive não é um modelo africano, nem do povo originário. Talvez, se fosse, não teria enchente. Escala 6×1: se for entender a dinâmica de trabalho, por uma outra perspectiva que não seja a branca ocidental, teria outra visão de mundo. A gente entende que racializar é a dor principal do Brasil, isso passa por uma parada que é: se uma fala antirracista não incomoda uma pessoa branca em algum nível, é porque ela não foi bem feita.

Foto: Alisson Batista

Nonada — E o que vocês diriam que é esse incômodo que gera no público branco? Como isso se manifesta?

Mateus Professor — Cara, as pessoas brancas foram criadas para mandar no mundo, né. Então, quando você diz assim que esse lugar aqui não vai ser da maneira que você quer, é igual criança mimada, ou ela fica triste e chateada ‘ah porque vocês disseram isso, não me acolheram como eu queria’, ou fica com raiva. Mas tem pessoas que chegam, que são maneiras, que estão com a gente, que chegam em silêncio, e é isso cara, qualquer lugar que você vai, na casa de alguém você não vai botar o pé na porta. O samba é do povo preto, qualquer pessoa que chega de fora, é chegar devagar, aprender a ouvir. Mas é fato, pessoas brancas que não são racializadas, quando dão limites pra elas, elas se comportam como criança mimada, só que são adultos.

Rogério Família — Tem muita mensagem que dá até vontade de rir ‘nossa, sofri preconceito no samba por ser branca’. Pô [risos]. Daí a gente tem que pegar a máquina do tempo, voltar lá atrás, criar o navio branqueiro e a África colonizar a Europa, e aí sim vai ter fundamento. Às vezes rola algum tipo de tensão que também não cabe colocar em rede social, mas tipo, quem tava no lugar viu. A gente solta o que a gente acha interessante para tensionar ou para dar resposta ao que aconteceu lá na hora. O lance de assédio, por exemplo, também é complicado, então a gente fica ligado. Depois a gente vê com a comunicação como vai ser falado, pra ter um alcance legal, pra galera refletir sobre aquilo. É atrito, é o jeito que a gente joga e tem que ser, né.

Mateus Professor —  Os tensionamentos fazem parte de qualquer relação. Agora, tem uma questão que é importante falar. Quando a gente faz esse discurso mais agressivo, com posicionamento mais firme, as marcas se afastam. As marcas querem falar pra todo mundo, a gente não tem a pretensão de falar pra todo mundo. As marcas não têm coragem de fechar com o Poeira. A gente tá aí com um trampo um pouco mais robusto e até agora não tivemos nenhum patrocínio, fazemos eventos independentes. Se tivesse apoio, mais dinheiro, a gente já tava muito maior. Você se posicionar, é solitário. Mas a gente tem a coisa mais preciosa que é a comunidade do Poeira. Quem faz a gente acontecer, é a nossa comunidade. Nós somos um ser coletivo.

Nonada — E para as mulheres do projeto, qual é o diferencial de integrar a banda?

Simone Gonçalves — Eu to na música desde nova, comecei a tocar com 12 anos de idade, e é um mundo muito machista né, não tem como. Todos os lugares que a gente vai, é vista pelo gênero, pela imagem e não pelo profissionalismo. A gente tem que estar se provando a toda hora. E aqui é uma comunidade que inseriu a gente, então é importante. Não deveria ser um privilégio, infelizmente ainda é. A maioria das bandas que a gente vai tocar, às vezes um freelancer, ‘pô, mas uma mina, uma mina vai tocar?’. Aqui no Poeira me sinto muito à vontade pra trabalhar, pra criar, dar ideia, sou muito grata.

Jessica Souza — Sim, sim. O Poeira abraçou a gente mesmo. Deveria ser o pensamento geral [incluir mulheres], mas ainda não é.

Simone Gonçalves — Em São Paulo até tá acontecendo mais, mas tem que ter um pontapé e o Poeira é um desses pioneiros. Não é um favor, eu me considero muito profissional. Eu e a Jessica trabalhamos com muitas mulheres que são muito boas no que fazem. Então, é o lance mesmo de dar oportunidade.

Nonada — Neste ano vocês lançaram um trabalho autoral, com elementos de trap e música eletrônica. Como são essas influências para o Poeira Pura?

Mateus Professor — O samba faz parte do viver das pessoas e quem ouve samba normalmente ouve hip hop, funk, trap. Tá no nosso dia a dia. E a gente tem a busca pelo novo mesmo. É um pouco do desejo inexplicável do artista de fazer um bagulho novo. O samba tem uma experiência mais imersiva e como a gente agora também tá fazendo shows maiores em palco, queremos estar nos festivais, então tinha que ter um som mais expansivo. A gente não quer chegar num festival e ser a roda de samba que fica no canto enquanto troca de artista. A gente vai ser a atração. Isso antes de ficar ancião. A gente quer impactar. É vontade de fazer acontecer.

Rogério Família — É meio que um caminho para qualquer artista, né. Ter música nova, ter música inédita. Hoje os tempos são mais complicados, mas não tem pra onde correr, tem que ter trabalho próprio.

Foto: Alisson Batista

Nonada — Como está sendo expandir as apresentações para outros estados do país?

Lucas Badeco — É, eu tava pensando aqui, ‘caraca tô em Porto Alegre, mané’. E é com o Poeira, não com um cara mais renomado. A gente tá curtindo a cidade, mesmo com o pouco tempo. E pra mim fazer parte dessa parada é muito grande. Conto isso pros muleque que andam comigo também e já passando essa ideia de inclusão, de questão racial, de chegar num samba e deixar as mina confortável no ambiente. A percepção disso é que o Poeira é maneiro demais. Como projeto, é um início muito grande e acho que a gente ainda vai chegar em lugares pra fora do país. 

Mateus Professor — É importante dizer o seguinte, todo mundo aqui trabalha pra caramba. A galera não é de ficar de resenha, de ficar doidão na pista, essa boêmia romantizada associada ao samba. A gente acorda cedo, Badeco estuda pra caramba, Simone estuda. A equipe de produção e marketing, trabalham muito, mano. Queremos dar essa esperança pra gente como sambista. Hoje eu fico feliz, pô é possível, porque eu achava que não era. Que o único caminho pra você viajar pra outro lugar era tocar escondidinho para algum artista que já tivesse nome. Cada um aqui tem uma trajetória e a gente construiu nosso rolê com uma mensagem que não é cerveja, não é resenha. É trabalho, estudo, ciência.

Jessica Souza — É muito suor e muita febre!

Gabrielle de Paula

Jornalista socioambiental e mestre em comunicação e informação pela UFRGS. Tem experiência na produção de grandes reportagens e documentários, com foco em direitos humanos, meio ambiente e cultura.

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