Mulher negra de cabelos ondulados longos realiza um movimento de capoeira jogando um dos pés para cima
Puma Camille (Foto: Caio Oviedo/divulgação)

Puma Camillê, a multiartista que une a Capoeira e o Vogue em movimentos transancestrais

Melany Pereira, especial para o Nonada Jornalismo*

Multiartista, intelectual e idealizadora do Capoeira para Todes, Puma Camillê subverte a lógica hétero cisgênero e constrói um imaginário possível para corpos que transgridem a partir dos seus movimentos. Nascida no bairro São Bernardo, em Campinas (SP), aos seis anos ela conheceu a arte capoeirista a partir de um mestre tradicional da sua cidade. 

“Crescendo numa família de candomblé, eu sempre vi a capoeira manifestada em corpas que não eram corpos que jogavam capoeira”, comenta em entrevista ao Nonada. A partir disso, ela aprendeu a tocar, cantar, girar e pular, todos os elementos que compõem sua arte: “Eu demorei a perceber que eu era uma multiartista, que a capoeira tinha me formado”, reflete.   

Nesse mesmo contexto, Puma adquiriu o senso de comunidade, fator que carrega para dentro do seu coletivo, que tem como premissa potencializar e incluir pessoas pretas, trans e travestis, oferecendo a elas a possibilidade de criar um futuro para além dos estigmas aos quais seus corpos são colocados.

 A ânsia por movimentar os espaços que estava inserida vem desde sempre. Antes mesmo da criação do coletivo que ocorreu no contexto da pandemia, a multiartista já havia criado um movimento capoeirista voltado para as pessoas LGBTQIA+, que sofreu retaliações na época. Diante disso, Puma compreende que a evolução deve acontecer. “O fundamento capoeirista não deve ser movido, mas a tradição pode ter movimento. A gente está criando novas tradições, até porque nosso corpo não estava antes lá”, reforça.

Em sua passagem pela programação do educativo da 14º Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (RS), em dezembro, Puma Camillê contextualizou como se dá o encontro dos movimentos capoeiristas com o voguing –, manifestação corporal vinda da cultura ballroom

Confira a entrevista exclusiva concedida ao Nonada:

Nonada – Partindo do início da sua história, em qual contexto e momento a capoeira foi apresentada para você? 

Puma Camillê – É muito doido, porque quando as pessoas escutam falar de capoeira, sempre chega através de projetos sociais, mas chegou por meio de histórias. A minha irmã já fazia capoeira com o Mestre Bill, que é um mestre de capoeira que leva uma roda tradicional há mais de 30 anos na cidade. Crescendo numa família de candomblé, eu sempre vi a capoeira manifestada em corpas que não eram corpos que jogavam capoeira, eram corpos que estavam falando de capoeira, mas eu não sabia que aquilo era capoeira. A capoeira jogada chega quando eu tenho seis anos com o Mestre Bill, no bairro São Bernardo, em Campinas, o primeiro bairro de aglomeração preta. Lá tem histórias de mutilação de capoeiristas. Então, eu sinto que é algo que precisava acontecer na minha família, a minha família só não teve o discernimento, então segue acontecendo. Não é sobre mim, é sobre a informação que a gente carrega por trás do movimento. 

Nonada – Como surge a idealização do coletivo Capoeira para Todes? E como se deu a interseccionalidade da capoeira com o voguing? 

Puma Camillê – O Capoeira para Todes surge num momento de pandemia. Mas, antes disso, dentro do universo da capoeira de corda, que é de onde eu vim, eu passava por muitas questões de homofobia, ouvia muitas coisas, tinha apelidos com reprodução racista. Então, tinha muitas questões e eu acredito, sim, que existe mudança lá dentro e eu inspiro essa mudança hoje. Até que percebi que eu precisava criar um movimento, em que eu tenha acesso a mestres e mestras, e que eu consiga carregar outras pessoas trans no princípio, porque no princípio as pessoas precisam de uma guiança trazendo elas juntas. Se eu fosse só aguardar pessoas trans chegarem na capoeira, esse movimento não iria acontecer. Com essa necessidade, eu conheço a comunidade Ballroom em 2019 e percebo uma capoeira acontecendo de outra forma, uma capoeira travesti no meu olho, e quanto mais eu me adentrei, mais as pessoas começaram a me falar: “Olha, ela mistura capoeira com voguing”. Mas não era eu que estava misturando, minha realidade era a capoeira. 

O Capoeira para Todes é um movimento que percebe que, a gente não precisa utilizar do corpo exclusivamente na prostituição, estar exposto à violência, a gente pode usar a subversão, o outro lado da moeda. A Ballroom consegue narrar num baile uma noite de glória máxima, mas não consegue vivenciar isso de fato, e a capoeira tem o jogo da passabilidade, a sabença de formar comunidade. Eu acho que essas duas coisas: saber entrar e estar nesse lugar é uma ferramenta para o futuro. A capoeira tá em movimento, os corpos que estão lutando hoje são por outros motivos, e ela segue se envolvendo, se atualizando nessas lutas políticas. Ela veio desse povo oprimido, que até ontem levava chibatada, e quem é o povo que leva chibatada hoje? A capoeira serve para esse povo também, e esse povo sabe usar o corpo. Se você olhar para a comunidade ao lado, esse povo já joga com o corpo, com o canto, com a palma, com a roda, com a maestria, julgando e tocando para isso acontecer. 

Então, são duas histórias que podem se encontrar, porque a gente não viu a travesti velha ainda, a gente não tem essa imagem e é disso que eu estou contando. O Capoeira para Todes visa esse imaginário transancestral que a gente está construindo e esse futuro em roda.

Mulher negra de cabelos crespos longos, top laranja e saia laranja com brilho faz um movimento de dança em cima de um palco
Foto: Thiele Elissa (Foto: Bienal do Mercosul/divulgação)

Nonada – A ancestralidade e o legado cultural da negritude e da comunidade LGBTQIA+ estão muito presentes nas tuas manifestações corporais. Como você percebe toda essa bagagem na sua própria construção? 

Puma Camillê – Eu fui uma criança LGBT, né?! Desde sempre, eu dançava axé na escola, eu já era essa criança que minha irmã com seis anos falava assim: “não rebola”. Nisso, eu notei que meu corpo era diferente, eu lembro de prazeres e desejos que eu escondia e negava, eu aprendi muito rápido que aquilo era feio em sociedade. Então, eu aprendi a me moldar na sociedade, mas eu não me coloco como corpo LGBT, porque eu demorei a perceber que eu fiz muita força para tentar me adequar. Enfim, até eu perceber que eu era uma intelectual da minha própria “sabença” popular.

Com isso, eu precisava de corpos que estivessem em outra profundidade, e isso não estava exclusivamente na cor de pele, mas corpos que transcendiam. Eu comecei a perceber que eu não me encaixava onde eu estava na vida, e vendo corpos que transcendem foi muito fácil de me identificar. Então, essa fusão da minha vivência LGBT com a minha vivência de capoeira, saber popular, eu sinto que atingiu o Cunt* – quando o corpo passa a ser o próprio território político de fala. Então, o meu corpo LGBT, preto, trans, de favela, passou a ser o meu território político, o que era para ser um apontamento de morte e de dor, eu uso o outro lado da moeda e eu uso o mesmo ponto para poder falar.

[Nota da redação: A palavra “cunt” pode ser traduzida para o português como vagina, mas na cultura Ballroom, a palavra é utilizada de forma positiva e de empoderamento, descrevendo alguém que tem carisma, é única, tem audácia para chegar e talento.-

Nonada – O poder da comunidade aparece com muita força na tua trajetória. Qual o sentimento de ser a idealizadora de um espaço que proporciona a união e a potencialidade para os corpos LGBTQIA+? 

Puma Camillê – Quando eu estava em espaços aprofundados de capoeira, com pessoas aldeadas, tendo essa vivência com pessoas aquilombadas, eu via que as pessoas eram totalmente diferentes, eu ouvia coisas diferentes. Eu nasci num bairro que é a primeira ocupação preta, o bairro da escola de samba e do futebol. Desde sempre, a minha mãe fazia parte da ala das baianas, lá tinha quem costurava, quem vendia quitute, eu via a roda girando, todo mundo ganhava dinheiro.

Nesse contexto, percebi que para viver, eu precisaria dessas pessoas da roda, eu me sentia segura e forte, porque eu sabia que nada ia acontecer de ruim, porque a gente tinha todas as pessoas com seus potenciais em volta. Se eu tenho quem confecciona na minha roda, quem escreve, quem cozinha, quem faz a roupa, quem joga do jeito que pode, quem fala politicamente, eu criei uma roda. Então, eu comecei a entender que eu precisava desse quilombo, que modernamente as corporações entenderam. E se a gente fizesse as nossas próprias corporações, com as nossas realidades de talento e todo mundo soubesse como a gente ganha dinheiro no meio da roda? Então, eu sinto que a minha ideia, com a minha comunidade, é da gente estar de mãos dadas para entender essa informação. 

Nonada – Como você articula a importância de reconhecer o passado com a projeção do futuro dentro do coletivo? 

Puma Camillê – Enfim, eu acho que a projeção do futuro é pensar em estar viva. De verdade, pode ser poético, mas é muito sério, porque eu não sei se você tem imagem na sua cabeça de pessoas trans de cabelo branco, tem noção? Pessoas trans mestras tocando berimbau, mestre de capoeira? Então, eu sinto que eu preciso estar viva. Projetar o meu futuro é me visualizar podendo comer, beber e estar viva. Consequentemente, eu sou ambiciosa, eu vejo que a capoeira e a ballroom estão no mundo inteiro, e eu percebo que a minha figura está comunicando com o mundo e eu sei que isso vai se encontrar. Então, eu vejo esse futuro, essa tecnologia, essas informações que a gente está partilhando como uma informação que rode na escola, uma informação que rode em lugares de ensinamento, que mude a base, informações que alterem como a gira-gira.

Eu sei que tem muitas pessoas tentando e a gente vai se encontrar. É como o rio, ele tem um curso que não é linear, mas ele tem destino, ele sabe onde ele quer chegar. E esses rios, quando estão se enfraquecendo, eles se encontram um com o outro, porque eles estão na mesma direção e eu sei que eu vou encontrar com esses antropólogos, sociólogos, jornalistas, pessoas que estão querendo comunicar uma história semelhante. Então, eu não estou só no meu movimento, no palco, no movimento da vida, eu sei disso. 

Grupo de pessoas, em sua maioria negros, posa para foto vestindo roupas coloridas e volumosas; no centro, uma mulher negra de top amarelo e capa vermelha segura um berimbau
Coletivo Capoeira para Todes (Foto: Caio Oviedo/divulgação)

Nonada – Me conta um pouco sobre a conexão dos códigos de fala Pajubá (da Ballroom) com a musicalidade africana vinda da capoeira. Podemos afirmar que essas formas de expressão também fazem parte das misturas culturais brasileiras?

Puma Camillê – Eu sinto que elas devem se encontrar, só não tinha esse corpo trans cantando isso. Mas, no meio das pessoas trans existe, no meio das pessoas trans de axé existe, no meio da nossa comunidade existe, a gente sabe de onde vem. E a linguagem da capoeira, ela canta e reconta histórias de momentos políticos, então vários momentos são machistas, então tem músicas machistas, vários momentos passavam pela questão do racismo, então tem músicas racistas. Nesse contexto, tem músicas que merecem ser mudadas, merecem, fazem um serviço político hoje. Então, se a gente entende que tem músicas que merecem não ser cantadas, a gente vai pontuar elas quando elas não merecem ser cantadas e não cantar porque elas estão na história. E tem outras como Pajubá que merecem ser incluídas, mas antes disso, esse corpo está vindo falar com o berimbau, tocar direitinho, porque não é só chegar e cantar, tem que chegar e tocar no refinamento.

Nonada – No final de 2023, a cantora Beyoncé vem para Salvador (BA) em uma celebração do seu último álbum, o Renaissance, uma festa que você abrilhantou com a sua arte. Como foi ter sido percebida por uma artista que possui tanta conexão com a comunidade negra e LGBTQIA+?  

Puma Camillê – A gente nem chegou aonde vai chegar ainda, aquilo foi só uma peça de uma construção. A pessoa que introduz o show da Beyoncé, ela fez uma música para mim, o DJ que toca com a Beyoncé, eu fiz uma performance individual para ele. Depois disso, existe um convite para estar lá, a partir da comunidade Ballroom de Salvador, que entenderam a importância da minha presença por conta da Capoeira. E lógico que ela conhece, ela sabe quem é, mas a gente não se encontrou e eu não vou chegar como dançarina, eu vou chegar com um espetáculo, um grande: “Ladies and gentlemen: Puma Camillê”, vai acontecer esse momento.

Mulher negra de cabelos ondulados longos vestindo top e hotpant amarelos segura um berimbau
Foto: Caio Oviedo/divulgação

Mas foi muito importante para mim, porque eu não entrei sozinha, eu estava com a Mestra Janja, que é uma mestra preta, sapatona, que representa o movimento político da Capoeira Angola desde a época da ditadura. É muito forte, um grupo mundial, conectado com a ONU. Então ela entra cantando em quimbundo para gente jogar Capoeira Angola, bem jogada, imagina uma travesti jogando de salto, para abrir para Beyoncé, com a mestra cantando, com a música do MC da Beyoncé fazendo essa abertura. Eu sinto que foi muito bonito aquela celebração, porque aquilo aconteceu num bairro de quebrada, com a comunidade Ballroom convidada gratuitamente, uma festa exclusiva para pessoas que acompanham ela, mas em específico para as pessoas da Ballroom. Então, eu vi muitos pontos de uma construção, de uma comunicação.

Nonada – Puma, se você pudesse deixar uma mensagem para a sua criança do passado, o que você diria para ela? 

Puma Camillê – Se eu pudesse contar para a Puma criança, eu ia falar para ela dar pinta, para ela não se esconder, para ela encontrar as pessoas que amam ela, para ela não ficar tentando aprovação social, para ela se potencializar logo. Aproveita que você brilha mesmo, tão te apontando é porque você brilha, não é porque você é feia, você é bonita, olha para sua pele, olha como ela é bonita. Eu demorei, não demorei, né, tudo acontece num tempo muito certo, mas se eu visse isso antes, a história seria diferente, que bom que eu ouvi no tempo certo. Se eu pudesse falar, eu falaria da pele dela, do cabelo dela, eu falaria da feminilidade dela que ela não era um problema, eu falaria de muitas coisas que são apontamentos sociais. Mas, eu percebo que os apontamentos sociais nada mais são que medos da sociedade das nossas potencialidades e como isso destaca na hegemonia, na mediocridade, como a gente destaca e a gente se coloca menos ou igual para passar. Enquanto a gente podia ser destacada mesmo, não é um problema, pode fazer parte da roda, não ia ser mais nem menos que ninguém, só diferente. Então, eu deixaria a Puma saber disso muito antes.

Melany Pereira

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e redatora. Os meus interesses giram em torno da cultura popular brasileira, da moda, da fotografia e do audiovisual.

 

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