Lucas Veloso, especial para o Nonada Jornalismo*
Aspino é um lavrador quilombola que leva uma vida tranquila entre suas plantações e a caça, até que um fazendeiro mal-intencionado envia um boi para destruir suas terras e intimidar sua comunidade. Essa trajetória de resistência é o enredo central do livro Aspino e o Boi (Ed. Sophia, 2024), escrito por Gessiane Nazario. A obra infantil evoca histórias orais da comunidade quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, no Rio de Janeiro.
A obra tem suas raízes na oralidade, aspecto fundamental da identidade quilombola. Gessiane explica que essas narrativas, transmitidas de geração em geração, foram a base do enredo. “Preservamos a essência dessas histórias, que falam de luta, resistência e pertencimento”, afirma. A adaptação exigiu um cuidado especial para manter a fidelidade ao tom e aos símbolos dessas memórias, além de integrar as contribuições da sua própria família.
O personagem principal é inspirado no bisavô de Gessiane, figura central em suas recordações. “Aspino é o meu bisavô, mas sua história reflete a luta de todos os quilombolas que resistiram ao longo do tempo”, diz a autora. “Este livro não é apenas uma história de infância, é um legado. Ele nos lembra de quem somos e de onde viemos.”

Além de escritora, Gessiane Nazario é professora e uma ativa defensora dos direitos quilombolas. Sua trajetória acadêmica é focada na promoção da educação e na luta por justiça social, com ênfase em seu pós-doutorado em História Comparada e sua participação na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). No entanto, apesar de sua sólida formação, o processo de publicação de seu livro foi desafiador, devido às barreiras de acesso que as histórias quilombolas enfrentam no mercado editorial.
Nas pesquisas e no dia a dia do trabalho, um dos conceitos defendidos por Gessiane é do “aquilombamento da literatura infantil”. Ela reivindica uma mudança profunda na forma como as histórias são contadas. “É uma tomada de posição das autoras quilombolas. Queremos ocupar espaços que nos foram historicamente negados”, pontua. “O meu posicionamento enquanto escritora de literatura infantil é político, pois o trabalho que eu produzo é para dar visibilidade às histórias de meus avós que ficaram silenciadas por décadas”.
Apesar da relevância da abordagem, Gessiane observa que os livros produzidos por quilombolas ainda enfrentam grandes barreiras no mercado editorial. “A recepção é ainda muito tímida. Publicar é muito caro. Eu tive a sorte de encontrar uma editora politicamente comprometida, como a Editora Sophia, mas ela é de pequeno porte”, explica.

Ela também cita a editora Jandaíra, parceria nas publicações da CONAQ, mas também não é uma editora de grande porte no sentido de poder aquisitivo. Ela enfatiza a necessidade urgente de políticas públicas que incentivem a produção de literatura escrita por quilombolas e promovam sua participação em grandes eventos literários. “Se queremos equidade étnico-racial na literatura, que ainda é um espaço branco e elitizado, precisaremos de políticas mais ousadas”, argumenta.
A autora também aponta que o consumo de literatura é elitizado, o que dificulta o acesso das comunidades quilombolas a essas obras. Um exemplo da falta de informações e dados, questão diretamente relacionada às políticas públicas para a autoria quilombola, ocorreu quando o Nonada entrou em contato com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a Câmara Brasileira do Livro (CBL), duas entidades relevantes do setor, para verificar se havia algum levantamento sobre o número de publicações de escritores quilombolas, incluindo dados como a quantidade de publicações e anos de lançamento. No entanto, nenhuma dessas organizações possuía informações ou dados específicos sobre o tema.
Editais direcionados especificamente à população quilombola têm surgido nos últimos anos, como o I Prêmio Nacional de Literatura Infantojuvenil para Quilombolas e Ciganas, organizado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), aberto até 15 de abril.
Incentivo público é fundamental
Escritora, poeta, antropóloga e mulher negra quilombola, natural de Pernambuco, Crislaine Venceslau de Andrade publicou uma obra, que inclui poesias, prosas e está lançando um em homenagem ao seu lugar de origem, suas vivências e sua comunidade quilombola, que vai de Goiânia a Tejucupapo, no interior de Pernambuco. “Desde criança, escrevo sobre o que me atravessa, sobre o meu lugar, minha gente”, explica Crislaine. “O nome de um dos meus livros é ‘Atravessamento‘, porque eu costumo falar sobre o que me atravessa, o que eu observo”, comenta.
A escritora também está prestes a lançar um livro infantil sobre o congado da sua comunidade, uma tradicional procissão chamada carrego da lenha, recentemente reconhecida como patrimônio cultural imaterial de Pernambuco. “Essa história foi passada de geração em geração pela minha avó, benzedeira da comunidade. Fazer parte do inventário participativo e contar essa história para as crianças é muito importante”, afirma Crislaine.
Embora tenha três publicações em seu nome – incluindo o zine que iniciou sua trajetória de autopublicação –, Crislaine também enfrenta dificuldades no mercado editorial. “Quase não conheço escritores quilombolas. Só quando ganho algum prêmio com incentivo do poder público é que consigo descobrir a existência de outras”, exemplifica.
Para ela, a publicação de suas obras só foi possível devido ao apoio de editais públicos, como a Lei Paulo Gustavo, a Política Nacional Aldir Blanc e o Focultura, que garantiram a verba necessária para divulgar seus trabalhos. “Esses incentivos têm sido fundamentais para eu continuar escrevendo e ver o meu trabalho circular. Só de forma independente, não conseguimos alcançar a visibilidade necessária”, aponta.
No entanto, Crislaine destaca que, apesar das dificuldades, o cenário tem mudado, ainda que lentamente. “Conseguir aprovar projetos e ser publicada tem melhorado, mas o processo é burocrático e difícil, e muitas vezes somos excluídos por motivos simples. Ainda assim, estamos conquistando espaços aos poucos”, observa.
Crislaine é integrante do coletivo literário Mala Preta, formado por escritores negros de Pernambuco. “Esse coletivo tem sido fundamental para a promoção dos nossos trabalhos e para a criação de espaços de visibilidade. Eu sou a única quilombola no coletivo, mas temos trabalhado juntos para levar a literatura produzida por nós a mais pessoas”, conta. “O poder de falar, o não estar sendo silenciada, é libertador”.

“Escrevam. Não Desistam”
Se por um lado, o cenário pode parecer desolador, por outro, alguns reconhecimentos dão vazão à esperança de melhores dias para a literatura dos povos quilombolas. Em dezembro de 2023, por exemplo, João Paulo Pinto do Carmo, estudante quilombola da comunidade de Outeiro Redondo, na Bahia, foi premiado no 2º edital de literatura infantil de autores baianos, com a obra Cachos de Dendê – A história de uma menina chamada Felipa. O livro, que celebra a cultura local, será distribuído para mais de 500 mil crianças no estado como parte do programa Educar para Transformar.
Além disso, no Ceará, quatro escritoras quilombolas foram premiadas em 2023 no Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, promovido pelo Ministério da Cultura (MinC). Ana Eugênia, Joseli do N. Cordeiro, Francisca Tainara, Eugenio da Silva e Marleide Nascimento receberam o prêmio pelo livro de contos Mulheres Quilombolas: Contando os que nos contaram, que compartilha suas vivências e superações.
Ao ser questionado pela reportagem sobre o número de escritores quilombolas publicados no país e sobre as políticas públicas específicas de incentivo à produção literária e apoio a essa população, o Ministério da Cultura (MinC) informou que realizou o “Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres”, que recebeu 2.619 inscrições de escritoras de todo o Brasil, incluindo nove autoras quilombolas. A pasta também destacou que a premiação reflete um esforço para valorizar a literatura feminina e promover a inclusão de grupos historicamente marginalizados, mas não mencionou outras ações específicas.
Apesar de um cenário desafiador, Gessiane costuma dar um conselho fundamental: “Escrevam. Não desistam. Os destinos do nosso país precisam das nossas escrevivências” – o termo foi criado pela escritora Conceição Evaristo, une as palavras ‘escrita’ e ‘vivência’. Ele descreve a literatura de escritores negros e quilombolas, que expressa suas experiências de vida, lutas e memórias.
Gessiane também destaca a importância de iniciativas que busquem promover a literatura quilombola, como editais e parcerias estratégica. “A relação entre autores quilombolas e o mercado editorial precisa ser fortalecida por meio de mais editais”, afirma. “É preciso criar mais espaço para essas narrativas essenciais.”

Lucas Veloso
É jornalista audiovisual, documentarista e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como TV Cultura, UOL, Folha de S.Paulo e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.