Arte: Júlia Beatriz de Freitas

As mulheres quilombolas do Mato Grosso que não fogem à luta para preservar suas culturas

Júlia Beatriz de Freitas, especial para o Nonada Jornalismo

Cuiabá (MT) — Um dia inteiro de canoa era o quanto levava Deroní Mendes e sua família quando era criança para ir da comunidade onde moravam até a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade. A cidade, localizada em Mato Grosso, foi a primeira capital do estado. Mas pouca gente sabe disso, então ela sempre comenta o fato histórico sobre o município de onde vêm.

Hoje adulta, quando Deroní visita a comunidade onde nasceu, dirige cerca de 1h de carro, em geral acompanhada de sua filha de doze anos. É a seca que aumenta, comenta ela sobre a situação. No passado, a viagem dava trabalho. A família ia de cavalo até a comunidade Manga, uma comunidade quilombola com mais estrutura – com mais casas, famílias, porto e canoas por exemplo. Por vezes era onde dormiam antes de continuar a trajetória. De lá, era canoa, remo e força nos braços para empurrar, à força, as águas pantaneiras do rio Guaporé que perpassa a região.

O tempo mudou, mas não pra tudo. Ainda é um dia inteiro que leva para fazer um bolo de arroz com leite de coco assado na folha de bananeira no sítio quilombola onde nascera, a Fazenda 13 de maio, e onde crescera fazendo a receita. E que hoje leva sua filha, em férias ou de visita, para aprender a fazer.“A gente foi criado com tudo vindo da palmeira”, conta ao se referir à criação que teve junto de seus irmãos. A palmeira de babaçu dá teto pela palha e o óleo de coco era o óleo da cozinha, Do mesmo coco se tirava o leite. “Quebra o coco, soca, sai o leite”, lembra com rapidez.

O leite muitas vezes era usado para amassar a farinha de arroz e dá origem a uma espécie de goma de mandioca, responsável pela liga do bolo tradicional. “Se assa de madrugada porque não tem fermento”, comenta Deroní. As formas são feitas de folha de bananeira. “Nos dias de hoje, seria chamado de um ‘bolo vegano’”, ri ao comparar com o produto que encontra com frequência em anúncios na cidade onde hoje mora, na atual capital do estado, Cuiabá.

Sua mãe, “dona” Benedita, orienta os fazeres de uma comida com destreza até hoje: tem a receita na ponta da língua. “Botava fogo e amassava a massa meio durinha e colava na folha e ele crescia, muito fofinho”, fala sobre a receita citada pela filha. 

Seu Germaninho e filhas. Da esquerda para a direita: Daura, Antônia, Seu Germaninho, Deroní, Devânia e Devaina. (Foto: Geovanna Karini, neta do seu Germaninho)

Fala no passado porque mudou. “Agora já tem assadeira e nem assa assim. Agora eles amassa e já coloca o fermento assim porque ele mesmo cresce e põe pra assar. Até hoje quando eu faço o bolo, eu asso sempre na panela com a folha da banana e coloco um caco de brasa em cima da boca da panela”, dá a dica.

Diferente da filha, que nasceu na comunidade, Benedita nascera na cidade. “A primeira coisa que me vem à cabeça é que fui criada sem pai e sem mãe”, diz sobre sua história. Foi criada com os avós, dos quais sentia falta depois, quando longe, no sítio. “Eu ficava muito aborrecida, mas não dava pra ver que eu tava triste”, admite hoje. Sentia saudade, mas era feliz também com o marido que a levara para lá. Nunca brigaram, disse ela. Dançavam na comunidade até o amanhecer. “Tudo na base da brincadeira”, ri ao lembrar. Benedita voltou à cidade.. “Estou há três anos, mas ainda não me acostumei”, comenta. A roça faz falta, assim como o companheiro. 

Os filhos que ficaram no sítio agora ligam e mandam áudio no WhatsApp, onde Benedita escuta o canto do passarinhos ao fundo e sente. “Fico doidinha com a música dos passarinhos e parece que nasci e criei lá. Lá eu fazia horta, plantava repolho, cebola, tudo eu plantava”, diz. Para as cunhadas ela dava, para os vizinhos mais distantes, vendia. “Aqui na cidade é diferente”, comenta.

Vaivém da cidade

Na infância vivida na comunidade, Deroní se sentia excluída dos irmãos, que somavam dez. Era o tom de pele – mais claro do que seus irmãos – o responsável pelo apelido que ganhara ainda cedo: pilada. Sofria “bullying”, classifica hoje. Não obstante, nasceu com um sinal roxo no dedo que, a cada ano que passava, crescia e ninguém sabia o que era. Sua mãe sintonizava a rádio em canal evangélico, colocava um copo d’água em cima e lavava o dedo na esperança de o sinal sumir, mas não sumia. “Eu pensava: esse negócio vai me matar”, diz. Mas a cada ano que completava, não morria.  

Deroní se entretinha com a Rádio Nacional da Amazônia onde ouvira, pela primeira vez, os termos “Presidência da República” e “Congresso Nacional”, além de leis e normas sobre o país onde vivia. Era curiosa, lembra, e também imaginativa. Ouvia telenovelas e acreditava que as histórias se passavam dentro da rádio.

Era a rádio da Amazônia porque a região onde nasceu e cresceu abarca a Amazônia, mas não só: também é Cerrado e Pantanal. Vila Bela Santíssima Trindade reúne e rodeia os três biomas. E é também o município considerado mais negro de Mato Grosso. Dona Benedita casou cedo e foi morar no sítio. “Não tinha muita experiência, aprendi muita coisa. Fui tendo filho e criando eles. Tudo criado na roça no sítio”, relembra.

Deroni e dona Benedita. (Foto: Romildo Alves)

A maior parte dos filhos do casal são mulheres. As pessoas, conta ela, perguntavam se isso não deixava Benedita triste, ao que a senhora respondia: não, foi o que Deus me deu e por um motivo. Quando completavam idade escolar, os irmãos e irmãs de Deroní e as crianças da comunidade iam para Vila Bela. Na vez de Deroní, entretanto, tinha que ajudar a mãe a cuidar da irmã mais nova, recém-nascida. Enquanto aguardava seu tempo chegar, era a “parceira” da sua mãe: aprendeu a pescar, limpar peixe e galinha, costurar. 

Tudo isso que Benedita aprendera com a família de seu esposo – e um tanto que aprendia sozinha, de mérito próprio. Uma vez, lembra Benedita, seu marido ganhou duas mudas de cacau do vizinho. Um morreu e o outro deu. “Colhi muito cacau e dava pros vizinhos”, comenta a senhora. Ninguém a ensinou dessa vez. 

Foi na cara e coragem, classifica. “Botei no sol pra torrar, soquei e ele soltou óleo em tom de guaraná aí ralando não achei bom. Fiz de outro jeito: torrei, soquei e fiz ele pó. “Esse foi o primeiro chocolate que as crianças conheceram primeiro”, lembra risonha. Fez bolo de chocolate. De vez em quando algum vizinho, mesmo na cidade, ainda pede pra comprar. Pede ajuda das filhas para precificar.

Benedita tinha o costume de brincar dizendo que Deroní se casaria cedo também, prendada que era. Ia para os pântanos perto da comunidade e “tirar açaí”, lembra. Aprendeu sobre os lugares, que bichos comer, quais os passarinhos e frutas comestíveis. Sua irmã Daura, com talento nato do ensino, a alfabetizava quando voltava para casa. “Se não existisse a profissão de professor, ela inventaria”, diz Deroní, que fora para a cidade estudar com 11 anos. Depois, na cidade, a vida era miserável, classifica. Substituía-se o óleo de babaçu, tão comum na comunidade, pelo de soja, que julgavam fedorento. “A mãe não gostava de levar a gente pra cidade porque a gente adoecia quando chegava lá”, comenta.

Dona Benedita e as netas mais novas, Sofia e Valentina, na colheita de cacau. (Foto: Deroni Mendes)

Mais uma vez, Benedita lembra bem o processo de fazer óleo de coco de babaçu. Não esquece receita, prova a cada vez que abre a boca pra falar de comida. “Sentava, quebrava, ia com pilão, soltava”, nomeia os verbos do processo. “E levava na peneira de taquara que meu marido fazia. Depois ia com ele no forno, torrava, e ia no pilão novamente até ficar bem molinho, suspendia ele e já tinha o óleo”, diz.

Colocava o óleo na água da panela e deixava. “Afogava o óleo, ele meio que secava e nós colocava a água e o óleo já subia pra cima, aí já vinha com uma colher e já tirava pra colocar na comida”, comenta. Hoje em dia um filho ainda faz, mas só sob encomenda. “Mudou muito”, repete sobre a vida de antes e de depois. Foi nessa cidade, em uma casa dividida com as irmãs mais velhas, que Deroní descobriu duas coisas: que seu nome não era registrado “Deronir”, como sua mãe a chamava, e que meninas que pareciam com ela sofriam mais que meninas ainda mais claras que ela. Longe dos seus irmãos, via que era negra.

Vila Bela: ex capital do estado e símbolo da retomada

Registros históricos mostram que eram duas as principais rotas das chegadas de pessoas escravizadas no estado de Mato Grosso: do Rio de Janeiro e de Belém, essa a mais comum e em um trajeto que podia demorar até um ano. Assim Portugal teve pressa em povoar a cidade de Vila Bela, que faz fronteira com a Bolívia, pelo medo de perder o território para Espanha. Criou a Capitania de Mato Grosso e lá estabeleceu a capital em 1752, quando o país vivia intensamente o ciclo de ouro, minério encontrado em volume nas águas do Guaporé e afluentes. 

Preparo de Massa de Arroz (Foto: Deroni Mendes)

Era o garimpo que trouxera “senhores” e escravizados de diferentes lugares do país. Uns foram, outros ficaram. O título “honroso” ao município não durou muito. Quando cerca de 70 anos depois, em 1835, essa capital foi sido transferida para Cuiabá, o controle político e social da cidade restou para os negros libertos na região.

A religiosidade católica absorvida por séculos pelas populações era praticada, a partir de então, por meio do festejo de duração de dias cheios de comidas, missas e danças que posteriormente transformaram Vila Bela num destino turístico e cultural reconhecido nacionalmente. Ganzá, bumbo e cavaquinho são tocados e performados pelos músicos-soldados do “Congo”, que usam corpo e voz em dias da festa sagrada em homenagem aos santos. São quatro celebrações: a do Divino, São Benedito, Mãe de Deus e Santíssima Trindade. 

Dois tipos de dança são protagonistas no festejo: a dança do Chorado, que traz mulheres com “canjijin”, uma bebida típica segurada na cabeça em performance com alusão à relação de mulheres negras na época da escravização. E a dança do Congo, com representação de teatro e dança do confronto entre reinos de Congo e Bamba, repleto dos “soldados” que começam a dança às 5h da manhã e atravessam o dia quente de sol pelas ruas.

As apresentações pelas ruas só são intercaladas com as tradicionais refeições, um oferecimento da rainha do Congo à comunidade. Dona Benedita lembra bem das festas ainda jovem, antes de ir pra comunidade. “Minha mãe se levantava cedo, fazia a comida e já deixava pra nós. Nós ia na missa, e de lá nós vinha assistir a dança do Congo, nós voltava pra casa, ficava em casa”, comenta. 

Seu Germaninho vestido de soldado do congo. (Foto: Mario Friedlander)

Ela, jovem, não ia pro festeiro, mas aproveitava a comida trazida pela mãe-avó: feijoada com toucinho e arroz com frango, elenca algumas. Salada, naquele tempo, quase não existia.  Mas os quitutes mais tradicionais dos festejos eram o biscoito e a bolacha, coisas diferentes. Biscoito é feito com margarina, ovo, açúcar e sem fermento. Já a bolacha vai polvilho, trigo e tempero. “Se quiser colocar raspa de limão fica gostosa e o trigo é pra ficar crocante”, ensina a senhora.

Um muito conhecido “soldado” do Congo era “seu” Germaninho “Garganta de Ouro”, seu marido. Foi com quem se casou cedo e por quem foi levada pra comunidade no mato. Era o pai de Deroní, apelidado como tal pela voz afinada e usada nas cantorias e dançarias performadas anualmente na festa. A festa, então, era uma das únicas ocasiões em que Benedita ia para a cidade. “Mamãe levava só os menorzinhos”, lembra Deroní, nona filha dos onze tidos e criados por Benedita e de Germaninho.

“As mulheres no sítio são bem isoladas. Os meninos vão na festa. Eu só fui na festa com meus pais que eram festeiro na festa de Nossa Senhora da Boa Esperança no Casalvasco ou fui quando eu já tinha ido pra cidade. As mulheres ficavam mais em casa pra ajudar na roça”, lembra Deroní.

À luz de Tereza, às margens do mesmo rio

“Amor, amor, amor // Sou a viola de cocho dolente // Vim da Pérsia, no Oriente Para // chegar ao Pantanal // Pela Mongólia eu passei Atravessei a Europa Medieval Nos meus acordes vou contar // A saga de Tereza de Benguela//  Uma rainha africana Escravizada em Vila Bela // O Ciclo do Ouro iniciava // No cativeiro sofrimento e agonia // A rebeldia, acendeu a chama da liberdade // No quilombo o sonho de felicidade Ilê ayê, ara ayê, ilú ayê”, cantavam e desfilavam os sambistas do Viradouro em 1994, uma das poucas menções à quilombola Tereza de Quaritaré na cultura popular midiatizada.

Às margens das águas do Guaporé, tempos depois remadas pela família de Deroní, vivia Tereza de Benguela, há séculos. Sabe-se menos dela hoje do que de Zumbi dos Palmares, nacionalmente conhecido e estudado, mas a mulher negra era chamada ainda de rainha do Quilombo Quariteré, tupi-guarani para a palavra “piolho” e denominação que indica a presença indígena na região.

Em documento histórico de Vila Bela datado de 1770, está disposto de que a rainha governava “a modo de Parlamento” com deputados chamados à casa semanalmente para decisões do grupo, que chegava a 100 pessoas. Herdara o título após a morte de seu marido, José Piolho.

Sofia e Vadi, seu tio, tentando pegar peixe com arco e flecha em um dos afluentes do rio Guaporé, o rio Alegre. (Foto: Deroní Mendes)

Sob sua liderança, o quilombo resistiu por cerca de duas décadas às tentativas de repressão pelas autoridades coloniais. Quando eram atacados, voltavam. À época, a fartura do Quilombo do Quariterê contrastava com a escassez que reinava na época em Vila Bela e nas minas de Mato Grosso. “Tal abundância relacionava-se à forma de apropriação da terra, disponibilidade de mão de obra e, sobretudo, trabalho cooperativo e solidariedade social”, discorre o historiador Edir Pina.

Nas roças do quilombo, tinha tudo pra alimentação e ainda eram cultivados fumo e algodão, este usado como matéria-prima para a tecelagem. Os tecidos eram uma importante moeda de troca por armas. “Através de relações mantidas com a sociedade ‘branca’, obtinham ferro, além de sal e outros artigos”, afirmou o especialista à reportagem do veículo Aventuras na História.

Os portugueses não desistiram de conquistar o quilombo. Em 27 de junho de 1770, um ataque deixou nove mortos. Além deles, Tereza e mais de 70 negros e cerca de 30 indígenas foram capturados e levados para Vila Bela, onde foram marcados a ferro com a letra “F”, que significava “fujão”. Tereza, desgostosa, morreu de “pasmo” após ser humilhada publicamente. Seu corpo foi mutilado e exposto como “exemplo” para os outros.

No seio de Mato Grosso, a festança começava // Com o parlamento, a rainha negra governava //Índios, caboclos e mestiços, numa civilização //O sangue latino vem na miscigenação // invasão gananciosa, um ideal aniquilava //A rainha enlouqueceu, foi sacrificada //Quando a maldição, a opressão exterminou // No infinito uma estrela cintilou

A luta de fora da comunidade

Localizada dentro de um complexo de comunidades quilombolas da região, a comunidade de Deroní e Benedita fica na mesma região de Tereza: no Alto Guaporé. “Em junho tava tudo cheio”, comenta sobre a paisagem repleta de lagos e que hoje seca mais do que antes. A Fazenda 13 de maio fica localizada no complexo de comunidades chamado Manga e Casalvasco, nome das duas maiores comunidades da área. Casalvasco era como uma cidade, lembra Deroni. 

Dona Benedita e o filho Vadi. (Foto: Romildo Alves)

A bacia do Alto Guaporé está localizada  justamente em uma zona de transição entre o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia.  Mudança climática não era uma preocupação à época de Tereza, mas agora é. E a luta pra ficar na terra – e por viver bem – continua. Enquanto isso, o agronegócio avança e o tempo das coisas muda.

Celeiro da agropecuária no país, Mato Grosso liderou o ranking de desmatamento na Amazônia Legal em janeiro de 2025, respondendo por 45% do total de desmatamento na região. Os dados são do Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) do Imazon. “Não existem políticas públicas para viabilizar uma boa vida lá no sítio. Então precisam continuar sobrevivendo na cidade porque não conseguem produzir”, analisa. Com o avanço do agronegócio no estado, impulsionador do desmatamento, muitas famílias vendem seus pedaços de terra e vão para a cidade. 

“Chamamos de complexo porque é um conjunto de comunidades. Mas agora com algumas pessoas morando, outras não. Na memória das pessoas ainda tem muito”, diz Deroní. “Aqui era “Fumacinha”, o “Coqueiral”, o “Alegre”, falam os outros. Tinham famílias que moravam antigamente por várias das comunidades, mas que agora estão vazias”, comenta com pesar. 

Luta é algo que faz parte da vida de Deroní, a primeira da sua família a ingressar em um curso superior. Chegou a ter três empregos: de segunda a sábado na casa de um pessoal, dono de um hotel. No fim de semana, trabalhava na bilheteria de uma danceteria e domingo o dia inteiro trabalhava num restaurante que eles tinham. “Tudo isso para estudar”, conta. “Eu tinha certeza que eu precisava sair de lá pra estudar e saí de lá com a promessa de voltar”, comenta.

Formada em Geografia, Deroni fez sua carreira no trabalho em prol dos povos indígenas e tradicionais do estado de Mato Grosso. Viu que deveria ficar de fora para ajudar os de dentro da sua comunidade, os que ficam no sítio.  É coordenadora, há anos, na organização socioambiental Instituto Centro de Vida (ICV), instituição referência no combate e monitoramento do desmatamento no estado que abriga boa parte das maiores plantações brasileiras de soja, a mesma que depois vira óleo. “Foi quando percebi que ficar longe era uma forma de proteger meu território”, comenta.

Perguntada de onde vinha, por muitos anos dizia que era de uma comunidade tradicional. “Quilombola era algo pejorativo, meu pai não falava isso”, comenta. “E se meu pai não era quilombola, eu também não era”, comenta. “No dicionário quilombo era lugar de negros fugidos, e o fugir é que você deixou pessoas pra trás.” Seu pai, Germaninho, foi acometido pelo Alzheimer e Parkison há alguns anos. Faleceu no ano passado, tempo depois de ser homenageado por uma trupe de soldados do Congo em seu próprio sítio.  Desde as doenças, Deroní e as irmãs passaram a conversar mais com a mãe, Benedita. “E minha mãe se reconhece como quilombola. Ninguém nunca tinha perguntado pra ela”, comenta.

Vila Bela da Santíssima Trindade possui cinco áreas quilombolas reconhecidas oficialmente, mas nenhuma delas teve o território formalmente titulado ou homologado.  “E diferentemente do processo indígena – que geralmente parte das próprias comunidades –, o reconhecimento quilombola nessas áreas foi feito de cima pra baixo, por pesquisadores”, comenta Deroní. Para a especialista, parte disso é porque os benefícios da homologação da terra quilombola ainda são poucos.

Recentemente Deroní foi eleita coordenadora do Observatório do Clima, rede que reúne as principais organizações socioambientais brasileiras na luta contra a crise climática e na defesa das populações tradicionais, indígenas e quilombolas – as principais protetoras dos biomas brasileiros. Foi um marco histórico para a rede.  Paralelamente, também posta um pouco das memórias e registros do sítio da família no Instagram @fazenda13demaio.

Sobre a eleição ao cargo, comentou à Folha de São Paulo: “Eu recebi a notícia com orgulho. Nunca antes uma quilombola e uma indígena estiveram nesse lugar. Depois disso, muitas outras virão, com certeza”, diz. Chegou lá, ao lado de muita gente. “Antes era construir muros para ninguém ultrapassar, e para ninguém me ferir e nem ferir os meus”, comenta. Sua filha, Sofia, a fez mudar de estratégia. “Aí parei de construir muro e pensei que seria melhor construir pontes de diálogo. Racismo é estrutural, mas nem sempre intencional”, diz.

Benedita, sua mãe, tem orgulho e também senso de proteção com a filha. “Fico feliz e honrada de vê-la assim e fico triste porque ela viaja e eu fico triste, fico rezando pra ela estar bem”, comenta. “Quando ela chega, me manda mensagem, aí fico aliviada”, diz. Mesmo com a saudade da roça e da filha, Benedita encontra companhia. Também começou a fazer tapetes e vender, com apoio das filhas. “Fui abençoada com meus filhos e filhas porque eles me cuidam, fazem de tudo”, comenta. No dia anterior à entrevista, foi fazer biscoito e bolacha na casa da vizinha.

Júlia Beatriz

Júlia Beatriz é jornalista socioambiental. Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), trabalha com comunicação socioambiental em organizações não governamentais com foco na Amazônia desde 2019. É autora dos livro-reportagens “Doce Sobrevida: a apicultura como alternativa no assentamento Taquaral” e ‘Norte de Mato Grosso, sul da Amazônia: sonhos e resistências da agricultura familiar no arco do desmatamento’. Busca, em seu trabalho, fortalecer palavras e histórias pela desconstrução da falsa dicotomia entre humanidade e natureza, tarefa urgente em tempos de crise climática.

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