Pablo Villaça: “O Brasil tem um dos melhores cinemas do mundo, mas precisa melhorar a distribuição”

(Foto: Felipe Adati)
(Foto: Felipe Adati)

Texto Raphael Carrozzo

Sexta-feira, 27 de março, à tarde. Chego a um dos mais lugares mais agradáveis de Porto Alegre: o café que se encontra no último andar da Casa de Cultura Mário Quintana, a espera do entrevistado. Pablo Villaça já estava lá, conversando com uma aluna, a irmã e mãe dela – a mãe, assídua leitora dos textos dele, pediu a filha que o apresentasse. Logo depois, ele se junta a mim para iniciarmos a entrevista, desculpando-se porque terá que assinar, durante a conversa, os certificados do curso sobre O Poderoso Chefão que realizou na capital gaúcha.

Pablo respondeu questões envolvendo sua carreira como crítico, cinema, jornalismo e política. E é impressionante ver como seus olhos brilham ao falar das primeiras lembranças que tem do cinema, sobre seu mentor Roger Ebert, o neurologista Oliver Sacks, o amigo Rubens Ewald Filho, ou quando fala que o Brasil possui um dos melhores cinemas na atualidade. Porém, seu semblante muda completamente quando o assunto passa a ser o atual cenário político do país: o rosto fica mais sério, as palavras mais ríspidas. Abaixo, segue a entrevista na íntegra:

Nonada – Como surgiu sua paixão pelo cinema?

Eu devo minha paixão ao cinema à minha avó. Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos, e ela foi morar com a gente (minha mãe, eu e minha irmã) para ajudar minha mãe. Minha avó gostava muito de cinema, e o que era legal é que ela fazia o seguinte: quando íamos ao cinema, o dia era todo especial. O café da manhã era especial, o almoço era especial. Depois, íamos às lojas americanas pra comer um misto quente e tomar um sorvete. E não sei se é por isso ou não, então desde criança eu comecei a associar ir ao cinema com sensações gostosas. Era prazeroso ir ao cinema (risada). E assistia a muitos filmes, sessão da tarde, etc. Mas eu atribuo muito a minha avó.

Nonada – E eu vi em algumas entrevistas que o primeiro filme que você tem lembrança de ter visto no cinema foi dos Trapalhões…

Minha memória mais antiga, no cinema, é Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978), eu devia ter quatro, cinco anos. Depois disso, o outro filme que eu lembro de ter visto no cinema foi ET  (1982). Eu tinha então oito anos, e lembro de ter ido ver uma três vezes. Mas a minha memória mais antiga é essa, de ver Os Trapalhões na Guerra dos Planetas. E é um filme que eu fui ver recentemente e é muito ruim. O que não é comum, porque os filmes dos Trapalhões, principalmente daquela época, eram muito bons. Os Saltimbancos, por sinal, é um dos maiores filmes da história do cinema nacional. Aliás, de certa maneira, eles foram importantes no meu gosto por cinema, porque como criança eu assistia eles todo domingo, gostava deles e, quando lançavam um filme, tinha a experiência de ir ao cinema…por isso é importante filme infantil,  ajuda a formar público. Os Trapalhões foram muito importante na formação de público de muita gente daquela geração. É uma falta que eu sinto. O Brasil, hoje em dia, por exemplo, não tem muita tradição de se produzir muito filme infantil e isso é perigoso, de certa maneira, porque, de onde vem a formação de público? E, mais, um público habituado a ver filme brasileiro? Pra mim, nunca foi estranho ver filme brasileiro, porque cresci vendo Os Trapalhões, entre outras coisas.

Nonada – O que é engraçado, porque eu também cresci vendo filmes e indo ao cinema, meu pai é apaixonado por Doris Day, Jerry Lewis, Mel Brooks, e todos esses clássicos. E Jerry Lewis e Mel Brooks, por exemplo, são comédias para todo público. E aqui no Brasil não vejo mais filmes desse tipo, como Os Trapalhões. As comédias que chegam aos cinemas são dessa nova geração de comediantes, estilo Porta dos Fundos, que não são pro público infantil, mas sim adolescente.

Sim, mas nisso eu não vejo problema. O que você tem que lembrar é que Jerry Lewis fez sucesso no final da década de 1950, virou um astro, o maior do mundo na década de 1960, mas é uma característica do próprio Jerry Lewis, de fazer o menino preso no corpo de um adulto. Na época, tinha outras comédias voltadas para o público adulto. O problema não é ter comédia pra adulto. O problema é só ter comédia voltada pra adulto. O que mais me incomoda é que a maior parte delas são ruins. Você pega as “globochanchadas”, de modo geral, essas comédias da Globo filmes, Leandro Hassum…eu vi outro dia alguém que escreveu que ele criou o gênero “gordo gritando”. É basicamente isso. Isso é ruim até pra formação de público. Quando o público adulto vai ver esse tipo de filme no cinema, ele não tem nenhum estímulo pra buscar um Beto Brant, Tatá Amaral, Kleber Mendonça, Jorge Furtado, Gustavo Spolidoro. Por quê? Porque é diferente da experiência deles. E esses filmes são os mais populares, já que eles têm o aparato todo da Globo filmando. Então, o problema é mais grave que isso. Não é ser só pra adulto, mas é ser só pra adulto e ser rasteiro.

Nonada – E você se lembra de algum filme que lhe fez ver o cinema de forma diferente, ou algum acontecimento?

Não, não me lembro de nenhum filme particular que tenha servido de gatilho pra isso. Na verdade, o que serviu como gatilho foi quando eu descobri a crítica cinematográfica. Quando eu tinha uns 14, 15 anos, eu ganhei um cd que tinha críticas do Roger Ebert e da Pauline Kael, então eu criei o hábito: sempre que eu via um filme, eu ia ler a crítica. A crítica me fez perceber que tinha um lado do cinema que eu não percebia. Então, isso pra mim foi o gatilho: descobrir que havia pessoas que pensavam cinema, que analisavam cinema e me mostravam que existia um pensamento racional por trás daquilo, Isso me fez mudar a forma de ver cinema.

Cena do filme Tempo de Despertar (Foto: divulgação)
Cena do filme Tempo de Despertar (Foto: divulgação)

Nonada – Você escreveu no Facebook que cursou medicina, e que um dos responsáveis por você gostar de escrever foi o Oliver Sacks.

Não, não. Eu sempre gostei de escrever. Quando eu tinha sete anos, eu escrevi um livro. Pelo menos eu achava que era um livro. (risos). Minha mãe comprou um caderno de 30 páginas e eu escrevi uma história. Esse caso específico é de um neurologista chamado Oliver Sacks. Eu vi um filme chamado Tempo de Despertar, que é baseado em um relado do Sacks, e quando eu vi esse filme eu tomei duas decisões: primeiro, que eu queria fazer medicina. É um profissão linda, dedicada a melhorar a vida das pessoas. E, quando eu encontro um médico que tem essa filosofia, é a coisa mais linda do mundo. O problema é que hoje temos uma classe médica mais preocupada em interesse corporativo do que no paciente…  a segunda coisa foi que eu comecei a procurar livros do Sacks e tudo o que ele tinha escrito. E o que eu escrevi nesse texto é que, ao invés de eu ter ido fazer medicina por causa do Sacks, eu deveria ter pensado em escrever profissionalmente, que eu já gosto de fazer e como ele escreve tão bem, modifica a vida das pessoas escrevendo também. Mas não foi por causa dele. Ele é um cara sensacional. Ele une as melhores coisas, é um homem fantástico, um escritor soberbo e que tem essa coisa de encarar o paciente como ser humano e contar suas histórias de uma maneira muito humana e complexa pro leitor.

Nonada – E a crítica surge como hobby? Seu primeiro texto foi Instinto Selvagem, você já se considerou um crítico a partir daí? Qual foi o momento que você se autoafirmou como crítico?

(Pausa, pensativo) Boa pergunta, não sei. Acho que comecei a me considerar um crítico a partir do momento em que comecei a frequentar as cabines de imprensa, que são as sessões para críticos. E, em Belo Horizonte, não tinha cabine quando eu comecei a escrever em 1994. Mas eu escrevia de uma forma muito simples, poucos parágrafos, para os Bulletin Board System, que era a pré-internet de hoje. Quando a internet chegou, eu criei o Cinema em Cena, que era mais pra arquivar tudo o que eu já tinha escrito e publicar coisas novas. Mas, como você disse, era hobby, eu fazia medicina na época. Então, quando surgiram as cabines em Belo Horizonte, eu não podia frequentar porque eu escrevia pra internet e havia um preconceito muito grande na época com essa mídia. Então, eu mostrei a quantidade de acessos do site e, depois de insistir muito, eles permitiram que eu frequentasse as cabines. Acho que foi a partir daí, quando comecei a frequentar essas sessões destinadas aos críticos. Isso foi por volta de 1998.

Nonada – E falando em Cinema em Cena, como está a situação do site atualmente, sendo financiado pelos próprios leitores?

Olha, por enquanto estou esperançoso. Nós tivemos um fluxo de assinantes muito grande na primeira leva, quando fizemos o anúncio. Estamos com mais de 900 assinantes, desses, a maioria absoluta assinou anuidade. O que foi bom porque houve um fluxo de caixa imediato e isso permite que eu pagasse os colunistas e a redação, que eu acho fundamental. Muita gente escreve de graça na internet hoje em dia, em troca de visibilidade e eu acho isso terrível, porque eu não escrevo de graça. É meu ganha pão. Mesmo que digam que meu texto vai sair no maior portal do Brasil. Não faço. Trabalhei a minha vida inteira refinando a minha escrita, meu estilo, não é para oferecer de graça. Então, eu fico muito feliz de poder pagar os colunistas. Ainda nem pago o ideal, eles merecem até mais. Pela primeira vez na minha vida profissional, vou conseguir viajar pra festivais sem tirar do meu bolso. Sempre que fazia esse tipo de viagem, eu pagava tudo: passagem, hotel, etc. Isso é um problema de ser independente.

A cultura sempre se fode primeiro. É uma visão de que ela é dispensável. O jornal está sem espaço? Corta cultura. O Estado está sem dinheiro? Corta cultura, corta edital.

Nonada – Você tem dois curtas-metragens no currículo. Você nunca sentiu vontade de seguir carreira como roteirista, diretor ou algo relacionado à produção cinematográfica?

Não. A crítica cinematográfica – e isso não é um pensamento só meu, o Truffaut foi o primeiro a dizer isso – é uma forma de arte que responde a outra arte. A crítica é uma resposta artística a uma obra de arte, que é o filme em si. Quando você lê meus textos, eu tenho um cuidado com o estilo, com a maneira como é escrito. Não é um texto jornalístico, por exemplo, propriamente técnico, é um texto narrativo. É o meu meio de expressão, é o que eu faço. E até hoje, aconteceu em dois momentos de eu ter ideia pra roteiros. Eu escrevi e tive vontade de dirigir. Não é uma urgência minha fazer isso. Se eu nunca mais dirigir nada, não é o que vai me fazer falta. Mesmo. Gostei das duas experiências. A única coisa que eu sei é que eu nunca vou parar de escrever. Eu não posso, não consigo ficar sem escrever.

Nonada – Os jornais, se compararmos há 30, 40 anos atrás, tinham mais espaço pra as críticas. Você acha que o crítico perdeu credibilidade do profissional ou as pessoas não têm visto com bons olhos?

Acho que é uma combinação das duas coisas. No modo geral, a crítica é mal interpretada e parte disso se deve, inclusive, a alguns críticos. Isso aconteceu em muitos jornais impressos. Se selecionava alguém que gostava de cinema, mas essa pessoa não entendia nada de linguagem, teoria cinematográfica. Então, até pra ocultar a própria insegurança e falta de conteúdo, a política do cara era: vou meter pau em tudo, porque parece que sou exigente. Então se criou essa imagem, em certo grau, de que o crítico é uma pessoa chata, enjoada, esnobe…

Nonada – Como é o caso do Birdman, no qual temos aquela profissional que diz, “Se eu disse que a peça é boa, será um sucesso, se eu disser o contrário, ela será um fracasso…

Ali no Birdman é um pouco diferente. Porque a crítica do filme é obviamente uma caricatura. Eu, por exemplo, em 20 anos de profissão, já conheci crítico de todos os tipos, inclusive do tipo inseguro. Mas eu te garanto, eu nunca conheci um profissional que dissesse antes de ver uma obra que vai “meter o pau”, como a personagem do filme. Em Birdman, aquilo é uma visão do personagem, não com objetivo de interpretar realisticamente. É uma crítica a crítica, o que, para mim, está tudo bem. Eu não vou meter pau em um filme só porque ele está dizendo uma coisa que eu não quero ouvir. Tem um filme do Beto Brant, chamado Crime Delicado (2006), e a tese do filme, basicamente, é: a crítica assassina a arte. É um filme de duas horas apenas pra dizer isso. Eu discordo radicalmente (ênfase) dessa teoria. Eu acho que a boa crítica enriquece a arte, inclusive, na evolução dela. Apesar disso, eu dei cinco estrelas e adorei o filme. Eu discordo do que ele disse, mas a forma como ele diz é linda. Então, acho que é uma junção desses críticos inexperientes, com a questão do corte. Quando se corta algo no impresso ou em qualquer lugar, a primeira coisa é a cultura. Sempre é assim. A cultura sempre se fode primeiro. É uma visão de que ela é dispensável. Cultura é a alma de um país. Um país que não tem cultura e não preserva a sua cultura, é um país fadado à decadência, moral inclusive. Então, o jornal está sem espaço? Corta cultura. O Estado está sem dinheiro? Corta cultura, corta edital. É isso.

Quanto mais filme você produz, mais merda você vai produzir. E boa parte dessa merda é produzida pela Globo Filmes.

Nonada – No início do ano de 2015, você foi pra Suécia cobrir um festival e só fez elogios à gestão deles. Na sua opinião, o que falta aqui no Brasil na gestão cultural? O que precisa mudar?

Não acho que a gente faz errado. Acho que precisamos melhorar. A Ancine, por exemplo, tem desempenhado um papel muito positivo na produção e divulgação do cinema brasileiro, inclusive no incentivo a mais produções diversificadas de longas-metragens no país. A questão é que temos um problema grave de distribuição. Boa parte dos filmes brasileiros não consegue chegar aos cinemas. Eles ficam no circuito de festival e olhe lá. Então, isso é um problema. E me incomoda muito que temos editais de cultura, baseados em leis de incentivo fiscal, e que, por exemplo, empresas como a Globo usem esses recursos. Não faz sentido uma empresa do tamanho da Globo usar lei de incentivo fiscal, porque, basicamente, ela tá doando o dinheiro do imposto dela pra ela mesmo. Então, tem que refinar o sistema.

Mas eu acho que já melhoramos muito. A gente, praticamente, não produziu filme nenhum entre 1989 e 1994. Neste ano, quando surgem as leis de incentivo fiscal e vem o período da retomada do cinema brasileiro, é que começamos a engatinhar de novo. E hoje, o cinema brasileiro, eu digo sem hesitação e sem medo de soar ufanista, é um dos cinemas mais ricos do mundo. O Brasil, eu digo, é um país de dimensões continentais e nós produzimos cinemas em todos os cantos dessa dimensão: Pernambuco, MG, RJ, SP, RS, Amazonas. Enquanto que, nos Estados Unidos, apesar de também ter dimensões continentais, produz, basicamente, na costa oeste e leste – Los Angeles e Nova York, respectivamente. São duas sensibilidades retratadas pelo cinema. Já no Brasil, no mesmo ano em que produzimos um filme como O Homem que Copiava, veio Amarelo Manga.

Olha 2014: Cássia, Sangue Azul, O Lobo Atrás da Porta, Tatuagem, Praia do Futuro, A Vida Privada dos Hipopótamos, Ausência, Obra, História da Eternidade. Se você mostrar pra alguém de fora, ele vai perguntar: esses filmes são do mesmo país? Nenhum país tem a diversidade que nós temos. Produzimos muita merda? Sim. Quanto mais filme você produz, mais merda você vai produzir. E boa parte dessa merda é produzida pela Globo Filmes. Mas produzimos muita coisa fantástica. O cinema brasileiro é conhecido no mundo inteiro. Já ganhamos festival de Cannes, Veneza, Berlim. O fato de não termos ganhado o Oscar não significa absolutamente nada. É um prêmio de indústria. Não basta apenas fazer um filme bom. Tem que ser bom, selecionar um filme que tenha a sensibilidade deles e gastar muito dinheiro. Pra ganhar, tem que ser no mínimo, R$ 10 milhões. E achar uma produtora que tenha perfil estrategista na premiação e gaste também. Eu não acho certo o Brasil gastar essa quantia pra ganhar o Oscar. Oscar não é parâmetro. O Brasil já ganhou todos os festivais que prezam pela qualidade. Só falta a nossa população conhecer mais. Então, o problema está na distribuição, e isso nós temos que melhorar muito. Mesmo que nem seja pelo cinema, que seja direto em vídeo ou por um Netflix da vida ou canal a cabo. Tem algum sistema que não está funcionando e tem que melhorar.

Nonada – Falando em Festivais, o que você acha do nosso circuito? Temos Brasília, Salvador, Gramado, Rio, São Paulo, que são grandes festivais e com propostas muito diferentes uma da outra.

Gramado é um festival fascinante. A curadoria agora está sendo feita pelo Rubens Ewald Filho, ele está sendo fantástico. A de 2014 foi excepcional. Aliás, o Rubens é um cara genial, sempre falo isso. Tenho uma admiração absurda por ele. E como estávamos falando de crítica antes, não posso deixar de citar, a crítica brasileira deve muito a ele. O Rubens ajudou a humanizar a figura do crítico. Sem falar que ele é um tremendo conhecedor de história do cinema, tem uma memória admirável. E nesse trabalho em Gramado, eu diria até que ele é mais importante para o cinema brasileiro como curador do que como crítico, não que ele não seja importante como crítico, mas porque o trabalho dele na curadoria é mais importante. Brasília não é um festival que eu tenho muita familiaridade, por tudo que eu leio e acompanho profissionalmente, é um festival que tem importância na divulgação de novos filmes brasileiros, como tinha Paulínia, que acabou.

A Mostra de SP e o Festival do RJ são os mais relevantes, porque oferecem um painel internacional de filmes e têm perfis diferentes. SP tem uma abordagem mais de vanguarda, filme arte – odeio essa expressão, para mim todos os filmes são arte – ou o que as pessoas consideram como filme de arte. Então, são festivais diferentes, mas importantes, principalmente para o cinéfilo brasileiro que não tem acesso a esses filmes. É um mês em que você fica mergulhado no que se está fazendo de mais interessante no mundo inteiro. O CinePe, de Pernambuco, também é fundamental, que é o Festival de Recife. A gente tem sim muito festival bacana, muito festival de curta: Festival Internacional de Curta de Belo Horizonte, Festival Internacional do Rio de Curta, Anima Mundi, É Tudo Verdade (festival internacional voltado para documentário). O Brasil é um país que valoriza o cinema no circuito alternativo. Já no circuito comercial, o cinema brasileiro é um fracasso. Não tem espaço para o cinema brasileiro. No alternativo, somos um sucesso.

Cena do filme Crime Delicado (Foto: divulgação)
Cena do filme Crime Delicado (Foto: divulgação)

Nonada – Aproveitando que você falou da nossa diversidade, eu li um texto sobre o “Cinema Pernambucano” e alguns diretores discordam desse termo, outros não veem problema. Eu mesmo vi uma mostra, aqui em Porto Alegre, de seis curtas metragens gaúchos da nova geração. Você acha que essa nomenclatura por Estado ou região é positiva ou negativa? Ela pode prender a visão do espectador?

Não é só do espectador, mas pode prejudicar também o cineasta. Eu entendo a reticência e a ressalva desses cineastas. Porque, a partir do momento que você diz que existe um cinema pernambucano, você presume que um filme pernambucano tem que ter determinadas características. Isso limita o realizador. Ao mesmo tempo, você pode ver o lado positivo disso, mostrar que nós temos um pólo de cinema, como o Nordeste, que é uma região riquíssima. Não só de cinema, mas culturalmente. Mas eu entendo a ressalva desses cineastas. Eles devem se sentir ofendidos, é o mesmo caso de que quem encara cinema brasileiro como um gênero. Você tem suspense, drama, policial, romance, cinema brasileiro. Cinema Brasileiro é uma filmografia de uma nação e temos todos os gêneros. É um microcosmo ainda menor. É algo limitante. Não é algo que me incomode, mas também não cabe a mim criticar. Eu aprecio como espectador, pro realizador deve ser muito mais difícil.

Nonada – Mudando um pouco de assunto, agora indo para o campo político, você, nos últimos anos, graças ao Twitter e ao Facebook, se tornou um símbolo esquerdista. Da onde veio essa sua veia política? Você acha que todos deveriam falar sobre política? Muitos afirmam que esse assunto é igual futebol e religião, não se discute…

Acho que foi o Platão que disse que se você diz que não gosta de falar sobre política, quem vai governar são as pessoas que gostam. Isso é um problema. Só o político profissional vai dominar. Se tivéssemos mais pessoas que discutem política, sem querer fazer carreira na área, talvez a gente estivesse melhor. E corrigindo o que você disse, eu sempre fui ligado à política. Fundei o grêmio do meu colégio no ensino médio, fiz questão, mesmo com a resistência da direção. Quase fui expulso por isso. Escrevi o estatuto, e quando o grêmio foi fundado, realizamos uma eleição, eu concorri e ganhei. Fiquei dois anos no cargo. Na faculdade, fui presidente do Diretório Acadêmico por dois anos. Fui líder do Fora Collor, do movimento secundarista em BH, eu era líder de todo o movimento de estudantes secundaristas na época. Isso vem da minha família, que é de esquerda, sempre esteve envolvida com política, não profissionalmente. Minha mãe e tios brigaram contra ditadura. Mesmo. Foram de célula revolucionária, combateram de verdade a ditadura. Minha tia manca (ênfase), até hoje, ficou meses no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) sendo barbaramente torturada. Ela está naquele livro Tortura nunca mais. Minha mãe e tios perderam amigos, desapareceram ou foram executados. Então, eu cresci ouvindo essas histórias, no meio em que se discutia política o tempo inteiro. Sempre foi fundamental na minha vida e eu tenho prazer de falar sobre política. Acho que todos deveriam falar sobre, mesmo não gostando, porque determina a vida de todo mundo. E eu sempre escrevi sobre política. Só o olhar o início do meu blog que você acha textos políticos, ou críticas minhas de 1998 com teor político. O que aconteceu foi que, com essa polarização, surgiu uma direita violenta, ou ressurgiu uma direita, com claros tons fascistas, mais preocupada em minar os direitos de expressão e direitos sociais, não só da esquerda mas também da população mais humilde. Eu senti que, como eu tinha uma posição de destaque, uma quantidade grande de leitores, eu tinha a obrigação de me manifestar.

Nonada – Então, eu posso afirmar que o fato de você ter se tornado crítico ajudou você a dar seu ponto de vista…

Não, não. Eu poderia estar fazendo o que for…Poderia ter me formado em medicina, eu estaria escrevendo sobre política. Eu não teria tanta gente me lendo porque não teria formado público, mas eu estaria escrevendo no meu Facebook pessoal sobre política.

Estamos perto de uma teocracia. Já falo sobre isso há seis anos. É só olhar, a bancada evangélica atualmente é mais poderosa no congresso.

Nonada – Como você disse, houve uma polarização muito grande da população durante o último ano. As redes sociais ajudaram nesse processo, porque mostram o que os jornais de direita, sem citar nomes, fazem. Você acha que isso causa medo neles?

Primeiro, é importante citar o nome deles: Veja, Folha, Estado de São Paulo, organização Globo como um todo. São veículos canalhas, golpistas, de direita que querem cada vez mais incentivar um conservadorismo por parte do público, porque esse conservadorismo vem com uma série de ideologias neoliberais e econômicas que favorecem as grandes corporações que elas representam. Então, é um interesse econômico por trás. Se não existisse rede social, internet, o Aécio teria sido eleito em 2014. Simples assim. Ele não ganhou porque a grande mídia não controla mais a narrativa. Antes, eles inventam o que eles queriam e não existia contraponto, era a verdade. Hoje em dia você tem as redes sociais, os blogueiros que não estão ligados a essa grande mídia golpista que tem o interesse econômico como prioridade. Você tem o político de direita que acha que quem cria a realidade é a mídia. Tipo o Alckmin, que diz que não está tendo greve dos professores. Aí, na rede social, as pessoas publicam fotos. Essas 30 mil pessoas nas ruas são o quê? Se não fossem as redes sociais as pessoas não saberiam, porque não sai na Globo, Veja, Folha, em lugar algum. Se você não está lendo no jornal, então, teoricamente, não está acontecendo. A realidade só é tão real quanto à mídia informa.

Com as rede sociais, é possível mostrar o que eles não mostram, e as pessoas que assistem esses grandes veículos vão começar a questionar por que não estão mostrando e perceber o óbvio: que a mídia mente. Você começa a ser crítico. Ou pelo menos eu espero que isso aconteça. A Globo ainda não entendeu isso, eles acham que estão na década de 70, que eles podem mentir para o público impunemente. Não é assim mais, meu amigo. Hoje em dia, ainda estamos longe de atingir justiça com isso, mas graças as redes sociais a verdade não é mais oculta. Eles não podem criar uma versão falsa do Brasil só porque eles querem.

Vamos analisar friamente, como o caso da Reuters, que vazou uma versão de uma matéria que em um certo parágrafo afirmava que o Petrolão iniciou no período FHC tinha, entre parêntese: “podemos tirar se achar melhor”. Por que tirar? Do ponto de vista jornalístico, por que eles levantariam a hipótese de tirar essa informação? Existe algum motivo? Nenhum. Apenas pra manter a ilusão de que o governo dele era limpo de corrupção. Isso não acontece só aqui, nos Estados Unidos tem a Fox News. O problema é que todos os veículos no Brasil são iguais ao Fox News, em maior ou menor grau. Você tem o extremo que é a Globo, tem a SBT, com uma âncora como Rachel Sheherazade, que tira selfie em uma manifestação de teor fascista, que pedia impeachment, sem menor base legal, e até golpe político, ditadura. Como essa jornalista pode ter credibilidade pra ancorar um telejornal que é transmitido nacionalmente? Em qualquer lugar sério, emissora séria, na segunda-feira, teria sido demitida. Mas não. Na segunda-feira, ela estava vomitando intolerância no SBT. Como alguém acha isso natural? É preocupante.

E o PSDB nem é o maior problema do país hoje. A maior ameaça é a bancada evangélica fundamentalista. Eles estão sendo protegidos, blindados, por uma mídia que está interessada em blindar interesses conversadores de direita, porque economicamente é mais favorável. Eles estão assumindo o poder. Eles fazem culto evangélico no Congresso. Querem reduzir a maioridade penal pra 12 anos (se exalta). Eu fui suspenso no Facebook, porque esses canalhas fundamentalistas denunciaram um post no qual eu falava das descobertas científicas feitas nos últimos dias e, enquanto isso, a bancada evangélica no congresso fez protesto contra o beijo gay. O que tem de ofensivo nisso? E é a segunda vez. A primeira foi com um post meu que eu falava contra a homofobia. Isso é maravilhoso (irônico). Eu faço um post contra homofobia e sou suspenso. Enquanto isso, você vê no Facebook textos afirmando que “gay é sub-raça, vai pro inferno, é uma aberração”. Ou seja, você faz um texto criticando a intolerância, você é suspenso. Post pregando a intolerância está tudo bem. Estamos perto de uma teocracia. Já falo sobre isso há seis anos. É só olhar, a bancada evangélica atualmente é mais poderosa no congresso.

Cena da novela Babilônia (Foto: divulgação)
Cena da novela Babilônia (Foto: divulgação)

Nonada – O Feliciano pediu pra boicotarem a Natura porque ela está na novela. E o pessoal até citou, por que não boicotar a Coca-Cola…?

Os caras falaram pros fiéis boicotarem a novela porque tem duas mulheres se beijando. Enquanto isso, na mesma Globo, no BBB, se você entrar no UOL, tem uma manchete que conta quantas vezes o casal está transando em rede nacional. Pra você ver o nível do nosso jornalismo. E olha que eu nem vejo TV aberta. Eu só ligo a televisão pra ver filme e série. É impossível entrar em site desses e não ver esse tipo de manchete. Teve um vídeo do cara ejaculando na cara da mulher no BBB. Sem problema. Porque aparentemente é pra isso que Deus criou o homem: pra ejacular na cara da mulher. Mas agora, duas mulheres se beijando? (cara de espanto irônica). Na novela anterior, o filho matou o pai. Sem problema.

Que mundo é esse que esses caras vivem? Eles querem proibir uma expressão de afeto, consensual entre pessoas do mesmo sexo. Mas pra eles não, pra eles é impensável, porque ele tem que dominar a vida de todo mundo. Não é por acaso que existe uma separação entre Estado e Religião. No Brasil está cada vez menor. Ninguém protesta contra o presidente do congresso que faz culto evangélico dentro do congresso. Sabe contra o que eles vão protestar? Contra Jean Wyllys dizer que vivemos em um país homofóbico. Contra Dilma e Lula terem tirado 42 milhões de pessoas da miséria. Vão protestar porque tem pobre andando de avião. Porque tem gente que não tinha o que comer e hoje toma café, almoço e janta. Porque, entre 2002 e 2014, o acesso dos pobres na faculdade aumentou em 400%. Isso eles acham ruim, querem acabar.

Mas agora, uma emissora que mente o tempo todo e sonega mais de 1 bilhão de reais, sem problema. Pedir volta da ditadura militar, que, aliás, é ilegal, sem problema. Bater em um cachorrinho porque usava um laço vermelho, sem problema. Me ameaçar de morte e espalhar o nome da minha filha de seis anos de idade pra poder me atacar, sem problema. Isso tudo é sem problema. Como se discute política em um país como esse, no qual o nível de intolerância ideológico está atingindo níveis fascistas? Onde dizer que se é de esquerda é quase um palavrão. Eu estou assustado. Eu só não paro de falar porque não é uma opção. Eles fazem tudo isso comigo porque querem me calar. Não só a mim, mas todo mundo de esquerda. Eu ouço muita gente dizendo que não escreve mais porque dá dor de cabeça. E com isso, eles passam a dominar o discurso e a narrativa. E a você pensa: é, deve estar todo mundo insatisfeito, só se fala nisso. Não é que está todo mundo insatisfeito, é porque eles calaram a todos, através de ameaça, intimidação, violência, agressividade…

Nonada – Uma coisa que me veio à cabeça agora, a Globo adotou o beijo gay nas últimas novelas. Para a Globo, isso é bem arriscado. Muito bom que eles adotem isso, mas quem não gosta vai parar de ver. E mesmo quem é contra a Globo, não vai passar a ver a novela por causa disso.

Não se iluda. A proposta é puramente comercial. A Globo não é burra. Ela é uma empresa, uma corporação, uma multinacional, que sabe muito bem que não se sustenta se se transformar em uma rede evangélica, mesmo porque a principal concorrente da Globo hoje é a Record, que é uma empresa que pertence a evangélicos. Então, é até uma questão estratégica que a Globo use a sua ficção – o que é engraçado, porque na sua ficção, a Globo é muito mais liberal do que na sua parte jornalística. E com isso, em compensação, quem normalmente crítica a Globo, como eu, vai defender. Ela pelo menos sabe, de certa maneira, que  ganha uma impressão de autenticidade, do tipo: falam mal da gente, mas estamos sendo atacados porque estamos mostrando. É uma decisão absolutamente estratégica comercial. Eu sei que eu estou sendo usado pela Globo, que eu desprezo. Mas ok, eu vou ter que defender a Globo nesse sentido. E eu vou dizer: a Globo está certa em mostrar duas mulheres se beijando, é a realidade. E boicotar a Globo por isso é besteira.

Nonada – Para encerrar, qual o papel do crítico e o que ele precisa ter?

Acho que o papel do bom crítico é ajudar o espectador a entender mais sobre a linguagem cinematográfica e tornar o público mais exigente. Eu falo sempre, o bom crítico é aquele que nota que com o tempo o leitor dele está ficando mais exigente. Eu considero até com orgulho quando vejo um leitor que me acompanha há muito tempo falar que eu fui bonzinho demais com um determinado filme. Isso indica que ele ficou exigente. O papel do bom crítico é discutir a linguagem cinematográfica e ensinar o leitor mais sobre aquela linguagem.

 

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8 comentários em “Pablo Villaça: “O Brasil tem um dos melhores cinemas do mundo, mas precisa melhorar a distribuição”

  1. Um dos melhores críticos de cinema do país!
    Já a opinião política, completamente descartável!

  2. Caro Villaça, achei otima a sua análise do panorama político atual, da hipocrisia da Globo, o seu nomear claramente os veículos da grande mídia que dominam o discurso conservador, a sua franqueza. Esperemos que este período que atravessamos no cenário cultural/político nacional se resolva bem e que cheguemos à uma sociedade mais tolerante num futuro não tão distante. Enquanto isso, é bom saber que vc estará aí, falando o que sua consciência manda. Longa vida ao seu jornalismo !

  3. Bela entrevista. E o que falar desse cara que conheço a pouco tempo e já considero pakas?( Pablo Villança)

  4. PV era um ótimo crítico. Quando as redes sociais atingiram o auge, com Facebook e Twitter, principalmente, o que faz juntar muitos admiradores, o ego da pessoa aumenta e gera cenas lamentáveis. Ele é brigão, “polêmico” e joga tudo para sua torcida. Tentou-se adaptar à linguagem jovem da internet, mas se tornou tão irritante qto qualquer “vlogueiro” (no tom mais pejorativo da palavra). É um moleque.
    Tudo isso influi em sua visão política de esquerda. Até aí, tudo bem. Mas ele as expressa de maneira provocativa, ofensiva e superiora. Isso influi no trabalho dele, está no meio do texto. É o mesmo motivo que afasta o Leonardo Sakamoto dos leitores sérios. Só que, na minha opinião, o Sakamoto consegue trabalhar muito mais com dados e argumentos do que com provocação e paixão partidária, caso do “Roger Ebert nacional”.

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